Moralmente, continua a ser uma figura de referência. Um símbolo do país. O homem que desafiou pacificamente o colonialismo britânico e se tornou uma inspiração para movimentos sociais. Gandhi nasceu há 150 anos mas a Índia urbana, capitalista e nacionalista pouco quer saber dele. A TSF ouviu um investigador português que trabalha na Índia.
Como é que a Índia contemporânea olha para o grande pacifista, o homem da desobediência civil ao domínio britânico? Para o professor Constantino Xavier, investigador da Brookings Institution, em Nova Deli, "muito sinceramente, em termos práticos, toda a filosofia de Gandhi não tem nenhuma aplicação na Índia de hoje. Gandhi era contra as forças militares, e, certamente, não gostaria de ver uma Índia nuclear" como a que hoje existe. Por outro lado, era um ruralista, contra a urbanização e grandes cidades, mas o desenvolvimento do país foi num sentido diametralmente oposto: "Nova Deli, a capital, tem quase vinte milhões de habitantes, há cinquenta cidades com mais de 1 milhão de habitantes, e, hoje em dia, temos uma Índia capitalista, moderna, agressiva, a todos os níveis".
O país, uma potência nuclear desde 1998 e que abraçou o capitalismo, é radicalmente diferente daquele em que Gandhi viveu e nem sequer há alguém no espetro político indiano, nem mesmo entre os seus descendentes e familiares, que possa corporizar ou simbolizar politicamente o seu legado. "Não vejo nenhum líder que encarne as ideias de Gandhi de forma prática", afirma Xavier numa entrevista ao programa O Estado do Sítio, da TSF. O investigador considera tal impossível, uma vez que "Gandhi teve um papel muito simbólico na luta pela independência contra o regime colonial britânico, nunca foi um pragmático como Nehru foi. Gandhi inspirou alguns líderes, agregou a diversidade indiana uma vez que foi sempre alguém que esteve sempre além da religião", mobilizando religiões e castas diferentes, o que não deixou de ser "um efeito prático e federador na luta pela independência" nos anos 1930 e 1940.
O investigador português na prestigiada Brookings Institution arrisca dizer que "no pós-independência nunca foi levado verdadeiramente a sério como alguém que pudesse guiar as políticas publicas indianas, o sistema económico e institucional do país, que se foi desenvolvendo de uma forma muito diferente" da que o líder pacifista preconizou.
Gandhi é alguém que hoje "fica bem na prateleira, como estátua nas paredes dos edifícios oficiais, nas comemorações que se fazem. Mas não tem uma praticabilidade na vida diária das pessoas".
Já como referência moral, o homem nascido e criado numa família hindu no litoral de Guzerate, oeste da Índia, e formado em direito no Inner Temple em Londres, é hoje, para todas as figuras do regime indiano, alguém adorado e venerado, "pelo seu pacifismo, pelo seu moralismo, pelo seu idealismo", para além do seu "paternalismo para com as minorias". Mas se foi agregador em relação à diversidade religiosa, nas castas mais baixas dentro do hinduísmo, não olhavam para ele com grande interesse pela forma condescendente com que olhava para as castas mais baixas", apesar de defender a sua proteção.
Apesar de Gandhi ser uma figura nacional, há uma importante minoria nacionalista no país que "tem um ódio tremendo a Gandhi ainda hoje, que o vê como alguém que traiu a ideia de uma Grande Índia, que incluísse os muçulmanos e o Paquistão" e não lhe perdoa a política de apaziguamento e pacificação com os muçulmanos, que acabou por "encorajar o separatismo e a criação do Paquistão. Não é por acaso que Gandhi foi assassinado por um nacionalista hindu do RSS (Rāṣṭrīya Svayamsevaka Saṅgha ou "National Patriotic Organisation", organização nacionalista paramilitar da direita indiana)", grupo que chegou a ser banido. Mas na Índia de Modi "há membros do governo e do partido do primeiro-ministro indiano, ligado a essa mesma organização".
Deste modo, há como que duas versões construídas sobre Gandhi através da forma como se olha para o poder atual no país: uma primeira versão "enquanto representante da Índia respeitadora da diferença, plural e diversa" e que essa Índia, com Narendra Modi "está em risco, em perigo, sob ameaça porque há uma nova narrativa que é o nacionalismo hindu, que procura dar um papel especial aos hindus que são 80% da população indiana, tal como temos partidos cristãos-democratas pela Europa fora que gostam de salientar que são países de matriz judaico-cristã e que é preciso preservar certos direitos e valores culturais. Temos essas famílias políticas na Europa; igualmente, na Índia temos um hinduísmo democrático nacionalista que procura dar um papel especial aos hindus". Não é coisa pouca, uma vez que estamos a falar de 1.300 milhões de pessoas e de um hinduísmo fraturado por "castas e regiões diferentes num subcontinente gigante".
Há, no entanto, uma segunda versão "em relação a essa nova narrativa ideológica na Índia, que Modi representa com o BJP (Bharatiya Janata Party, Partido do Povo Indiano, formação política pro-hindu) que agora está no poder" e que afirma que "o facto de se dar direitos especiais aos hindus, não é incompatível com direitos elementares e básicos para as minorias". É uma corrente que defende uma identidade nacional para o país além da política, uma identidade religiosa, "mas sem violar os direitos constitucionais básicos", afirma Xavier.