Sentado sozinho no quarto, a solidão que esvaziava o Natal era mais contundente. A urgência habitava um lugar frio. Sem nada a perder, Bruno Rafael, nome fictício, jorrou tinta na arte de convencer. "Eu disse 'tentar não custa'. Estava no quarto, tinha tempo. 'Vou escrever uma carta à minha juíza, não custa tentar. Eu tenho bom comportamento, gostava de ir passar o Natal a casa, e colou.' Fui três dias a casa."
É algo de que o portuense de 20 anos se orgulha muito, e até lhe calha em sorte o sotaque tornar-se mais carregado quando os feitos são desta ordem, excecionais. "De todos os jovens que estiveram no centro educativo - todos, quer na Lapa, quer em Coimbra, quer em Caxias, seja de que centro educativo for -, fui o único que, em regime fechado, consegui ir a casa no Natal, não se pode. Não se pode, nunca! É proibido, só os de semiaberto..."
Faz parte de uma minoria de jovens que desde muito cedo mostraram ter traços psicopáticos, mas é muito mais do que o que a avaliação psicológica pode concluir. Olhar fixo, o dedo a bater com firmeza contra a mesa, o relógio surdo querendo fazer-se visto, as ideias o fluxo sonante tornado grave por algo mais do que o tom de voz. Há sempre uma ansiedade sem cadência, vigorosa, a acompanhar-lhe as palavras. Bruno Rafael é todo futuro, atira as histórias como facas, reacende a chama do olhar pela força do discurso. Não há vislumbre de que lhe pesem nos ombros as máculas da vida de crime, mas nos traços que desenham a psicopatia há sombras e esfumados impercetíveis.
Já longe da prática criminosa, Bruno Rafael ainda se lembra da primeira vez que foi parar a uma esquadra de polícia. Tinha os bolsos cheios de haxixe. Com cocaína nunca o apanharam, garante. O mérito foi ter escapado ao flagrante, não a inocência.
A última vez foi pior. Vinte fotografias com o seu rosto, com os de amigos e família em volta, expostas na esquadra do Heroísmo abalaram-lhe a vaidade. O choque e a clausura num centro educativo em Coimbra pararam a roda-viva. "Nos primeiros dois meses no centro educativo, não foi fácil, mas sempre tive uma forma de me adaptar às coisas. Cheguei lá e vi que não tinha hipótese. Na primeira semana, tentei ver o melhor sítio por onde fugir, mas não tinha hipótese e comecei a meter aquilo na cabeça."
Na cabeça, um passado que teimava em não dar tréguas, e que começou logo em criança, quando o rótulo de "hiperativo" se lhe colou à pele. Em busca de liberdade, fugiu quatro vezes de casa. Em busca de liberdade, acabou por ser levado para uma instituição. Nem assim a necessidade de adrenalina constante o desmobilizou. "Já peguei fogo ao meu colégio inteiro. Não me queriam dar a semanada, e eu fui dizer: 'Não se esqueça que tem de me dar os 2,5 euros de semanada. Era um balúrdio!' Disseram que não, que eu tinha saído muitas vezes sem autorização, e eu disse: 'Ai é? O prejuízo vai sair-vos mais caro.'"
Bruno Rafael via-se imparável, uma espécie de 'herói' com aversão aos antagonistas que eram a monotonia, as rotinas e regras, mas com muita impulsividade e marcada ausência de medo. Quando o tema é a família, o adjetivo "complicada" serve como atalho para encurtar a conversa.
"Ela não me ia dar dinheiro para fumar isto ou aquilo, nem tabaco. Quando a minha mãe descobriu que eu fumava, quando tinha 16 anos, ela disse-me: 'Não te dou nem um cêntimo para um maço de tabaco.' Então, tinha de arranjar o dinheiro, e recorremos sempre à forma mais fácil, que é roubar. Eu, com 15 anos, fazia a vida que posso fazer hoje com 20. Quando eu estou com 20 anos, já vou querer estar mais à frente."
Passou a andar com mais de 400 euros furtados no bolso, todos os dias. "Roubar", tal como as drogas, passou a ser um "vício", admite. No Polo Universitário do Porto, chegou a acumular 1500 euros em apenas um dia. No início, os crimes eram cometidos com parceiros, depois a ganância falou mais alto e fê-lo rejeitar cúmplices. Furtava assim, sem se deixar travar pelos remorsos ou pela vergonha. A escalada de crimes foi condensada em 26 processos, entre os quais três processos penais. A chegada ao centro educativo começou a redefinir-lhe o futuro.
A capa da invulnerabilidade começa a cair
"No início ainda era avaliado negativamente, mas depois comecei a portar-me em condições, também com a ajuda dos meus psicólogos." A psicóloga Diana Ribeiro da Silva, responsável por um programa pioneiro de intervenção psicológica desenvolvido por investigadores da Universidade de Coimbra, com a colaboração da Universidade de Derby, no Reino Unido, desmantelou a postura defensiva."'Já falaste? Não tens mais nada para dizer, tens a certeza? Então agora falo eu, e não me interrompes.' Sentia como se estivesse com um amigo ali", descreve Bruno Rafael.
De repente, quem nunca quis confiar em ninguém abriu o livro, baixou a guarda. Não tinha sido feito, até ao momento, nenhum tipo de intervenção que se ajustasse às especificidades deste grupo de pessoas: jovens agressores com traços psicopáticos. Nunca perdendo de vista que a psicopatia é um fator de risco para a violência, o crime e a reincidência, a investigadora acreditou sempre que haveria como provar que "o mal pelo mal não existe".
Foi realizado um ensaio clínico com 119 menores a cumprir medida tutelar educativa de internamento, em todos os centros educativos do Ministério da Justiça. Diana Ribeiro da Silva reconhece que estes são "sujeitos que têm grandiosidade, que têm manipulação, que são frios, que não têm remorsos, que não têm culpa, que são impulsivos e que são irresponsáveis", que, além disso, "tendem a manipular, a enganar, a ter um sentido grandioso de si e importante", e que se deixam levar pela "busca das sensações, impulsividade e irresponsabilidade social". Mas recusa qualquer visão que não vá além das aparências: "São sujeitos que dificilmente se sentiram acarinhados ou amados quando eram miúdos - e nós somos mamíferos, precisamos muito deste contacto próximo com os nossos cuidadores, - e que se sentiram muitas vezes ameaçados na sua integridade física."
Jovens com traços psicopáticos tornam-se "indiferentes", com pouca autocensura à vontade de manipular e agredir os outros, no sentido de lutar pela sobrevivência. "Costumo dizer que eles são uns sobreviventes no sentido em que, naquele tipo de meio, é muito difícil, porque falta o que é mais básico e afetivo. Os comportamentos mais disruptivos surgem quando eles não são capazes de controlar estas emoções, ou seja, quando o estímulo do meio é tão elevado que eles não conseguem esconder este tipo de emoções."
É uma interpretação que está em linha com o pensamento científico mais atual e que salienta a importância da hostilidade do meio para o surgimento do distúrbio de personalidade.
"Muitos destes miúdos têm grandes dificuldades em confiar na outra pessoa. Eles acham mesmo que só dependem deles. Houve um miúdo que partilhou comigo uma metáfora muito engraçada: 'Olhe, mesmo se eu estiver num penhasco, pendurado, e me forem lá dar a mão, eu nunca dou as duas mãos à pessoa para ela me levantar. Eu só lhe dou uma, mesmo que fosse a doutora, eu só lhe dava uma, eu nunca caio, estou dependente de mim."
Com a terapia baseada na compaixão, a psicóloga Diana Ribeiro da Silva quis ensinar estes jovens a serem sensíveis ao sofrimento, não só ao alheio como ao próprio.
Daniel Rijo, docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental e líder do estudo pioneiro realizado em Portugal, explica que a abordagem adotada é "uma nova forma de psicoterapia, que tem sido testada em vários outros contextos, em outras patologias, para tratar outros problemas de saúde mental, e até em contextos não de saúde mental", mas "nunca ninguém a tinha experimentado com indivíduos altamente perturbados de um ponto de vista comportamental e com comportamento agressivo e antissocial".
"É compreensível, é humano que nós tendamos todos a defender-nos todos destes indivíduos, pela perigosidade que eles podem representar. Contactamos pouco com estes miúdos, o que significa que as coisas mais visíveis e que eles melhor mostram são estas características de manipulação, de irresponsabilidade, de impulsividade, de frieza. Por uma questão de proteção, afastamo-nos, e talvez não fiquemos o tempo suficiente com eles para perceber que esta é uma capa de invulnerabilidade para esconder uma vulnerabilidade muito grande."
Apesar de constatar que pessoas com psicopatia estão em presentes em grande parte das organizações, assumindo até cargos de liderança proeminentes, Daniel Rijo esclarece que há uma dificuldade em aceder a esta franja da sociedade. "A maior parte da investigação é feita com as pessoas com psicopatia de um estrato social mais baixo, porque são os que estão acessíveis. Os chamados 'psicopatas de sucesso' não estão juntos num sítio. Nós podemos ir a posições de destaque e de topo, mas aí as pessoas manipulam mais."
Por isso, foi "mais fácil" reunir uma amostra grande onde há mais pessoas com este perfil reunidas. "Só os casos mais graves, ou porque cometeram um 'crime' mais grave, ou cometeram uma sequência: já andam no roubo, traficam, agrediram pessoas, arrombaram casas... É preciso que o tribunal considere que a severidade e o risco de ele reincidir e continuar naquele percurso criminal é grande para interpor a medida mais severa, que consiste na medida tutelar educativa de internamento no centro educativo do Ministério da Justiça."
Daniel Rijo também defende que a ausência de culpa é apenas uma estratégia encontrada, face a um ambiente de constante ameaça. "É uma característica das pessoas com psicopatia que bloqueiem a expressão e a experiência de emoções negativas e dolorosas. A frieza, o bloqueio da culpa, a ausência de remorsos podem funcionar como mecanismos protetores. Não quer dizer que não tenham capacidade de sentir culpa ou remorso." O objetivo deste estudo foi, por isso, tentar que os jovens, com idades compreendidas entre os 14 e os 16 anos, se sentissem serenos sem terem de fugir destas emoções.
"Isto funciona para reduzir os traços psicopáticos, e, não só reduz no fim do tratamento, como, pelo estudo que fizemos de follow-up, ao fim de seis meses, essa redução mantém-se estável, portanto, parece ser um tratamento adequado", regozija-se o investigador que liderou o estudo inserido no projeto "Psychopathy.comp - Modificabilidade dos traços psicopáticos em menores agressores".
Psicoterapia pode desajudar?
Josanne Van Dongen, investigadora da área de Psicologia Forense da Universidade de Roterdão, lembra, também em entrevista à TSF, que, "no passado, os nossos estudos mostravam que a psicoterapia poderia 'piorar' a psicopatia, porque lhes estávamos a dar ferramentas que tornavam mais fácil a persuasão". E, em algumas circunstâncias, a especialista acredita mesmo que isso possa acontecer, mas também deixa ressalvas: "Durante muito tempo, os investigadores acreditavam que a personalidade psicopática não podia ser tratada. Agora, temos alguns sinais de que haja alguns possíveis efeitos em algumas terapias. Fazemos uma distinção entre aqueles que, numa idade muito precoce, estão predispostos a desenvolver estes traços e os que desenvolvem um pouco mais tarde uma psicopatia secundária."
Meio e genética, criação e biologia: a dicotomia é falaciosa, porque no desenvolvimento da psicopatia, tudo se toca. "Alguns estudos mostram que, quando a amígdala é disfuncional, as pessoas mostram ter menos medo, e geralmente pessoas com psicopatia são caracterizadas como 'sem medo'. Também há pessoas que registam algumas anomalias cerebrais geralmente associadas a traços psicopáticos mas que não mostram ter essa personalidade. Por isso, o contexto e a história pessoal podem ter um efeito positivo."
Ao longo da sua investigação, Josanne Van Dongen encontrou pessoas com perfis mais violentos e com ausência de remorsos, que mentiam e manipulavam os outros, mas não hesita em declarar: "Nunca diria que há um ponto de não retorno." Com esperança de desenvolver uma terapêutica para aquela que no passado foi denominada como a doença dos sentimentos, a investigadora de Psicologia Forense também fornece algumas pistas. "Geralmente a tendência era punir os ofensores, porque temos de punir os que são violentos, mas também sabemos que, para muitos deles, isto não ajuda a alterar comportamentos. É mais fácil alterar o comportamento recompensando as boas atitudes, isso pode ser promissor." Mais recentemente, Josanne Van Dongen tem recorrido à modulação cerebral, que considera ser hoje a alternativa com maior potencial. A investigadora exorta, por isso, a olhar mais para a neurobiologia e para tecnologia disponível, para encontrar formas de modelar estes sinais elétricos e estes impulsos que resultam em decisões.
Os investigadores preferem a categorização 'pessoas com traços psicopáticos' do que a palavra 'psicopatas', tantas vezes repetida e explorada pela cultura cinematográfica. Isto aplica-se sobretudo para os menores de idade. "A visão geral é de que os traços psicopáticos, depois de se manifestarem, se mantêm inalteráveis até ao fim da vida. Não acredito que seja necessariamente verdade."
Apenas 1% da população mundial terá psicopatia, e, mesmo entre a população de reclusos, "continua a ser uma minoria, entre os 10% e os 30%, dependendo da prisão e de várias variáveis", revela à TSF James Blair, chefe de Neurociência Afetiva e Cognitiva do National Institute of Mental Health, nos Estados Unidos. "Em média, a severidade da psicopatia é mais elevada nos Estados Unidos do que na Europa, por várias razões históricas e sociais complexas."
A psicopatia revela-se ainda mais frequente entre os homens do que entre as mulheres, mas Josanne Van Dongen que isso se deve a um 'subdiagnóstico'.
"A psicopatia manifesta-se de forma diferente em homens e mulheres. A forma de deteção nos homens diz respeito à manifestação destes comportamentos. Nas mulheres, é diferente. Mostram ser mais manipuladoras, também podem demonstrar violência, mas manifesta-se de outra forma. Temos tendência a sentir mais empatia pelas mulheres, por isso, se elas apresentam comportamento violento, pensamos que deverá haver uma razão muito forte."
Estudo português é "promissor"
De acordo com os psicólogos forenses Paulo Barbosa Marques, Mauro Paulino e Laura Alho, que editaram recentemente a obra Psychopathy and Criminal Behavior, a investigação neste âmbito é ainda muito recente e faltam estudos que "apreciem a eficácia de intervenções terapêuticas que distingam entre psicopatas que pontuem mais elevado num fator de ordem "afetiva" - ausência de remorso -, dos que pontuam níveis mais elevados nas características comportamentais antissociais da psicopatia (frequentemente associadas à criminalidade). O investigador Paulo Barbosa Marques refere como modelo o estudo realizado por Daniel Rijo e Diana Ribeiro da Silva, que "alcançou resultados promissores utilizando a terapia focada na compaixão no tratamento de jovens com traços psicopáticos".
"O desafio será combinar as potencialidades de diferentes abordagens terapêuticas, adaptando-as aos diferentes destinatários e monitorizando continuamente a mudança terapêutica", sustenta.
Stephane de Brito, psicólogo e diretor do Laboratório de Neurociência e de Psicologia da Universidade de Birmingham, admite que estudos como esta investigação pioneira portuguesa são grandes avanços. "Não há muitos estudos que identifiquem jovens com essas características e os acompanhem à medida que envelhecem. Sabemos que essas características possíveis, esses traços emocionais, têm algum nível de estabilidade, mas também mostram algum nível de variação. Não há um estudo que possa mostrar com certeza que, se um jovem mostra esses traços, com certeza será um adulto psicopata."
A psicopatia não é uma doença. Esta é só uma das ideias feitas que, na opinião do cientista, devem ser desconstruídas. Muitas destas narrativas, sobre a ultraviolência, são até veiculadas pelo universo dos filmes e das séries. "Esses são a minoria. Existem alguns casos, casos notórios de indivíduos com psicopatia que acabam por ser realmente extremamente violentos, e há casos de serial killers, que, quando olhamos para a história deles, não parece haver nada de errado na sua educação, mas eu diria que esses são a minoria. E é por isso que eles geralmente atraem tanto interesse nos media, porque pensamos assim: por que é que eles se tornaram assim se eles têm pais e familiares amorosos e carinhosos?"
A terapia focada na compaixão pode ser o atalho para um futuro com menos sofrimento. Em Portugal, Diana Ribeiro da Silva e Daniel Rijo querem continuar a evitar decisões impulsivas que condenem à vida de crime uma minoria de jovens. "Uma vez que os miúdos responderam tão bem a este tratamento, e melhoraram significativamente, vamos ver se, quando melhoram, isso também se reflete numa melhoria do funcionamento do cérebro. Isto é uma aventura para vários anos e precisamos de muito dinheiro", afirma Daniel Rijo.
Bruno Rafael saiu da clausura imposta pelo sistema de justiça em 2019. Hoje trabalha e garante não fazer parte dos números da reincidência. Pratica boxe para descarregar a adrenalina que ainda sente, tem objetivos novos e quer ser a estatística que valida a esperança.