Todo o discurso político parte de uma descrição para promover a ação. Os discursos políticos não se limitam a descrever algo. Usam o poder da palavra para conseguir com que os outros façam algo: na versão mais básica, que votem ou apoiem alguém; na versão mais nobre, que se mobilizem ao serviço de grandes causas. Os discursos políticos são exemplos paradigmáticos do que o filósofo John Austin descreveu como "fazer coisas com palavras". As palavras, para Austin, servem para muito mais do que descrever a realidade. Frequentemente, elas criam essa realidade através da ação que comportam ou levam alguém a produzir. É dessa forma que temos de analisar as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa na sua tomada de posse para este segundo mandato. Marcelo estava a descrever o país que temos? A convencer-nos de que temos um certo país? Ou a mobilizar-nos para conseguirmos ser um outro país? Um pouco dos três.
Ouvindo, às vezes, o Presidente, temos a melhor democracia, a melhor ciência, as melhores empresas, os melhores desportistas, os melhores em tudo.
Tem sido uma constante do Presidente conjugar uma visão gloriosa de Portugal com uma enorme ambição para o futuro. O problema são as incongruências entre esses dois discursos. Por um lado, o discurso sobre a nossa história é para o Presidente também um discurso sobre o nosso presente. Para o Presidente não fomos apenas os melhores, somos os melhores. Ouvindo, às vezes, o Presidente, temos a melhor democracia, a melhor ciência, as melhores empresas, os melhores desportistas, os melhores em tudo. Penso que isto tem dois objetivos louváveis. O primeiro é aquele de nos mobilizar através da promoção da nossa autoestima. Mais confiantes, conseguimos ser melhores. Em segundo lugar, proteger a confiança dos portugueses no regime político procurando, dessa forma, legitimá-lo e evitar as condições em que o populismo cresce. O problema com a linguagem política do nosso Presidente é, por um lado, o excesso, que lhe afeta a credibilidade, e, por outro, a falta de detalhe, que nos impede de perceber o que aquelas palavras o vão levar a fazer.
O que temos visto nos últimos anos é um ataque a essa independência e uma crescente ocupação partidária do Estado perante o silêncio, e por vezes a cooperação, do Presidente.
Se somos assim tão bons, porque estamos tão mal? E que precisamos, afinal, de fazer diferente? Peguemos nas 5 missões que identificou para o país. Elas podem resumir-se como ter uma melhor democracia e recuperar da crise com uma economia mais competitiva e mais coesa e uma sociedade plural, inclusiva e aberta ao mundo. Deste ponto de vista, o Presidente faz um notável sumário dos desafios que enfrentamos e dos objetivos que devemos ter. Mas diz pouco sobre o que temos de mudar para os atingir e qual o papel que atribui a si mesmo para esse fim. Eu não pretendo que o Presidente se substitua ao Parlamento e ao Governo na apresentação de propostas políticas nem que entre em debate com aqueles sobre estas. Acho não apenas injusto, mas inapropriado, solicitar isso ao Presidente. Mas acho que poderia fazer muito mais na melhoria da nossa democracia. Um dos grandes problemas da nossa democracia é a captura partidária do poder. Não é apenas o facto de tantos dependerem do Estado que explica a fragilidade e pouca autonomia da nossa sociedade civil, é o facto de esse Estado ser capturado pelo partido no poder. É por isso que, num país como o nosso, é particularmente importante proteger a autonomia da máquina do Estado dos partidos e garantir a independência daqueles que, dentro e fora do Estado, devem escrutinar o poder. Ora, o que temos visto nos últimos anos é um ataque a essa independência e uma crescente ocupação partidária do Estado, perante o silêncio, e por vezes a cooperação, do Presidente. É verdade que o Presidente viveu imerso nessa cultura política. É um produto dela e ajudou a construí-la. Mas, se ele não mudar, não pode esperar que as suas palavras façam mudar o país.