Amar no país mais odiado do mundo

Israel é um destino completo, tanto por ser um dos berços da civilização, com toda a história que daí decorre, como também pelo cosmopolitismo e pelos inúmeros movimentos cívicos que promovem o diálogo e a cooperação entre judeus e palestinianos. Nem só de intolerância e violência vive o Médio Oriente.

"O que todos queremos é viver em paz". Iftah Akram é judeu e vive em Florentin, no bairro mais alternativo e cosmopolita de Telavive. A apresentação que faz do seu país é uma muito pouco noticiada, "No meu bairro vivem, e convivem, todas as religiões. No final do dia costumo jogar futebol na praia com palestinianos".

De entre os oito milhões de habitantes de Israel, quase dois milhões são muçulmanos, uma em cada quatro pessoas é palestiniana, não sendo por isso de estranhar o facto de o árabe ser uma das línguas oficiais do país, a par do hebraico.

Aterramos no Aeroporto Ben Gurion com a expectativa de saber como será a entrada num dos países mais militarizados do mundo, numa época tão globalmente noticiada de tensão e conflito. No posto de controlo do aeroporto, duas perguntas apenas: se a visita será de turismo e qual a duração da estadia. Cinco minutos depois estamos no terminal de chegadas em direção a Telavive. Nenhum carimbo no passaporte, apenas um autocolante e um cartão azul. Desta forma o passaporte continua intacto e, por isso, válido para entrada em todos os países que não reconhecem soberania a Israel.

Telavive impressiona sobretudo pela surpresa que emana. É uma espécie de Paris, Amesterdão e Londres em versão tropical. Sabemos que o seu centro histórico é Património da Humanidade mas nada nos prepara para a sucessão de obras emblemáticas da arquitetura Bauhaus assinadas por Zeev Rechter, Erich Mendelsohn, Dov Carmi, entre muitos outros. São mais de quatro mil edifícios dispostos de forma clara e luminosa no centro da cidade. A maior concentração de exemplos Bauhaus em todo o mundo formando uma exclusiva Cidade Branca, topónimo pelo qual a cidade é (re)conhecida. Passeamos pela Rua Rothchild num final de tarde de Maio e a brisa fresca convida à vida bucólica dos parques: inúmeros casais, uma grande parte do mesmo sexo, imensos livros lidos ao sol, inúmeras pessoas a passear cães e centenas de bicicletas que vão e vêm com mulheres, homens e crianças de todas as idades. Dos bares ouve-se música ambiente e as esplanadas estão cheias. Esta poderia ser a definição de uma sociedade igualitária e hedonista. E, em certa medida, é. Tal como na sua exata contrária medida não o é. O seu cosmopolitismo assenta numa realidade extremamente complexa. A uma curtíssima distância de carro temos Gaza, que exibe as suas feridas abertas ao mundo e a ocupação projeta a sombra de uma realidade que em Telavive evitam pensar.

Evitam, mas não todos. "Stop the Massacre", "End the Siege", "Free Gaza". As duas dezenas de manifestantes ostentam em silêncio as palavras de ordem num final de tarde soalheiro em Jaffa. Pedem liberdade para Gaza e o fim do massacre, naquele que foi um dos mais sangrentos confrontos entre palestinianos e o exército israelita dos últimos anos. Dezenas de mortos e centenas de feridos nas semanas de protestos na fronteira entre Gaza e Israel em maio passado.

Mas não é só de conflito e tensão que esta zona do mundo vive e a luta não se faz apenas empunhando cartazes. Um pouco por todo o território multiplicam-se casos de integração e diálogo entre as comunidades israelita e palestiniana. Religiosos ou não surgem cada vez mais exemplos de sucesso de cooperação, como o da comunidade Hand in Hand (De Mãos Dadas, numa tradução livre) que assegura e comprova que a mudança é possível. Nas palavras do próprio diretor, Mohamad Marzouk: "Cresci em Aara, uma aldeia árabe no centro de Israel. Depois da Guerra de 1948, os meus pais focaram-se em sobreviver dia após dia. Sempre me ensinaram os valores da justiça e igualdade social. Desde cedo percebi que outra realidade era possível". E tanto assim é, que pôs os seus princípios em prática: "Comecei a trabalhar para melhorar as condições de vida dos árabes mas também para promover as relações entre judeus e palestinianos. Porque quando uma comunidade age em conjunto, de forma contínua, organizada e determinada, guiada por valores humanos básicos de respeito mútuo e aceitação, podemos criar uma realidade diferente."

E ela aí está para nos mostrar que a solidariedade pode falar muito mais alto do que o ódio. Desta ideia de cooperação, resultou a abertura da primeira escola na qual o diálogo entre comunidades é a chave: meninos judeus sentam-se e aprendem lado a lado com meninos palestinianos. As aulas são bilingues dadas por dois professores, um em árabe e outro em hebraico, e o respeito por ambas as realidades é uma preocupação e prioridade. Depois da primeira, seguiu-se uma segunda escola, e mais outra, num total de quase 2000 alunos. Hoje são seis as escolas da comunidade Hand in Hand - e com muitas mais planeadas - que promovem a paz, a união e uma sociedade árabe-judaica que seja cada vez mais inclusiva.

É com maior e mais renovada fé na humanidade que saímos de Telavive em direção ao norte do país. A menos de uma hora e meia de comboio, já muito perto da fronteira com o Líbano e banhada pelas tranquilas águas do Mediterrâneo, encontra-se a antiquíssima cidade de Acre (em hebraico, Akko). Esta importantíssima cidade é uma das mais antigas do mundo, habitada continuamente há mais de quatro mil anos, desde a Idade do Bronze. Hoje, a sua relevância é ainda maior, vivem nela, em harmonia, judeus, cristãos, ateus, muçulmanos, drusos, bahá'i. No seu aclamado e belíssimo centro histórico, 95% da população é muçulmana, segundo dados oficiais publicados pela Israeli Central Bureau of Statistics. É num café muito peculiar da cidade que somos atendidos pelo Senhor "Vruumm" - três vezes lhe perguntamos o nome, três vezes não o percebemos. Toda a esplanada está ornamentada por plantas no melhor jeito do it yourself: panelas, sapatos, carteiras, tudo convertido em vasos. É-nos servido um dos melhores chás das nossas vidas, pequenos botões de rosa embrulhados em folhas de hortelã-pimenta com a inesperada companhia sonora de Bob Marley. Se do lado de fora temos o verde, dentro somos recebidos com a melhor decoração e ambiente rastafári.

É aqui que ouvimos falar pela primeira vez em Joana Osman. Ternamente conhecida por Joujou, Joana é palestiniana, filha de um refugiado, escritora e professora universitária de 35 anos. É também ativista dos direitos humanos e faz parte do movimento popular The Peace Factory, fundado em 2012, por Ronny Edry e que se desmultiplica por uma série de páginas nas redes sociais. Joana gere uma das mais aclamadas, "Palestine Loves Israel". A sua missão é unir pessoas que, de outra forma, muito dificilmente, porventura jamais, entrariam em contacto. Ser a ponte entre futuras amizades, entre israelitas e iranianos, judeus e palestinianos. Nas suas palavras: "De ambos os lados encontramos pessoas prontas para viver em paz, que estão prontas para um compromisso, para partilhar e viver em conjunto como amigos e vizinhos." Para acabar de uma vez por todas com preconceitos. Conta-nos uma história.

"No verão de 2014, quando aconteceu a última guerra em Gaza, nós, os administradores da Peace Factory, estávamos desesperados e no limite da depressão. Dia e noite trabalhávamos para que as nossas páginas virtuais não se transformassem em mais um campo de batalha e estávamos muito preocupados com os nossos amigos em Gaza. Um dia, um jovem de 19 anos escreveu na nossa página um longo post sobre os israelitas. Perguntava o porquê de tanto ódio, o porquê das bombas. Escrevia-nos desde Gaza e de lá nunca tinha saído, nunca antes tinha sequer falado com um cidadão israelita, para ele a incarnação de todo o mal. Em menos de uma hora, mais de 50 pessoas responderam-lhe". Daqui surgiram 50 amizades, entre um jovem de Gaza e os seus novos amigos israelitas e a mensagem foi unânime, a vontade de paz que nos define falou mais alto, ninguém quer esta guerra. Hoje, e através da ajuda de um deles, obteve uma bolsa de estudo e está agora a estudar Medicina na Universidade de Alexandria, no Egito.

O Médio Oriente fascina desde tempos imemoriáveis e uma visita a Israel nunca estará completa sem se conhecerem as suas bipolares justaposições. Se por um lado temos a vida laica, extremamente cosmopolita de Telavive, por outro somos confrontados com a tradição religiosa monoteísta das principais religiões abraâmicas e o ortodoxo culto milenar de Jerusalém. Duas realidades que ajudam a explicar a complexidade do país e fazem parte do seu código genético. Vamos, portanto, visitar Jerusalém.

Ela é a epítome da cidade concisa, eternamente disputada. Nela tudo se encerra e por ela tantos lutam desde a sua génese. Palco de destruições várias, sempre se regenerou e reconstruiu. Hoje continua cidade polémica e contestada mas acima de tudo, sempre emotiva, recebe milhares de visitantes todos os dias. Pelas ruelas da Cidade Antiga escutam-se todas as línguas do mundo. Não é de estranhar encontrarem-se grupos de portugueses de terço na mão a percorrerem devotamente a Via Dolorosa, o caminho que, alegadamente, assinala os últimos passos de Jesus. Mas não só de devotos cristãos vive a Cidade Antiga. Ela está dividida em quatro bairros, o cristão, arménio, muçulmano e judeu, com visíveis e notáveis diferenças entre todos eles. O que a geografia uniu, o homem e os seus deuses esforçadamente teimam sempre em dividir. Uma das paragens mais do que obrigatórias é a visita ao Monte do Templo, com a sua icónica Mesquita Al-Aqsa e o incontornável Muro das Lamentações.

Cada um carrega em si uma particular ideia de Jerusalém e existem tantas quantos aqueles que a visitam. Amos Oz, em "Uma História de Amor e Trevas", descreve a cidade como "Uma velha ninfomaníaca que esmaga amante após amante, e a seguir os afasta com um bocejo entediado, uma viúva negra que devora os machos no próprio ato de acasalamento." Crentes ou não, Jerusalém nunca ficará indiferente a ninguém. O seu património é único, irrepetível.

Nunca será pacífica a decisão de visitar Israel. Os recentes confrontos na fronteira com Gaza mostram como a paz ainda é uma miragem, a instabilidade política e os excessos da intervenção militar uma constante, com violações recorrentes do princípio da proporcionalidade exercida pelas Israel Defense Forces (IDF). Contudo, contrariando uma ideia recorrente, a tensão e os confrontos não estão disseminados por todo o território. É possível uma viagem de meses pelo país, e ele é pequeno, a sua área é menor que a do Alentejo, sem nos apercebermos de clima de conflito. Além de que as pessoas, na sua maioria, não representam o estado que as governa, a convivência diária acontece e tanto melhor será quando o outro não for encarado como inimigo mas sim um vizinho, um irmão na história e em geografia. O inquestionável apelo do diálogo surge mesmo entre aqueles que não o conseguem conceber. Exemplos de tolerância e cooperação entre comunidades são ecos de uma semente que tende a desabrochar e a multiplicar-se. A vida, com toda a sua inefável abnegação, de ambos os lados do muro, continua.

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