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A pior paz possível exceto tudo o resto
Pode um país, em qualquer circunstância, ser algo mais do que o país possível, tendo em conta a sua geografia e história? Da geografia será sempre um prisioneiro. Da história não se livra. Acontecerão estas inevitabilidades com qualquer um, da Noruega ao Malawi, para citar o topo e a base da classificação de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano.
A Bósnia Herzegovina, no dia em que passam 25 anos desde que foi ratificado em Paris o Acordo de Paz assinado em Dayton, Ohio, nos EUA, não poderia ser diferente. A verdade dos factos indica-nos que um acordo que, como assumiu o seu principal patrono, o diplomata norte-americano Richard Holbrooke, era para parar uma guerra e não propriamente para construir uma paz, persiste como garantia única (?) de que bósnios muçulmanos, croatas bósnios e sérvios bósnios não voltaram a andar à pancada entre si, nem voltaram a acontecer massacres e atos hediondos que a jurisprudência do TPI considerou genocídio e crimes contra a humanidade. E isso, venha quem vier, é o mais importante. Pode ser uma paz precária, com defeitos, que não tem permitido construir um futuro, mas não deixa de ser paz. Quando se olha para o que foram aqueles anos noventa do século passado, isso é, sem dúvida, o mais importante. A Bósnia, ocupa o lugar 75 em 172 países no referido IDH.
Liberdade de movimentos, uma das maiores conquistas da paz de Dayton
Os mais otimistas dirão que a Bósnia (para facilitar, omito a "Herzegovina"; que me perdoe o nacionalismo croata bósnio da Herzegovina, os cantões do país com maioria croata, onde a sinalética em cirílico continua a ser persistentemente rasurada e onde os edifícios públicos ostentam bandeiras de outro país, a República da Croácia) é hoje um país consideravelmente soberano, politicamente independente, com a sua bandeira, a sua moeda (marco convertível), com liberdade de movimentos e - tão importante que foi para conseguir o ponto anterior - uma matrícula única para os automóveis. De tudo isso, os exemplos poderiam ser outros, o arranjo pós Dayton permitiu tratar. Já não é perigoso, como era no início de 1996, quando comecei a visitar o território, cruzar as IEBL"s (Inter Entity Boundary Lines), que constituíam autênticas fronteiras, entre as duas entidades que formam o país: a Federação (o politicamente correto fez apagar a designação Croato-Muçulmana) e a República Sérvia da Bósnia ou Republica Srpska. Gente mais distraída pode andar a circular entre um lado e o outro sem perceber que mudou de "entidade". Há 25 anos significava como que mudar de país. E arriscar a vida. Hoje em dia, circula-se por todo o país sem problemas, para negócios, para turismo, porque é preciso ou porque apetece. Como em qualquer país.
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Perdoar talvez, esquecer nunca
Se algum dia, esta máxima tiver sido incorporada nos quadros mentais da maioria da população do país, muito já terá sido conseguido. Em sociedades pós-conflito, um eventual processo de sarar de feridas ou reconciliação pode, ou deve, ser confundido com apagamento da memória ou esquecimento dos factos que marcaram. E na Bósnia, é impossível esquecer. Seja Srebrenica ou Sarajevo, seja Ilidza ou Vogosca, seja Mostar ou Banja Luka, seja Doboj ou Prijedor, seja Tuzla ou Rogatica, seja Gorazde ou Pale. Voltaremos ao modelo de reconciliação mais adiante. Mas por mais teorizações que se possam fazer, enquanto nas respetivas lideranças estiverem os partidos políticos que protagonizaram os sangrentos conflitos de 1992-1995, de pouco valerá.
Potências com braços longos mas... vistas curtas
A culpa não é só dos Bósnios. Mas também. Já lá vamos. Nos próximos capítulos. A falta de pensamento estratégico comum entre UE e EUA tem sido, ao longo dos anos, por demais evidente. Braços longos mas vistas curtas é o que a atuação das potências ocidentais na região tem, amiúde, revelado. Já era assim durante a guerra, desde logo quando Washington sabotou o sucesso do Plano Cutileiro, inicialmente assumido pelas partes aquando da presidência portuguesa das Comunidades Europeias, no primeiro semestre de 1992. A União Europeia e os Estados Unidos falharam e falham no que deveria ser uma pressão sistemática sobre as elites políticas locais no sentido de procederem a reformas fundamentais, que tenham como objetivo último garantir uma melhoria da qualidade da vida da população, frise-se, de ambas as entidades, enquanto estas existirem no ordenamento constitucional do país alicerçado pelo mesmo acordo de Dayton.
A ajuda externa e o trabalho caseiro
A Bósnia continua a ser um país muito dependente da ajuda internacional, com a presença tutelar de um Alto Representante (já ninguém se lembra que começou por ser, no pós-guerra, com Carl Bildt e Carlos Westendorp, uma espécie de representante especial do secretário-geral da ONU e que tinha poderes de governador quase plenipotenciário, nomeadamente os "poderes de Bona", cidade alemã onde ficou decidido que o Alto Representante teria poderes de afastar da vida política pública dirigentes políticos locais se agissem em clara violação dos Acordos de Dayton), com a maior delegação da União Europeia fora de Bruxelas e Estrasburgo. Argumentar-se-á que nem tudo no trabalho internacional no terreno correu bem. Verdade. Mas aquilo que a Bósnia é ou pode vir a ser depende muito do que (não) fazem os políticos nacionais das três "nações constituintes". E estes, a maioria deles, continuam mais preocupados com as linhas de fronteira do que com o abismo da poluição. Continuam absolutamente empenhados na manutenção de privilégios de classe dignos de países altamente desenvolvidos, gozam de uma impunidade considerável num país onde a corrupção não é coisa pouca, estão constantemente mais envolvidos e empenhados nas querelas etno-políticas, e frequentemente querelas político-partidárias dentro do mesmo grupo étnico, do que em criar as condições económicas, sociais, que permitam um salto nas qualificações dos jovens do país e um mínimo de prosperidade que estes só acabam por conseguir, com muitos sacrifícios, no estrangeiro. A Bósnia, como os demais países da região, vive um avassalador cenário de fuga de cérebros que caracteriza a região, em particular nas duas últimas décadas.
Amanhã: os traumas de Dayton; os exemplos a seguir e as lutas inconsequentes; os papéis nefastos de Zagreb e Belgrado; a urgência de novas lideranças; os avisos de Biden.