"Há países mais bem preparados que nós para enfrentar novas crises"

Em entrevista à TSF, Mário Centeno avisa que o país tem de estar preparado para uma eventual crise por contágio externo e sublinha que há muitos países que estão à frente de Portugal nesse aspeto.

A revisão do défice deste anos de 1,1% para 0,7% está a valer-lhe duras críticas tanto do Bloco de Esquerda como do PCP. Admite libertar pelo menos uma parte dessa almofada para melhorar serviços públicos ou está mesmo fora de questão?

Não se trata de libertar ou deixar de libertar, não há nenhuma revisão do Orçamento de Estado de 2018, é preciso ser muito claro nisso. Há uma atualização da previsão do défice que resulta de uma melhor execução em 2017 que é agora transposta para o Orçamento de Estado de 2018. A revisão que foi feita tem fundamentalmente duas origens: uma previsão de pagamento de juros muito abaixo daquilo que tínhamos previsto inicialmente, que ocorreu em 2017, e as previsões que temos neste momento - ainda hoje os mercados estão favoráveis a Portugal e isso é muito bom, porque significa que as empresas, as famílias e o Estado pagam menos juros -, que nos levaram a atualizar a previsão para o Orçamento de Estado de 2018; e depois uma previsão adicional de melhoria das condições da Segurança Social, por via do mercado de trabalho com mais contribuições, com menos subsídios de desemprego, menos prestações sociais, que decorrem, também aí, do bom estado da economia, algo que é muito importante para Portugal.

Ou seja, quando comparamos a nossa previsão do Programa de Estabilidade do ano passado com a deste ano, e sabendo nós o que é a previsão da despesa, não há razão para se dizer que há uma revisão do Orçamento, não há.

Mas entretanto houve uma execução orçamental melhor do que o previsto, não poderia ter sido usada essa folga para melhorar serviços públicos?

Mas, precisamente, a melhoria que houve foi quase exclusivamente centrada em juros e na melhoria no saldo da Segurança Social.

Mas numa linguagem que toda a gente compreenda, sobrou dinheiro?

Faltou menos dinheiro, essa é que é a verdade. Temos um défice; o país endivida-se de cada vez que tem um défice; o défice é aquilo que mais pesa sobre as gerações futuras. E é uma pedra angular da política deste Governo - sempre foi aliás, já desde 2015 quando o então secretário-geral do Partido socialista anunciou a candidatura às eleições e o modelo, o famoso modelo, que guiaria quer a elaboração do programa eleitoral quer depois o programa do Governo -, a descida da dívida que estava prevista nesse documento é muito, muito próxima daquela que temos hoje projetada neste Programa de Estabilidade no período em que se sobrepõe e que vai até 2019.

Quando diz, "faltou menos dinheiro", está, no fundo, a querer dizer que o Governo tem uma opção diferente daquela que seria a opção do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista?

Não sei se é diferente. Nós assinámos um conjunto de posições comuns que tinha subjacente, e era conhecido na altura, um programa macroeconómico que é em tudo idêntico àquele que está vertido neste Programa de Estabilidade. É muito curioso que o debate se faça nestes moldes, porque a verdade é que os números que temos no Programa de Estabilidade de 2018 a 2022 para os anos comuns, que são 2018 e 2019 quando recuamos a 2015, são exatamente os mesmos para o nível do saldo primário.

Então, o Bloco e o PCP não têm razão quando acusam o Governo de não estar a respeitar o que ficou acordado?

Nós, não só estamos a cumprir e vamos cumprir o Orçamento de 2018, como cumprimos o de 2017 e era aí que eu queria ir há pouco quando me perguntavam se não ficaram coisas por fazer ou se não vão ficar coisas por fazer. De todo.

E a degradação dos serviços públicos, que não vem do ano passado, vem sendo acumulada ao longo dos anos?

Nós temos que nos confrontar com as prioridades que vamos estabelecendo e é evidente que há uma preocupação muito grande deste Governo com os serviços públicos, como houve no início com a estabilização do sistema financeiro, como houve na reposição e salários e de rendimento, como houve na redução da tributação direta, no IRS, que tem sido implementada de forma consecutiva em todos os anos desta legislatura. No início, começámos a reduzir a sobretaxa, algo que não estava a ser feito, aliás até havia o famoso toto-imposto do anterior Governo que prometia algo que não se concretizou. Nós implementámos logo em 2016 e 2017, em 2018 e 2019 há uma nova reforma do IRS com mais redução de taxas de imposto. É um conjunto de preocupações que o Governo tem vindo a implementar de forma muito sistemática.

Voltando aos serviços públicos, há investimento e aumento de recursos muito significativos na saúde.

Mas admite que não chegam?

Eu não sei se chegam se não chegam, se alguma vez nós poderemos dizer isso. Eu quero identificar, quero tornar muito claro que há uma prioridade absoluta para a saúde: são mais 700 milhões de euros. Quando comparamos com a despesa em saúde em 2015 vemos que no ano de 2018 vamos ter mais 700 milhões de euros de despesa entre despesa com pessoal, consumos intermédios e investimento no setor da saúde. Esta é uma aposta.

Este dinheiro que sobra deste ano - deixe-me usar esta expressão que sei que não é a sua - não é necessário para reforçar a saúde?

Eu insisto que não sobrou dinheiro. Tivemos uma melhor execução que vamos verter na execução orçamental de 2018 e 2019. Eu vou explicar como: chamemos-lhes os dois efeitos positivos mais significativos que sobressaem da execução de 2017 e que podem ser descritos como fiz há pouco, metade em poupança de juros e a outra metade na Segurança Social. O resultado da Segurança Social, que vem muito do lado da receita, é muito importante que seja muito bem gerido, porque isto significa pensões futuras, e não há nenhum Estado que possa estar equilibrado e sustentável se não garantir que as poupanças de hoje financiarão pensões no futuro. Seria, de certa forma, até pouco adequado estar a gastar, chamemos-lhe assim, este dinheiro.

O que fazemos é redesenhar a trajetória orçamental passando para a execução, ou seja, para os tais gastos, metade daquilo que foi o resultado positivo para além do esperado em 2018 e, a outra metade, em 2019. Poderia haver diferentes formas de fazer isto, mas confesso que acho que esta é a mais responsável e explico porquê: quando, na economia, temos um resultado positivo, em particular nos juros, que não depende de nós, devemos ser cautelosos na utilização dessa margem. A forma como o Governo estabeleceu foi a de retomar - e eu digo retomar porque estes objetivos que agora estabelecemos para 2018 e 2019 são exatamente iguais, como disse na minha conferência de imprensa na sexta-feira, àqueles que tínhamos estabelecido para o saldo primário em 2015, são exatamente iguais, à décima, como também disse nessa altura - esses objetivos. O que significa que para 2019 temos um objetivo para o saldo global que é igual àquele que tínhamos estabelecido há um ano, ou seja, temos um resultado positivo...

O que está a dizer é que poderia até ter ido mais longe na consolidação de 2018, mas decidiu distribuir isso para 2019?

E suavizar a trajetória de convergência para os objetivos que o Governo estabeleceu, porque isso é absolutamente verdade. A variação do saldo estrutural - que é um conceito do qual tendemos a fugir e eu não quero entrar muito nele, mas é um indicador - que estava prevista para 2018 foi, neste momento, reduzida a metade do que tínhamos estabelecido como meta um ano atrás. Porquê? Precisamente porque fomos além daquilo que estava estabelecido em 2017. Depois, em 2019, voltamos a cortar em metade o esforço que na altura tínhamos desenhado, para, como disse há pouco, distribuir esta boa notícia na sua totalidade por este esforço estrutural.

Mas falando ainda sobre o défice deste ano: será que seria grave encontrar-se a meio caminho com os partidos de esquerda com um défice de 0,8% ou 0,9%? Já avisou que a alternativa a estes números representaria um regresso ao passado, esta alternativa de mais uma ou duas décimas seria esse regresso ao passado?

Duas notas: não há nenhum maniqueísmo nos números, nenhum, quando lidamos com eles e sabemos lidar com eles percebemos que não há nenhum maniqueísmo nos números, ou seja, ser 0,7 ou 0,8 só por si não significa rigorosamente nada, depende da economia que está por detrás disso, depende das condições do mercado de trabalho que temos subjacentes aos números que apresentamos. E uma economia que está em processo de recuperação como a economia portuguesa, que tem vindo a tornar-se mais resiliente e capaz de acompanhar os desenvolvimentos muito positivos na Europa, deve ter condições para também ir resolvendo temas que tem subjacentes para o seu futuro, e a dívida é um deles. Portanto, quanto mais depressa nós colocarmos e sustentarmos a trajetória de redução da dívida, mais rapidamente vamos chegar àquilo que eu designei como um porto seguro, onde a política orçamental em Portugal possa, de facto, responder aos desafios que se lhe colocam.

E ficarmos mais bem preparados para uma eventual crise que possa surgir, como já surgiram no passado. Nós sabemos que a economia é cíclica e não faltam - até à esquerda, Carlos Carvalhas, Francisco Louçã - vários economistas que defendem que nós podemos estar prestes a enfrentar uma nova crise, não só Portugal, mas uma crise que pode vir do exterior. Antecipa isso ou não?

O ministro das Finanças jamais vai prever crises, vai trabalhar para que elas se possam evitar, e quando não se puderem evitar e, às vezes não se podem evitar, para que estejamos bem preparados para lidar com elas. Sem querer fazer uma resenha histórica muito longa, permitam-me que relembre aqui um pouco do que têm sido as últimas décadas da história financeira e orçamental em Portugal.

Só para usar aqui a ideia de que quando em Portugal o sol brilha, e brilha assim durante três ou quatro meses, há sempre uma enorme tentação de ultrapassar um conjunto de condições orçamentais que, à partida, podem causar problemas. Se nós voltarmos ao final dos anos oitenta, com o crescimento económico que resultou da adesão à Comunidade Económica Europeia, depois União Europeia, e às decisões orçamentais que se construíram naquela altura, muitas no sentido de aumentar a despesa pública; no final dos anos noventa, com a descida das taxas de juro e a acomodação, também mais uma vez do lado da despesa, dessas boas condições financeiras que resultavam do processo de criação e de adesão à área do euro, vemos que estas decisões - a prazo, porque o sol brilha durante umas horas - levam a que quando as taxas de juro aumentam, quando as condições económicas se tornam mais complicadas, ainda que ciclicamente, a dívida torna-se insustentável e o país tem dificuldade em encontrar o tal porto seguro onde possa continuar a usar todos os instrumentos de política orçamental de que gostamos.

Depois aparecem períodos um pouco mais difíceis em que as decisões que se tomam são decisões muitas vezes tomadas perante exigências que não têm uma formulação muito adequada àquilo que são as condições da economia e da sociedade portuguesa, como as que tomámos, por exemplo, nos últimos anos durante o programa de ajustamento e que levaram a uma emigração maciça de portugueses.

Portanto, o senhor está a preparar o país para um eventual choque com uma realidade desse género?

O país tem de estar preparado para isso. Neste momento temos em Portugal o défice orçamental que é o décimo maior da área do euro, o que significa que há países muito mais bem preparados do que nós para resolver e reagir a essas situações e, de todos, só dois é que têm uma dívida maior do que a portuguesa. Nós não podemos - e é essa a mensagem que tenho tentado passar - desaproveitar esta oportunidade, num contexto que não é nem de despesismo nem de austeridade, porque a austeridade é quando cortamos durante períodos de recessão económica e nós não estamos rigorosamente nesse cenário e devemos aproveitar esta situação.

Mesmo correndo o risco de fragilizar o acordo com os partidos à esquerda?

De novo, não vejo razão nenhuma para fragilizar o acordo por isto que lhe estou a dizer: nós cumprimos do lado da despesa o Orçamento de 2017, e aquilo que estava registado no Programa de Estabilidade do ano passado, quase à risca. Foi executada 99% da despesa que estava prevista, mesmo em áreas onde o Governo tem sido muito criticado, eu diria injustamente, mas é em causa própria. Na área do investimento ficámos apenas a 2% da execução da meta orçamental, num contexto em que os fundos comunitários ainda não estão a chegar na velocidade de cruzeiro aos projetos que temos aprovados e lançados na administração pública.

Ou seja, nós temos cumprido o que está no Orçamento e tivemos a felicidade de que as medidas que tomámos terem tido um impacto até maior do que o esperado na economia, no mercado de trabalho e isso é muito bom. Estamos obviamente a beneficiar também de um enquadramento externos que já tínhamos previsto que fosse favorável e que se veio a concretizar como sendo favorável. Portanto, não há lugar nem a lamentos nem a complacências, vamos continuar a implementar o que tínhamos no programa de Governo e, pela primeira vez, todas as contas, todos os números que foram divulgados naquela altura foram sujeitos a grande escrutínio.

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