Testes em massa, confinamentos e restrições de viagens. O descontentamento com a política de "zero casos" de Covid-19 na China faz com que milhares de pessoas protestem nas ruas e apelem ao fim do confinamento e a uma maior liberdade.
Pequim, a capital chinesa, tem estado especialmente protegida contra surtos desde 2020, mas está agora a lidar com níveis mais elevados de contágio: de acordo com o último relatório oficial, mais de 4300 novos casos foram detetados no sábado, 82% dos quais assintomáticos.
Estes números, baixos pelos padrões internacionais, mas intoleráveis para as autoridades chinesas, resultaram em restrições e confinamentos que afetam uma grande parte da população da capital.
De acordo com dados da Comissão Nacional de Saúde, a China bateu no sábado o número recorde de infeções, detetando quase 40.000 novos casos, embora mais de 90% se tratem de casos assintomáticos.
Os números oficiais mostram que cerca de 1,8 milhões de pessoas estão atualmente sob quarentena, uma vez que a diretriz é transferir os casos - incluindo assintomáticos - e também, mas separadamente, aqueles que tiveram em contacto com os infetados, para hospitais ou centros de isolamento.
Eis uma cronologia das principais manifestações relacionadas com a Covid-19 na China desde o início do ano:
Março e abril, Xangai
Foi a partir do final de março, em Xangai, que começaram os protestos contra as restrições na China. Um confinamento exaustivo fez com que houvesse escassez de alimentos na metrópole mais rica do país.
Em abril, um vídeo com residentes desesperados devido ao confinamento tornou-se viral. Os utilizadores das redes sociais publicaram o vídeo em múltiplos formatos, mas mesmo assim acabou censurado pelo governo.
Maio, Pequim
Centenas de estudantes da Universidade de Pequim protestaram contra as medidas rigorosas de confinamento, que permitiam mais liberdade de movimento para os funcionários do que para os alunos. Os campus universitários do país foram encerrados durante quase toda a pandemia, impedindo os visitantes e os estudantes de regressarem facilmente a casa.
Maio a julho, Henan
Centenas de depositantes bancários que perderam o seu dinheiro quando vários bancos rurais da província de Henan congelaram os depósitos relataram que os seus códigos de saúde digital Covid ficaram inexplicavelmente vermelhos à chegada a Zhengzhou, impedindo-os de viajar. Os manifestantes acusaram os funcionários de adulteração do sistema.
Os códigos de saúde são utilizados no rastreio de contactos, estando ligados a documentos de identificação. Em muitas cidades da China, a digitalização de um código de saúde é um requisito para entrar em espaços públicos e utilizar transportes públicos.
Outubro, Tibete e Pequim
Centenas de pessoas na capital regional tibetana de Lhasa, fortemente policiada, organizaram uma rara manifestação contra um confinamento que durou quase três meses. Os vídeos mostraram várias centenas de pessoas a marchar pelas ruas, exigindo que lhes fosse permitido regressar a casa.
No mesmo mês, poucos dias antes do congresso da República Popular da China, um manifestante colocou, ao lado de uma ponte em Pequim, duas faixas pintadas à mão com críticas às políticas do Partido Comunista chinês.
"Sem testes Covid, eu quero ganhar a vida. Nada de Revolução Cultural, quero reformas. Nada de lockdowns, eu quero liberdade. Nada de líderes, eu quero votar. Nada de mentiras, eu quero dignidade. Não serei um escravo, serei um cidadão", lê-se num cartaz.
A outra faixa apelava aos cidadãos para entrarem em greve e removerem "o ditador traidor Xi Jinping".
Novembro, Guangzhou
Os manifestantes da cidade de Guangzhou entraram em confronto com a polícia depois de os confinamentos terem sido prolongados devido a um surto de infeções.
Os vídeos que circularam nas redes sociais mostravam centenas de pessoas na rua a arrancar as cordas destinadas a evitar que os residentes deixassem as suas casas.
"Acabaram-se os testes", entoavam os manifestantes.
Novembro, fábrica Foxconn
Protestos violentos irromperam na maior fábrica de iPhone do mundo, na cidade de Zhengzhou, província de Henan.
Vídeos difundidos pelos trabalhadores da fábrica mostram funcionários em confrontos com agentes da polícia armados com cassetetes e vestidos com fatos de proteção brancos. As imagens mostram polícias a espancar trabalhadores, entre os quais alguns surgem a sangrar da cabeça e outros a coxear.
Mais tarde, a Foxconn ofereceu 10.000 yuans (1340 euros) aos funcionários recém-contratados para se demitirem.
A fábrica, que conta com mais de 200 mil trabalhadores, tem estado fechada desde outubro devido a um surto de Covid-19.
Novembro, Urumqi
Centenas de pessoas foram para as ruas da capital regional de Xinjiang, Urumqi, no final de novembro. Os protestantes culparam o bloqueio da cidade pelo atraso nos esforços de socorro, durante o incêndio que resultou em dez mortos, e apelaram para o fim das restrições.
Novembro, várias cidades chinesas
Este fim de semana, várias pessoas protestaram contra a rígida política "Covid zero" da China, em vigor há quase três anos, mas também para exigir mais liberdade política.
Houve confrontos com a polícia chinesa, que deteve duas pessoas em Xangai, onde manifestantes protestaram no fim de semana contra as restrições sanitárias de resposta à Covid-19 e exigiram mais liberdades.
Um agente disse, à agência de notícias France-Presse (AFP), que uma das duas pessoas "não tinha obedecido a ordens" policiais, remetendo para as autoridades locais quaisquer pormenores sobre as detenções.
Um jornalista da BBC foi "espancado e pontapeado pela polícia", antes de ser detido, em Xangai, enquanto cobria um dos protestos.
A emissora pública britânica, através de um porta-voz, mostrou-se "muito preocupada" ao confirmar que o repórter de imagem Edward Lawrence "foi atacado" em Xangai no domingo, como demonstram imagens partilhadas nas redes sociais, nas quais se vê agentes da policia a arrastarem o jornalista algemado pelo chão.
"É muito preocupante que um dos nossos jornalistas tenha sido atacado desta maneira no desempenho das suas funções", acrescentou o porta-voz, em declarações à estação de rádio britânica LBC, citadas pela agência de notícias Europa Press.
A BBC criticou o facto de não ter recebido nenhuma explicação oficial nem um pedido de desculpas por parte das autoridades, "além de uma declaração de que ele teria sido detido para seu próprio bem, caso fosse contagiado com o coronavírus no meio da multidão".
As ruas foram fechadas no domingo à noite, depois dos protestos, e foram reabertas esta manhã (hora local) com menor presença da polícia, mas com cercas azuis colocadas ao longo dos passeios para evitar mais aglomerações.
No domingo, em resposta aos apelos feitos nas redes sociais, manifestantes saíram à rua em várias cidades chinesas, além de Xangai, como Pequim, Nanjing e Urumqi, para protestar contra as medidas de prevenção e controlo da Covid-19.
Nos protestos, ouviram-se 'slogans' antigovernamentais, numa rara demonstração de hostilidade contra o regime e a rigorosa política "Covid zero", aplicada desde o início da pandemia, em 2020.
Transmissão do Mundial pelas televisões chinesas "pode ter despoletado" manifestações contra "Covid zero"
O antigo embaixador Martins da Cruz afirma que só perceberemos o real impacto destes protestos quando houver uma reação do presidente chinês. Por agora, admite que os estádios do Mundial de futebol cheios de gente sem máscara tenham sido a gota de água para muitos chineses, que estão cansados das restrições da pandemia, porque, reconhece Martins da Cruz, não é comum ouvir nas ruas pedidos de demissão do presidente.
"Uma das coisas que pode ter despoletado este tipo de reação da opinião pública chinesa foi a transmissão pelas televisões dos jogos de futebol do Mundial que estão a decorrer no Catar. As pessoas na China terão começado a interrogar-se: 'então porque é que no Catar podem estar milhares de pessoas sem máscaras a assistir a um jogo de futebol e nós aqui não podemos?' Penso que temos que olhar para isto com algum cuidado, porque estamos habituados a que as reações do governo e das autoridades chinesas tenham características de repressão que nós já não temos nos países ocidentais", afirma, em declarações à TSF.
Pedro Tadeu, militante do PCP, entende que os protestos que estão a acontecer na China revelam a insensatez das autoridades na gestão da pandemia.
"Há uma tradição na China de greve e motins mais ou menos constantes, desde que não ponham em causa o regime político. Pode não haver um protesto político, mas um protesto social constante e recorrente é muito discutido na China e foi tema deste congresso do Partido Comunista Chinês", explica.
Relativamente à gestão da pandemia, o argumento do governo chinês é "'nós pomos a vida das pessoas à frente dos interesses económicos', mas até por aquilo que nós vemos no Ocidente parece ser uma gestão um bocadinho insensata deste problema".
No entender de Pedro Tadeu ainda é cedo para perceber a dimensão destes protestos. No entanto, a economia pode abalar o regime chinês nos próximos tempos.
"Embora a China tenha padrões de crescimento acima dos ocidentais, estão muito abaixo daquilo que esperavam nos próximos tempos e isso pode vir a trazer perturbações e com situações como a guerra na Ucrânia que está a afetar a economia de todo o mundo e as relações da China com EUA isso pode vir a trazer problemas mais sérios", sublinha, acrescentando: "Haverá medidas de curto prazo que acabarão por acalmar um bocadinho a agitação. Se isto depois tem repercussão contínua, eu desconfio que não, mas também temos muito pouca informação sobre este assunto."
* Notícia atualizada às 12h53