"Os nossos filhos não podem ter a mesma ausência de direitos com que nós sofremos"

Yunior García. Artista, dramaturgo, e desde 15 de novembro, mais um exilado cubano, após ter sido um dos principais organizadores das manifestações convocadas para esse dia no país. Entrevista na TSF.

O Yunior está exilado em Espanha desde novembro de 2020. Por que é que decidiu sair de Cuba?

Quando alguém decide opor-se ao regime dentro de Cuba, acabam por te deixar sem possibilidade de fazer o que quer que seja. Começam por cortar-te o acesso à Internet, depois o telefone, depois impedem-te de saíres de casa, depois ameaçam-te com tudo o que têm... usam as instituições, o teu trabalho, os teus familiares, os teus vizinhos... fazem de tudo para que sintas que não pertences a esse sítio, que deves sair desse lugar e que estás sozinho. No nosso caso, fizeram uma campanha terrível na televisão pública onde todos os dias falavam de mim como se fosse um terrorista, um traidor, um mercenário, um agente da CIA.

Quando percebi que provavelmente o destino que me esperava nem sequer era a prisão, coisa que estava disposto a assumir com dignidade, nem sequer era esse o caminho mas sim uma prisão dentro da minha própria casa, totalmente incomunicado, decidi que para ser útil ao meu país, tinha de sair.

O Yunior tinha preparado uma manifestação em solitário para dia 14 de novembro de 2020, que acabou por não se realizar. O que aconteceu?

No dia 14, desde muito cedo, desde as 5 da manhã, que acordámos e vimos uma mobilização de pessoas e carros perto de uma escola que fica ao lado do meu prédio. Assim que amanheceu, estes carros rodearam o prédio com pessoas que apesar de estarem vestidas à civil eram agentes de segurança do estado. Um carro da imprensa internacional com acreditação em Cuba tentou chegar perto do meu prédio e foi impedido. A minha janela foi rodeada por bandeiras para que a imprensa não pudesse tirar fotografias quando eu me aproximasse da janela; e cerca de 200 pessoas começaram uma espécie de linchamento com gritos, canções e ameaças durante todo o dia.

Ao meio dia tentei sair de casa mas havia perto de 12 pessoas à porta da minha casa que me disseram que eram meus vizinhos, ainda que nenhuma delas o fosse e que me disseram que estavam ali para impedir que eu pudesse sair e fazer a minha manifestação sozinho. Em baixo, estava uma grande multidão de pessoas que eu também não identifiquei nenhuma como sendo do meu bairro, que gritava todas as ofensas que possam imaginar: este bairro não te quer, este bairro é dos comunistas, escolheste a casa errada, tens de te ir embora, vimos-te a cara, não vais poder sair daqui, quando te virmos, vamos fazer contigo o que quisermos e outras ameaças e ofensas.

Como foi a sua saída do país?

Bom, primeiro nós sentíamos que em casa já não estávamos seguros e uns amigos ofereceram-se a tirar-nos dali e a levar-nos para outra casa mais longe da Havana e nós aceitámos. Não tínhamos a certeza de que isto fosse possível, mas surpreendemo-nos porque, de madrugada, já depois da meia noite, quando uns amigos nos foram buscar, a patrulha que estava na esquina deixou-nos passar. Entendemos então que a segurança do Estado já sabia tudo, estava ao corrente da possibilidade de que saíssemos de Cuba e estava simplesmente a abrir-nos o caminho para que fossemos embora. No dia seguinte, perto das 5 da tarde, ligaram-me da embaixada de Espanha a dizer que o meu visto estava pronto. Eu tinha pedido um visto a Espanha com a ideia de, no caso de me prenderem, ser mais fácil negociar uma saída da prisão. E finalmente, deram-nos um visto de 90 dias. Com esse visto uns amigos que não posso revelar a identidade porque continuam em Cuba e correm o risco de serem perseguidos e até expulsos do país, ajudaram-nos com os bilhetes, compraram os bilhetes e partimos no dia seguinte. Ou seja, dia 16, perto da meia-noite, apanhámos um avião da Ibéria e viemos para Espanha.

Sendo assim, por que é que acha que o Governo os deixou sair?

Acho que o escândalo seria maior se nos tentassem prender. No meu caso tentaram fazê-lo de varias formas, eu saí sob medidas cautelares, desde o dia 11 de julho que eu estava sob medidas cautelares, porque supostamente estavam a investigar-me e ainda assim deixaram-me sair. É provável que até me possam condenar agora, na minha ausência, por ter violado as medidas cautelares. Há pessoas que são muito mediáticas, muito conhecidas e que continuam na prisão: é o caso de José Daniel Ferrer, de Maikel Osorbo, vencedor de um prémio Grammy, Luís Manuel Otero Alcántara, conhecido em todo o mundo... eles realmente não têm um modus operandi igual para toda a gente. No meu caso, facilitaram a minha saída pensando que se livravam de alguém que tem sido muito incómodo no último ano.

Falou com alguém do Governo espanhol?

Realmente, do Governo de Espanha, só falei com o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Foi um encontro breve onde ratificou o seu compromisso com a liberdade e a democracia. Também tive encontros com outros grupos políticos espanhóis, como o Partido Popular ou o Mais Madrid. Estou aberto a falar com toda a gente.

Depois das manifestações de 11 de julho, quando milhares de cubanos saíram à rua em várias partes do país, esperava-se uma adesão parecida para estas manifestações de novembro. O que é que falhou?

Porque o Estado utilizou o recurso que melhor tem funcionado: o terror. Não só intimidaram as pessoas que interatuaram nas redes sociais de forma favorável com as manifestações, como também às suas famílias, nos seus centros de trabalho, nas escolas, na vizinhança e foram ameaçando estas pessoas de muitas formas. Em Cuba, vivemos num estado de terror onde o regime controla todos os movimentos dos indivíduos. Ameaçam-te com o teu trabalho, com o teu salário, com a tua liberdade, e, às vezes até com a tua vida. E, lamentavelmente, nesse equilíbrio com o qual temos de lidar os cubanos, entre medo e dignidade, o medo ainda pesa demasiado.

O Yunior tem sido uma voz muito crítica com o regime a partir da plataforma Arquipélago, um movimento social de contestação ao Governo cubano. Como nasceu a plataforma e o que pretendem conseguir?

Realmente eu, nas minhas obras de teatro, já era muito crítico com a realidade que se vivia em Cuba. Mas, chegou a um ponto em que não era suficiente denunciar a realidade apenas como artista. Como cidadão tinha um compromisso maior, mais responsabilidades, para tentar mudar a situação. A 27 de novembro de 2020, em solidariedade com o movimento de grevistas de San Isidro, um movimento de artistas jovens que estavam em greve de fome, decidimos sair para protestar e reunimo-nos diante do Ministério da Cultura, depois aconteceram algumas manifestações mais pequenas noutras regiões, mas já sabíamos que no verão, com as falhas de eletricidade, a inflação e o descontentamento geral popular, poderia dar-se uma revolta social em qualquer momento. No dia 11 de Julho vimos como San António saiu à rua e percebemos que o nosso lugar não era simplesmente dar um like ou apoiar a partir do telefone, mas sim que devíamos sair à rua também. Portanto todos os cubanos que sentiram isto, saíram à rua nas suas cidades e, para mim, foi a maior revolta social da história de Cuba.

Depois disso, com a quantidade de presos, com mais de mil jovens presos, sem que o Estado reconhecesse que aquilo que tinha acontecido era uma revolta social, e criminalizando as manifestações, decidimos que era o momento de organizar uma plataforma que pusesse o Regime em ridículo cada vez que dissesse que respeitava o direito à manifestação pacífica. Criámos o movimento para a manifestação de 15 de novembro, fizemos cartas de convocatória, da forma mais transparente e pacífica possível, e ficou clara a afirmação do regime de que ia respeitar estes direitos. Mas, no dia 15 de novembro, ficou demonstrado que é um regime que não está disposto a respeitar nem os direitos humanos, nem sequer os direitos da constituição que eles mesmos escreveram.

A situação económica de Cuba agravou-se ainda mais com a pandemia. A escassez de produtos, a inflação de preços, a queda do PIB... qual é a situação do país atualmente?

Bem, a situação de Cuba é muito complexa porque se vive uma situação de muita injustiça social. Em Cuba investiu-se muito mais em hotéis durante a pandemia do que no resto da economia. A agricultura é um desastre, o Estado controla quase tudo o que tem a ver com os grandes negócios e quase tudo funciona de maneira negativa. Tomaram umas medidas, uma espécie de terapia de choque durante a pandemia que fez subir os preços de forma escabrosa, que quase ninguém pode pagar. É um país totalmente ineficaz, cheio de corrupção, onde praticamente toda a gente rouba no seu centro de trabalho para poder sobreviver. As pessoas tentam fugir do país, tentam sobreviver com as remessas de dinheiro que mandam os que já conseguiram fugir do país. "Inventando", como dizemos os cubanos. "Na luta", como dizemos os cubanos. O basebol já não é o desporto nacional, o desporto nacional é a luta. Porque o cubano luta pela comida, luta pelo dinheiro do dia, luta pela roupa que quer vestir e passamos a vida nisto. E muitas vezes não temos coragem como povo para entender que somos nós quem tem de mudar isto, que não vai vir nenhum salvador, nenhum messias a entregar-nos a democracia, a liberdade, a prosperidade, mas que tudo isto tem de ser uma conquista nossa, como cidadãos.

E o que é que falta para que os cidadãos se lancem nessa conquista?

Acho que falta um pouco de esperança porque é um povo que se resignou, que alcançou um tal grau de cinismo que vê que a sua única saída é fugir do país e não ficar para mudar as coisas. Há uma frase terrível em Cuba porque é muito pessimista que diz que "ninguém acaba nem arranja isto". E temos de acabar com isto. Temos de dar esperança aos cubanos e acho que a comunidade internacional tem uma responsabilidade nisto. Há que ter consciência que em Cuba há um governo, um regime, uma ditadura que abusa dos seus cidadãos e que não se pode tratar em nenhum espaço internacional como se fosse uma democracia, porque não o é.

Há também a questão do embargo dos Estados Unidos. Qual é a sua posição?

Eu já me opus ao embargo muitas vezes, porque estou farto de que o Governo use o embargo como desculpa para justificar toda escassez que há em Cuba. Os cubanos sabem perfeitamente que o principal problema se chama ditadura e que o principal embargo é o embargo interno. E, às vezes, parece que o Governo não tem nenhum desejo de que lhe retirem o embargo porque é a sua tábua de salvação. Sempre que há alguma crítica a nível internacional, falam do embargo e conseguem convencer algumas pessoas. Eu acho que devia deixar de ser uma coisa bilateral, entre os EUA e Cuba. Esta ditadura tem sanções, mas tem sanções por parte de toda a comunidade internacional. O equilíbrio estaria em como estabelecer essas sanções à ditadura mas afetando da menor forma possível a população, para que possa prosperar e alimentar-se e vestir-se com dignidade.

Díaz-Canel é o primeiro líder do país sem o apelido Castro. Mudou alguma coisa?

Em Cuba a imagem de Díaz Canel é a de uma fábrica de memes. A sua falta de eloquência e de carisma são inegáveis e é alguém que também não tem muito talento na hora de criar equipa. Também como sabem que são menos preparados, menos carismáticos, menos seguidos, têm de recorrer mais vezes à força e à repressão, o que é lamentável. Mas, de todo o modo, oxalá nunca volte a aparecer em Cuba um Fidel Castro, alguém que volte a transformar o povo em fanáticos do individualismo e do culto da personalidade. Oxalá Cuba entenda as lideranças uma forma totalmente nova. Uma liderança muito mais plural, mais representativa, que tenha a ver com as minorias. As pessoas têm de deixar de esperar o messias ou o caudilho.

Ainda há esperança de que seja o próprio Governo a liderar qualquer tipo de mudança?

Não, na verdade eles nunca vão mudar a não ser que estejam suficientemente pressionados. Acho que a solução tem que estar nos cubanos. Na pressão que os cubanos podem exercer nessa cúpula para que as poucas pessoas que ainda têm ética dentro do grupo governante decidam assumir uma mudança. Eu acho que a mudança em Cuba vai vir de dentro e de cima, ou seja da cúpula governativa; mas para isso, é preciso que exista pressão: tanto em baixo, na sociedade civil cubana, como na comunidade que está exilada e na comunidade internacional. Quando este regime se vir realmente pressionado para tomar medidas de abertura é provável que aconteçam. Mas, entretanto, estão muito confortáveis, porque há uma parte do mundo que ainda que não os apoia, adotou um silêncio cúmplice.

São conhecidas as divisões internas que existem na oposição cubana... dentro do país, no exílio também... Vê alguma possibilidade de entendimento para um objetivo comum?

Para isso tem que se fazer um trabalho rigoroso e é parte daquilo que eu pretendo fazer: estabelecer contactos com outros cubanos para conseguir chegar a consensos mínimos. Eu acho que já é hora de que os cubanos honestos não continuem a cair nesses jogos de divisão e de trincheiras, como eu lhes chamo, como se tudo se determinasse a partir da ideologia, como se já tivéssemos democracia. Acho que os cubanos têm de entender que as nossas diferenças existem, é bom que existam mas que se poderão expressar com mais intensidade quando tivermos democracia. Agora, o que temos de entender é que temos de deitar abaixo uma ditadura e que para isso é preciso chegar a consensos mínimos entre todos, deixando de lado as diferenças. A oposição agora está mais dividida e eles, o regime, a polícia política, tentaram potenciar essa divisão que existe na oposição.

Agora que saiu do país tem medo que os cubanos olhem para si como mais um dissidente que depois de alcançar certa notoriedade se exilou e abandonou a luta dentro de Cuba?

Sim, de alguma forma, alguns já me veem assim. É algo doloroso e inevitável e por isso sei que em algum momento vou ter de voltar porque a luta mais importante está dentro do país. Algumas opiniões mudaram ao longo dos dias porque apesar de estar em Espanha com um visto de turista, não estou de férias. Estou sem pregar olho, sem descansar, a tentar fazer o que posso desde aqui, que, paradoxalmente é muito mais do que o que podia fazer desde Cuba. Porque do que estou convencido é de que essa carga não a podemos deixar às novas gerações como herança. Não podem ser os nossos filhos a ter de enfrentar a mesma ausência de direitos que nós sofremos.

Vai regressar a Cuba?

Eu tenho intenção de voltar a Cuba mas para que isso aconteça tenho que preparar bem as condições para que esse regresso seja efetivo: não pode ser um ato suicida nem um show mediático e, claro, de forma a correr o menor risco possível. Não quero passar 27 anos numa prisão cubana onde sabemos as condições em que estão os presos políticos do país. Durante o tempo que estiver aqui quero fazer o maior número de contactos possível, dar o testemunho do que continua a acontecer em Cuba, e tentar entrar em contacto com outros cubanos que estão a fazer ativismo fora de Cuba e ver como nos podemos organizar e como podemos estabelecer uma rede com muito mais coesão.

Quais são os passos seguintes?

Eu não quero ganhar o pão com o ativismo. O ativismo é algo que eu faço de forma totalmente voluntária. Quero trabalhar na minha área mas também em qualquer outra coisa para conseguir um sustento decente. E, entretanto, serei ativista. Não quero que a luta pela liberdade de Cuba se transforme no meu modo de vida. Quero viver para dedicar essa vida à luta pela liberdade de Cuba.

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