Português investigado por salvar refugiados no mar. "A razão é pura e simplesmente política"

Um português está sob investigação pelas autoridades italianas depois de resgatar milhares de pessoas no Mediterrâneo. Mas as acusações são feitas de ambos os lados. Afinal, a União Europeia dificulta o salvamento de refugiados?

No verão de 2017, o barco Iuventa foi apanhado pela polícia italiana, e a Solidarity at Sea cessava as operações a bordo da embarcação, com uma notificação legal da Justiça italiana: 10 dos voluntários da tripulação estavam sob investigação. Miguel Duarte encontrava-se em Portugal para celebrar o casamento do irmão, mas ansioso por voltar para Malta. Nunca chegou a fazer a viagem de volta, porque começava um capítulo negro de uma epopeia heroica, negro como azul-escuro de mar, do Mediterrâneo navegado pouco mais de um ano antes.

Miguel Duarte, agora com 26 anos, cruzou a rota do Iuventa quando um apelo irresistível lhe abalou os alicerces firmes da vida em Lisboa. Assistia, nessa altura, por distância televisiva, mas sem o interlúdio do entorpecimento, à "maior crise da nossa geração". "Via nas notícias um grande número de pessoas a chegar em desespero, por várias razões, e via que as atitudes dos governos dos Estados-membros da União Europeia não representavam o que eu achava que devia ser feito", recorda o voluntário português que contabiliza quatro missões a serviço da organização não-governamental (ONG) Jugend Rettet, em entrevista à TSF.

A vontade de ajudar na linha da frente onde as fronteiras se tornam confusas, sobrepunha-se ao negro do mar quando chegava a noite, ao negro do mar quando faltava o entendimento. Miguel Duarte começou por ser tradutor, sempre que a língua do medo falava alto demais. Dominava o italiano e estabelecia o contacto com as autoridades de Itália. Depois, ofereceu um par de braços para ajudar no convés com o equipamento e com as pessoas. Foi também gestor do convés do barco e homem do leme na primeira abordagem às pessoas que fazia passar de um bote para o navio Iuventa.

"É a bordo de um bote no Mediterrâneo que sentimos o resultado das políticas anti-imigração da União Europeia", acusa o voluntário, para quem o processo caiu como água fria. A recompensa pelo "trabalho duro, tanto fisicamente quanto psicologicamente" traduziu-se em sorrisos de agradecimento, em 14.000 vidas salvas, e num processo que, para Miguel Duarte, tem uma agenda política e não legal.

"Nós ainda estamos sob investigação e, de acordo com a lei italiana, o procurador não tem obrigação de nos fornecer as informações que já recolheu. Nós não temos acesso ao dossier do procurador. Não sabemos quais são as missões em causa e as situações em que a Justiça italiana acredita que fizemos algo de ilícito", adianta o português. "Para mim, a razão não tem nada que ver com legalidade ou ilegalidade. A razão é pura e simplesmente política. Nós agimos sempre de acordo com a lei, nomeadamente com a lei internacional e com o centro de coordenação marítimo, que faz parte do Governo italiano", explica.

"Indignação é capaz de ser o sentimento mais comum a bordo do navio de resgate"

Ao longo de quatro missões, cada uma de três semanas, Miguel Duarte assistiu a cenários aterrorizantes, e sentiu que a contribuição de cada voluntário era uma pequena gota num oceano, feita a remar contra a maré.

"Os barcos vêm em muito más condições. A maior parte é de borracha e leva entre 130 e 150 pessoas. São barcos que não estão preparados para essa quantidade de gente, nem para o mar-alto", revela o lisboeta. "Num barco destes, as pessoas estão em permanente estado de perigo, porque uma onda maior ou um movimento menos coordenado por parte daqueles que estão a bordo pode causar o rebentamento de um dos tubos, e, nesse momento, em vez de 150 pessoas a bordo, temos 150 pessoas dentro de água, das quais muitas não sabem nadar nem têm coletes salva-vidas", acrescenta.

A bordo, qualquer passo em falso poderia mudar o curso das operações. Manter os recém-chegados calmos era imperativo. Mas nem todos chegavam a ter a sorte de passar dos pequenos botes inseguros. "Nós patrulhávamos águas internacionais, e, quando encontrávamos um barco em situação de emergência, púnhamos as pessoas a bordo e garantíamos que elas chegavam a um porto seguro", garante Miguel Duarte.

"Muitas vezes chegamos tarde. Muitas vezes, os barcos não são avistados a tempo porque não há meios de resgate suficientes, e o barco já virou ou alguém caiu à água. Muitas vezes não conseguimos retirar as pessoas com vida, e, nessa altura, temos de recolher os corpos", continua o ex-voluntário do Iuventa, para quem a situação é revoltante.

"Imagine-se o que era possível fazer com um programa governamental ao nível da União Europeia"

Morreram 2.262 refugiados no mar Mediterrâneo em 2018, antes de cruzarem as fronteiras de uma nova vida, longe da insegurança da guerra, da fome, da desertificação, da seca e do tráfico humano. "É irónica esta situação. Nós, voluntários sem experiência profissional de resgate marítimo, num navio velho, de pesca, que foi pago com as doações de cidadãos europeus, conseguimos participar no salvamento de 14.000 pessoas. Imagine-se o que era possível fazer com um programa governamental ao nível da União Europeia", comenta o português de 26 anos.

"Todo o dinheiro que a União Europeia enterra em patrulha de fronteiras e a construir muros e redes em campos poderia ser utilizado, em parte, em operações de resgate", acrescenta ainda.

Limitar custos em alto-mar e criminalizar as ONG responsáveis pelos resgates foram opções de alguns dos Estados-membros da União Europeia. Para o ex-presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos e investigador especializado em migrações internacionais, Jorge Malheiros, a crescente ascensão dos discursos populistas de políticos de extrema-direita tem causado uma desvirtuação de uma mensagem a uma só voz por parte da União Europeia.

"Aumentar os salvamentos no mar Mediterrâneo não interessa à União Europeia"

"Implementar um esquema que aumente muito os salvamentos no mar não é algo que a União Europeia queira muito. Não há interesse político nisso", admite Jorge Malheiros à TSF. Um esforço coordenado é, portanto, uma miragem política. "Grande parte da política migratória é definida pelos próprios países, ainda que haja algumas normativas comunitárias", complementa.

Os discursos anti-imigração e que apelam à redução do fluxo migratório culpabilizam os refugiados pelo aumento da imigração ilegal e criminalidade, e, em última instância, as ONGs que possibilitam a sua chegada a território europeu. "Entidades como a Frontex [Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas] referem que existe uma espécie de ligação entre estas migrações e os traficantes de migrantes ou os que promovem a sua chegada à União Europeia. A existir, será uma situação minoritária", adverte o geógrafo.

"A única coisa que as ONGs fazem é, face a uma situação de risco em que os migrantes se encontrem, socorrê-los. Existe um aproveitamento político de uma ou outra situação para se criticar a atuação destas pessoas", conclui Jorge Malheiros.

Desde o verão de 2017, altura em que parte da tripulação do Iuventa foi processada, outras ONG foram indiciadas. A Proactiva Open Arms tem, hoje em dia, o navio impedido de sair do porto, em Espanha. A Mission Lifeline teve problemas em Malta, e o navio também não pode sair. A Sea-Watch também já foi alvo de investigações. O navio Aquarius, pela Médicos sem Fronteiras e SOS Mediterranée, também teve de cessar atividade devido a suspeitas de poluição.

"Acho que eu tive mais problemas na costa do que no mar"

Foi também no verão de 2016 que as notícias dos jornais apelaram a Pedro Pedrosa a intervir no terreno, na Grécia, onde milhas e milhas de mar e precipícios na costa escreviam as entrelinhas de uma crise migratória que acabava de começar.

"A minha primeira missão foi em Lesbos, logo após o acordo com a Turquia, em março de 2016. O acordo não dava muitas possibilidades às pessoas que estavam a tentar atravessar o mar. As autoridades turcas tinham intensificado as patrulhas no mar, por isso muitos barcos não chegavam até à Europa. Quando as pessoas eram apanhadas pela guarda costeira, eram detidas. Muitas foram violentadas, também", conta o voluntário de 31 anos.

Formado em astronomia, encontrou nos campos de Lesbos e Moria, e no mar, universos estranhos com situações adversas a que teve de fazer frente. "No caso da Grécia, há complicações devido a posições mais radicais de extrema-direita. Tentam evitar que este trabalho seja feito. Mas também é verdade que, a seguir às pessoas que fogem, são os gregos que mais estão a sofrer com isto. Por isso, os políticos tentam chegar mais perto do coração das pessoas", refere Pedro Pedrosa.

"O facto de ter havido colegas meus que estiveram detidos na Grécia devido a este trabalho justifica-se pela manifestação da população e das autoridades contra o trabalho de voluntários. Houve coisas estranhas a acontecer. Por exemplo, os nossos jipes apareceram com placas roubadas debaixo das matrículas verdadeiras", explica o voluntário, sobre o incidente que causou a detenção dos seus colegas durante três meses, em território grego.

Na costa os problemas também não tinham fim à vista, com "acusações de espionagem e de não comunicação às autoridades". "Mas, quando estão a chegar barcos de cinco em cinco minutos, é muito difícil reportar", frisa Pedro Pedrosa.

"Campo de Moria tem lotação para 2.000 pessoas e chegam a estar lá 9.000"

"É entendido, pelos Governos italiano, grego, e outros da União Europeia, que, quanto piores condições forem sentidas nos campos, menos vontade têm as pessoas de vir para a Europa", garante o voluntário que participou em duas missões humanitárias: uma em setembro e outubro de 2016, e outra em dezembro e janeiro seguintes.

Não se volta o mesmo dos campos de refugiados, onde milhares de pessoas se perdem na esperança de, mais tarde, encontrarem uma bóia de salvação. "No campo de Moria, há violações e todo o tipo de atropelo dos direitos humanos. Temos de pensar que ali convivem religiões e etnias que podem estar em guerra entre si há séculos. E estão ali concentrados, num campo ou num barco, presos no mesmo local", reflete.

"As pessoas ficam, durante muito tempo, em condições sub-humanas no campo de Moria. Isso serve para desincentivar outros que tenham ideias de vir fazer a travessia para a Europa", lamenta Pedro Pedrosa. "Havia um polícia alemão que nos dizia claramente: 'Eu estou aqui para que as pessoas não venham para cá'. Eram as intenções do Governo dele, e era para isso que estava ali", recorda ainda.

Miguel Duarte e Pedro Pedrosa perderam o rasto às vidas que lhes passaram pelas mãos, mas a solidariedade de partilharem o mesmo ideal de humanidade une-os a outros heróis do mar e das terras que abrem as portas da Europa. "Nasos é um grego que deixou tudo para ir ajudar os refugiados. Deixou o trabalho para ir apenas por uma semana e acabou por ficar lá durante anos. O pagamento que teve foi ser preso, um ou dois meses depois dos grandes incêndios da Grécia, onde também tinha estado a ajudar. Ele suspendeu a sua vida para ir trabalhar de graça como nosso diretor de operações", lembra Pedro Pedrosa.

"É preciso que os políticos tenham coragem para fazer alguma coisa. A opinião pública é muito pouco tolerante a políticas de ajuda a outros que não estão próximos de nós. Os nossos líderes políticos não querem pensar à frente da sociedade, porque fazer isso implica fugir dos populismos e do ideal da maioria. Quando falamos de direitos humanos, temos de pensar à frente da sociedade", remata o cientista que quer que as pessoas estejam acima de qualquer fronteira.

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