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A fome continua elevada em mais de 50 países. Em Timor-Leste é "alarmante"

Há perto de 690 milhões de pessoas subalimentadas em todo o mundo Ahmad Al-Basha/AFP

Está seriamente comprometido o objetivo da ONU de erradicar a fome até 2030. Timor é um dos três casos "alarmantes". A organização Ajuda em Ação divulga esta quarta-feira o Índice Global da Fome.

O Índice Global da Fome (IGF), que esta quarta-feira é divulgado, identificou "níveis alarmantes de fome no Chade, Timor-Leste e Madagáscar", para além de, com base noutros estudos, terem sido identificados níveis de fome também alarmantes em oito outros países, a saber: Burundi, República Centro-Africana, Ilhas Comores, República Democrática do Congo, Somália, Sudão do Sul, Síria e Iémen". Mas há mais 31 países onde a fome é classificada como grave e outros nove colocados provisoriamente nessa condição pelo índice do IGF (que classifica e ordena os países numa escala de 100 pontos, em que 0 é a melhor pontuação - sem fome - e 100 é a pior. "Na prática", escreve-se no relatório, "nenhum destes extremos é atingido").

Sobre Timor Leste, um dos responsáveis da organização Ajuda em Ação, Jaime Martinez, admite à TSF "ter ficado surpreendido", ao passo que "as dificuldades do Chade já são conhecidas", bem como "as dificuldades no Corno de África". "Sabemos também que Moçambique também está lá, nos últimos lugares do Índice de Desenvolvimento Humano, mas Timor-Leste a verdade é que foi para mim uma surpresa, com o incremento da fome que temos por lá", assim como Madagáscar, que passa por um conflito, enquanto a violência não está na ordem do dia no território timorense há quase duas décadas.

A nível mundial, revela o relatório que acompanha o IGF, quase "690 milhões de pessoas estão subalimentadas; 144 milhões de crianças sofrem de raquitismo, um sinal de subnutrição crónica; 47 milhões de crianças sofrem de emaciação, um sinal de subnutrição aguda e em 2018, 5,3 milhões de crianças morreram antes do quinto aniversário, em muitos casos como resultado da subnutrição". Tanto na África Subsariana como no Sul da Ásia, onde o flagelo quase totalmente se concentra, "a fome é classificada como grave, em parte devido à grande proporção de pessoas subalimentadas e às elevadas taxas de raquitismo infantil".

A situação, a nível global (atualmente 18,2 no IGF), não é tão preocupante como há vinte anos (na altura, o índice estava nos 28,2), mas há disparidades regionais e, se "em muitos países a situação está a melhorar demasiado lentamente, noutros está a piorar. Para 46 países nas categorias moderada, grave, ou alarmante, as pontuações do IGF melhoraram desde 2012, mas para 14 países nessas categorias, as pontuações do IGF revelam que a fome e a subnutrição se agravaram". Para Martinez, "globalmente, a situação está a melhorar, mas não podemos dizer que estamos contentes".

Ao contrário do que ficou consagrado nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, erradicar a fome no mundo até 2030 é uma meta dificilmente alcançável para mais de três dezenas de países: "as últimas projeções do IGF mostram que 37 países não conseguirão atingir um nível baixo de fome até 2030". Mesmo em alguns países onde não existem crises a nível nacional, grupos marginalizados e determinadas regiões enfrentam níveis tragicamente elevados de fome e subnutrição.

A Organização Ajuda em Ação (de origem espanhola, com escritório e pequena equipa em Lisboa, mas a atuar em mais de duas dezenas de países, incluindo no norte de Moçambique, na província de Cabo Delgado) admite que "algumas designações de fome são provisórias, porque, para alguns países, os dados necessários para calcular definitivamente as pontuações do IGF não estão disponíveis". Ou seja, os dados para calcular as pontuações do IGF provêm de fontes publicadas pela ONU (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, OMS, UNICEF, Banco Mundial), além de inquéritos demográficos e de saúde.

Dos 132 países avaliados, "25 não dispunham de dados suficientes para permitir o cálculo de uma pontuação do IGF em 2020, mas foram atribuídas a 18 desses países designações provisórias da gravidade da fome, com base noutros dados conhecidos. Os restantes sete países não possuíam dados suficientes para permitir calcular pontuações do IGF ou atribuir-lhes categorias provisórias".

A Ajuda em Ação, na entrevista de Jaime Martinez à TSF, alerta que "infelizmente, vai ser muito difícil" concretizar o ODS relacionado com a erradicação da fome e considera óbvio que a pandemia esteja a agravar os efeitos da recessão económica tida como inevitável e que vários países já estarão a sentir na pele, bem como - segundo se lê no relatório - uma praga maciça de gafanhotos do deserto no Corno de África e outras crises", que estão a "exacerbar a insegurança alimentar e nutricional de milhões de pessoas, uma vez que estas crises vêm juntar-se à fome existente causada por conflitos, condições climáticas extremas e choques económicos".

Os resultados revelados pelo IGF 2020 apresentados no relatório ainda não refletem o impacto das catástrofes sobrepostas, mas direcionam a análise no sentido de considerar a gravidade do quadro global, em matéria de insegurança alimentar e subnutrição, "colocando as suas populações em maior risco de crises alimentares agudas e de fome crónica no futuro". A pandemia de Covid-19 "expôs a fragilidade dos sistemas alimentares globalizados, caracterizados pela crescente dependência da importação de alimentos por países de rendimento baixo e médio; subinvestimento em agricultores locais, associações de agricultores e cadeias de valor orientadas para os pequenos agricultores; e taxas crescentes de doenças não transmissíveis relacionadas com a alimentação".

Relativamente às tendências dos últimos dez a vinte anos, a maioria dos países têm registado melhorias, por vezes decisivas. Em Angola, na Etiópia e Serra Leoa, por exemplo, "a fome caiu de uma situação extremamente alarmante em 2000 - quando as guerras civis e as suas consequências contribuíram para a insegurança alimentar e nutricional - para grave no IGF do ano 2020. Durante o mesmo período, os Camarões passaram de um nível alarmante para um nível moderado de fome, já que o país duplicou o seu PIB per capita e melhorou os seus indicadores de desenvolvimento humano". Vivemos um tempo especialmente dramático, com uma sobreposição de crises, embora tal também não signifique que o mundo não possa prever, como afirmam os autores do relatório, a sua própria capacidade para "responder a múltiplas crises simultaneamente - crises de saúde, crises ambientais, crises económicas, e crises de segurança alimentar", entre outras.

O relatório do IGF 2020, intitulado "Uma década até "fome zero": ligando a saúde aos sistemas alimentares sustentáveis", faz uma série de recomendações políticas aos países: ajudar os pequenos agricultores a tornarem-se produtores sustentáveis e diversificados; os mercados locais e regionais de alimentos devem ser reforçados e os alimentos avaliados não apenas em termos de peso e volume, mas igualmente de acordo com a sua densidade nutricional; desenvolver e implementar economias alimentares circulares que reciclem recursos e materiais, regenerem sistemas naturais, e eliminem o desperdício e a poluição; melhorar a regulamentação dos sistemas alimentares; expandir o investimento social; tornar as intervenções de emergência e de desenvolvimento a longo prazo mais equitativas e sustentáveis; reforçar a cooperação internacional e os mecanismos multilaterais e normas internacionais existentes baseados nos direitos humanos". O relatório do IGF 2020 conclui recomendando que os governos utilizem "as próximas oportunidades, incluindo a Cimeira dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas, para reforçar os seus compromissos com o desenvolvimento equitativo e sustentável".