Partidas sem retorno e regressos incertos nos seis meses de guerra na Ucrânia
Guerra da Ucrânia

Partidas sem retorno e regressos incertos nos seis meses de guerra na Ucrânia

Após a fuga em massa de milhões de ucranianos logo no início da invasão russa, em 24 de fevereiro, para o estrangeiro ou regiões mais seguras do país, a evolução da guerra continua a determinar o trânsito de pessoas e, no caso de Andrei, de 35 anos, o regresso à casa da partida é uma data incerta no calendário, ou nunca acontecerá.

À porta de um centro de deslocados em Odessa, no sul da Ucrânia, o rosto denuncia o cansaço de quem anda a fugir há seis anos. A sua jornada foi aberta em 2016, quando a guerra no Donbass, dois anos antes, o forçou a sair com a mulher, deixando casa e um emprego numa mina na região de Lugansk, e recomeçar a vida em Kherson, no sul do país.

Voltou a encontrar casa e trabalho como carregador numa fazenda, mas a sua passagem por Kherson foi um mero intervalo de pouca duração, quando esta foi uma das primeiras cidades a cair para controlo russo, logo no início da invasão.

Ainda assim, demorou quase dois meses para se dar conta da insustentável situação em Kherson. Foi determinante, no seu relato, o dia em que foi comprar porcos numa quinta. "Apareceram os russos e confiscaram metade dos porcos. Ainda protestei, mas tive de parar quando abriram fogo sobre o carro como aviso."

Também lhe confiscaram o telemóvel, e, conta, só lhe seria devolvido se pedisse com "bons modos". Neste desafio de "completa humilhação", Andrei ficou sem metade dos porcos, mas recuperou o aparelho. Logo a seguir, decidiu sair dali.

No final de abril, Andrei relata que, quando chegou ao último controlo militar russo, não o deixaram passar: "Os militares disseram-me 'ligue para o Putin, talvez ele possa ajudar", recorda, comentando: "Não se discute com um homem de Kalashnikov nas mãos."

Só no mês seguinte, conseguiu integrar uma coluna de 200 carros, com destino a Odessa, mas acabou por ficar retido mais algum tempo em Mykolaiv. "Outros escolheram outra rota e foram atingidos por grads [lança-rockets] e, tanto quanto sei, vários ficaram feridos."

Em suma, Andrei e a mulher só lograram chegar a Odessa há dois meses, juntando-se a uma estimativa de 95 mil deslocados apenas nesta região, vivendo do apoio de um centro que reúne várias organizações, e que lhes fornece roupa e comida. Não consegue emprego, queixando-se de discriminação, porque "ninguém quer dar trabalho a alguém de Kherson". Nem sequer a mesma companhia que o empregava antes da guerra.

O futuro é algo que se sente incapaz de ler. Sabe que à sua terra em Lugansk não volta tão depressa, "até porque está tudo destruído" e jamais o fará se for território russo. "Neste momento, espero paz. Não sei como Putin e Zelensky vão resolver a situação, mas só quero paz. Estou farto disto."

A aparente segurança de Odessa nos últimos meses tornou-se bastante persuasiva. De cidade acossada no início da invasão, a guerra apenas interrompe as rotinas dos seus habitantes em bombardeamentos ocasionais, como aquele que ocorreu num resort junto ao Mar Negro, ou na persistência dos alarmes aéreos que soam várias vezes ao dia.

Numa cidade que, na sua quase normalidade, em que praticamente tudo contrasta com Mykolaiv, a pouco mais de 100 quilómetros a nordeste, atormentada por ataques diários há várias semanas, Nadya, de 31 anos, reencontrou o seu lugar, com o seu bebé, Emma, de oito meses.

Ambas foram refugiadas na região de Estugarda durante mais de cinco meses e agora acabam de abandonar as estatísticas de 6,3 milhões que fugiram da guerra e permanecem em países vizinhos. A decisão de voltar foi tão difícil como a de partir, no início de março. "Mas na altura não havia grande coisa a fazer e resolvemos tudo num quarto de hora."

Viveu todo este tempo com a mãe e a filha numa casa de familiares e as autoridades alemãs estavam prontas para ajudá-la na quase totalidade para ter uma casa própria, além de apoios mensais. Mas teria de se comprometer durante um ano e essa ideia ficou insuportável. "Não ia ficar ali para sempre."

Por outro lado, as notícias dos ataques contra alvos civis, em concreto contra um centro comercial em 23 de abril em Odessa que matou um bebé de três meses, adensavam a indecisão, até que surgiu, do outro lado da balança, outra "ideia insuportável" e que se tornou num "gatilho" para o regresso.

"Quando na Alemanha se ouve russo, a maioria das pessoas pensa que são refugiados, mas não são. Muitos são russos com nacionalidade alemã, e que só veem imprensa da Rússia e acreditam na propaganda de Putin", descreve, deixando bem claro: "Atenção, eu sou filha de um russo e se quisesse também seria russa, mas não quero."

Nadya sentiu esse desconforto várias vezes com os seus familiares que vivem na Rússia e em particular quando lhes enviou notícias do ataque ao centro comercial. "De volta, mandaram-me notícias manipuladas que acusavam a Ucrânia de colocar meios militares em instalações civis em Kharkiv. Eu mandei-lhes factos, eles mandaram-me treta."

Naquela "tempestade de sentimentos", em que acabaram por triunfar argumentos pessoais, numa resolução solitária com a filha Emma, as suas origens na massacrada Mykolaiv, onde permanecem um avô, uma tia e uma irmã, acabaram com tudo e está agora em Odessa, empregada numa empresa de marketing, sentindo-se 90% segura. "Os outros 10% vêm dos alarmes aéreos", lamenta, com a consciência de que "já não há certeza de nada e tudo pode mudar de novo".

Nesta plataforma giratória de pessoas que se tornou Odessa desde o início da guerra, Mariya, de 25 anos, não fazia planos de sair. Era produtora de um canal de televisão privado, mas o seu programa acabou e tentou a sorte como jornalista, quando a guerra estava prestes a começar. Lembra-se de ir a uma conferência de imprensa, no dia 23 de fevereiro, "e as autoridades tentavam acalmar toda a gente". No dia seguinte começou, o telefone não parava, os grupos de conversação explodiam. "Muita gente não foi trabalhar, mas eu fui."

Ao fim de duas semanas, partiu para a Alemanha mais a sua editora - "basicamente, porque o meu marido me obrigou"- entrando naquele carrossel de milhões em fuga e "comboios cheios, autocarros cheios, porque todos fugiam", documentando todo o percurso para um documentário intitulado "O inferno na Ucrânia".

Não se demorou, porém, como refugiada, quando a sua editora e companheira de fuga soube logo a seguir que o seu sogro tinha sido morto num ataque aéreo - "a família nunca viu o corpo" - e voltou à Ucrânia. Mariya ficou apenas mais uns dias. "Comecei a sentir-me culpada e também voltei."

Quando regressou a Odessa, o canal Odessa Live já não existia, a sua carreira efémera de jornalista estava suspensa e logo a seguir o seu próprio casamento acabou. "Há coisas piores nestes dias", condescende, quando tenta perceber o que vai fazer a seguir, enquanto vive em casa da mãe e junto dos seus gatos, além do projeto de voluntariado que transforma recipientes de cigarros descartáveis em carregadores de dispositivos eletrónicos para os soldados da frente.

Em seis meses, a sua vida ficou algo "totalmente diferente do que imaginava", mas admite que nada disto é inesperado: "Tinha de acontecer porque a guerra já dura há vários anos. Não numa grande escala, mas estava lá e nunca fomos países irmãos, até porque somos livres e eles não."

Mas, nesta fase, Mariya sente que já perdeu a agressividade contra os russos e as próprias emoções já se escapam, mantendo-se, apesar de tudo, esperançosa na vitória e no que ela significa para os militares ucranianos, primeiro, e para todos a seguir. "Até lá, só é preciso evitar o burnout."

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