“Preconizamos uma cozinha honesta, genuína, artesanal e dinâmica. Que não segue correntes e tem como único credo narrar uma nova história da cozinha minhota.”
Começo com a transcrição de parte do manifesto culinário que abre a carta do Ferrugem, o restaurante em que me encontro e de onde sempre saio como de um autêntico retiro espiritual. O chef Renato Cunha é uma das mais fortes figuras da cozinha portuguesa de todos os tempos. Enquanto a Michelin insiste em não lhe atribuir a estrela, ele vai insistindo em assumir-se enquanto cozinheiro de produto que ama a sua terra.
Tenho o privilégio de privar com o Renato e com a sua mulher Anabela Rodrigues há já alguns anos e aquilo que sempre se me oferece dizer é sistematicamente isto: pode haver igual, melhor não há. Renato Cunha personifica a um tempo o cozinheiro de província, apóstolo da proximidade e o intelectual que frequenta a academia dos maiores.
No Ferrugem, às portas de Famalicão, percebe-se tudo. A sua ementa mais recente nada tem de programa soturno e melancólico como vemos no igualmente soturno e pouco inspirado Guia Michelin. Encontramos delícias que se devora enquanto se lê. Caso do carapau de escabeche, algas e óleo de camarão da costa, homenagem à conserva rústica praticada pelos antigos. Assim como acontece com a canja de galinha de raça amarela, ave de capoeira autóctone que muito deve a este genial chef. O creme de grão-de-bico com legumes grelhados é de desarmante simplicidade e penetra na densa cortina do umami, que aqui devia ter sede nacional.
Deixo as entradas e passo a alguns pratos principais. O modo de usar da ementa passa pela escolha de menus e harmonizações vínicas, mas concentro-me apenas nos pratos que escolho. Peixe de cabidela é prato que nos põe a pensar profundamente na essência da vida e é viagem guiada pelo complexo mapa mental do chef Renato Cunha. Detenho-me também no cachaço de bacalhau confitado em azeite por se tratar da peça mais rica em colagénio do fiel amigo e por saber que o respeito pelos pontos de cozedura é sacramental nesta casa.
A dificuldade está no ADN deste sempre jovem cozinheiro e apresenta uma presa de porco alentejano, açorda de marisco e picles de couve-flor. Um prato que é uma refeição completa, como tantas vezes acontece na cozinha tradicional portuguesa. A presa é para mim a mais difícil de trabalhar.
Nas doces terminações, escolho duas. A pera rocha em Porto Vintage e Tarte de Queijo, o vinho do Porto ocupa o coração de Renato desde há anos e o tributo ao Abade de Priscos 4.0, matéria de esforço para o grande mestre de Famalicão, que imagino facilmente a confidenciar com esse-outro de Priscos. Quero casa aqui perto, preciso de aqui vir todos os dias.