Em Monchique, o fogo não tem apenas quatro letras

O projeto "Lavrar o Mar" leva até à serra de Monchique a encenação de uma família que vive o drama dos incêndios. Uma ficção que é, afinal, a realidade atual daquela terra.

Uma serra ardida, toda a produção de medronho destruída, dois atores para contar o drama de uma população.

Porque "o fogo não tem apenas quatro letras", é preciso lembrar os dias em que o incêndio percorreu as encostas da Serra de Monchique.

"Viemos à serra depois do incêndio e começámos com as pessoas, como tinham vivido o incêndio. Ficámos bastante tocados, porque estavam a viver o luto ", diz Giacomo Scalisi, o diretor artístico de Medronho- Teatro na Serra e nas Destilarias.

Scalisi pedira ao escritor Sandro William Junqueira para escrever uma peça em que entrasse a produção e a destilação de medronho. Mas o fogo que chegou a Monchique em gosto não estava nas previsões do produtor nem do escritor, que teve que alterar todo o projeto.

"Logo na altura, ao conversarmos, vimos que tínhamos que fazer qualquer coisa. Não podíamos ficar calados", diz o escritor.

O texto leva o público a percorrer as emoções de um pai e de um filho. António Monteiro, o pai, é o ator António Fonseca; Ezequiel, o filho, é Pedro Frias. O filho detesta a serra e o medronho e ambos têm visões muito distintas. A peça decorre ao ar livre, no Monte da Lameira, em Alferce, onde o fogo destruiu tudo.

A ficção vivida na peça é a realidade de José Paulo, produtor de medronho, que tinha uma destilaria neste monte. Tinha, porque tudo ardeu. A destilaria e os 400 hectares de produção.

"Foram momentos muito complicados, o fogo vinha com uma intensidade muito grande e vimos que não podíamos fazer nada.", lamenta José Paulo.

No decorrer da peça, o público vê a serra ardida, ao mesmo tempo que ouve a história narrada pelos dois atores, em dois momentos distintos. Para o pai, o incêndio foi a destruição de uma vida de trabalho; para o filho, a serra nada diz.

A ficção confunde-se com a realidade. Sandro William Junqueira lembra a insistência das autoridades neste incêndio em tirar as pessoas das suas casas em Monchique. "Há uma frase no texto que diz: «Se matares o produtor de medronho, ele só morre uma vez, mas, se matares os medronheiros, ele morre não sei quantas vezes". Foi isso que eu quis, dar voz às pessoas que quiseram ficar a defender o que era delas, e muitas não puderam".

Quem assiste à performance dos atores e viveu o incêndio, fica, necessariamente, emocionado. Lembra o que passou e como é difícil recomeçar.

A segunda parte de "Medronho" será mostrada dentro de alguns meses, desta vez escrita por Afonso Cruz. Já falará nalguma esperança e na retoma da produção. Porque a Serra de Monchique e quem nela habita fazem da palavra "resistência" um modo de vida.

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