Crónica o meu mundial

"Isto" faz mesmo parte disto

Se estivesse vocacionado para esquecer "isto" a minha única preocupação nesta altura do Mundial seria que não houvesse feriado no Gana pelas mesmas razões que houve na Arábia Saudita.

Aliás, agora que a novela Cristiano Ronaldo está encerrada com o acordo - civilizado, valha-nos isso - entre o internacional português e o (ainda) clube da família Glazer, só teria de pensar que aquele grupo de jogadores de excelência não cairá certamente nas mesmas armadilhas em que os argentinos foram apanhados. E, claro, continuar a esquecer "isto". Mas não tenho a menor vocação para tal.

Já agora, permitam-me esclarecer o que é "isto". É a designação recentemente utilizada quando nos referimos ao desrespeito pelos direitos humanos num país. Ou às mortes de migrantes nesse mesmo país como consequência de relações laborais de contornos mais ou menos medievais.

Ora acontece que "isto" não desaparece durante umas semanas só porque vêm craques de todo o mundo dar uns pontapés na bola. A ideia peregrina da FIFA de tentar inventar um mês no céu para compensar o resto do ano no inferno, não resulta. E ainda menos quando o quer fazer à custa dos artistas que está a usar para construir esta narrativa da "festa do futebol".

O recado, no fundo, resume-se assim: vocês estão aqui para jogar, por consequência, façam o vosso trabalho e não nos compliquem o negócio. Ou então...

E o grave é que o "ou então" passa por um processo semelhante à chantagem. Os elementos da seleção inglesa sabem o que é. Tal como Vertonghen que confessou não querer falar de braçadeiras pois corria o risco de já não jogar com o Canadá. Calculo que a irritação no Olimpo da FIFA deve ter sido grande quando viram os jogadores alemães de mão na boca.

A FIFA sabe que existem duas caras do Campeonato do Mundo e era preciso definir uma estratégia que salvaguardasse aquela que lhe interessa. A receita passa por uma sobre-exposição mediática da que defende o negócio, fazendo com que a outra seja cuidadosamente ignorada.

Para a entidade que achou uma ótima ideia fabricar um Mundial no Médio Oriente, o show ocupa o palco todo e o lado negro do Catar vai para a gaveta.

Convém não esquecer que, para os cataris, o Campeonato do Mundo é uma peça-chave de um plano definido em 2008 - Qatar National Vision 2030 - tendo como objetivo diversificar a economia do país. E o futebol era uma componente prioritária, desde logo com a compra de clubes, como o PSG em 2011, através do Qatar Sports Investments, ou a criação de empresas que assegurassem direitos de transmissão de alguns dos principais campeonatos.

O Catar não tem qualquer relevância enquanto força desportiva, embora queira especializar-se numa nova modalidade, o "sportswashing". Embora, no caso presente, o desempenho esteja a funcionar exatamente ao contrário.

O plano, contudo, nada tem de novidade.

A lógica da imagem atraente e sedutora já tinha sido aplicada pela Rússia no Mundial anterior. Recorde-se que a FIFA embarcou nestas duas aventuras sem pestanejar (anunciou-as em simultâneo, lembram-se?), numa altura em que os oligarcas russos já tinham a sua ofensiva em andamento - Abramovich comprara o Chelsea em 2003 - e se preparava o processo de clubes-Estado concebido pelo emirado.

Chega a ser risível ver hoje algumas almas confessarem ter acreditado piamente que russos e cataris, por organizarem Mundiais, iriam mesmo cumprir as promessas de salvaguarda de princípios básicos que devem reger a Humanidade.

O Catar não o fez antes do Mundial e não o fará depois dele. Tal como a mesma Rússia que ocupou a Crimeia, apenas quatro anos depois de um torneio desenhado à sua medida entrou com os tanques pela Ucrânia dentro. Portanto...

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de