Reportagem TSF. A guerra que fica dentro da cabeça
Reportagem TSF na Ucrânia

Reportagem TSF. A guerra que fica dentro da cabeça

O edifício da escola primária nos arredores de Lviv é pardo, como são todos os enormes prédios de habitação que estão à volta. Herança do domínio e da construção soviética, que faz com que as cidades pareçam todas iguais, monocromáticas, de um cinzento neutro, pardacento, o inverno não ajuda. As árvores estão despidas e tristes; os canteiros sem relva; e a pouca neve - que cai, em flocos minúsculos, como se fossem apenas uma chuva grossa que pousa no casaco - também não é suficiente para cobrir a paisagem daquele branco imaculado que fica bem nos postais.

Nos vidros da escola há cor. Desenhos das crianças até ao quarto ano, todos feitos antes de 24 de fevereiro. Cenas de um inverno, apesar de tudo, feliz. Temas natalícios, pais natal, árvores enfeitadas e luminosas, trenós e renas. Até há pouco, havia ali crianças ordeiras, mas barulhentas, a bola a rolar no campo de futebol acabado de renovar, corridas e gritaria.

Hoje, a escola, que parece não ter fim, recebe deslocados. Ucranianos que vieram do leste, perto de Donbas. E outros que chegaram de Kiev e Carcóvia, duas cidades debaixo de fogo desde o primeiro dia. Ao fundo de um dos enormes corredores, agora vazio, está Turovskii Volodymir. É pintor. Sentado no chão, desenha na tela, em letras vermelhas, grossas, vistosas, a mensagem «Real Fascism». O verdadeiro fascismo. A pintura revela ainda, em detalhe, dois aviões, um soviético da atualidade e um outro alemão, da segunda guerra. São, para ele, a mesma coisa. Putin acusa os ucranianos de serem nazis, este Volodymir retribui com a sua arte. Depois, vai buscar outro quadro, já terminado. Há um tanque de guerra imponente, negro, que transporta uma bandeira da Ucrânia. A cores. Vivia em Carcóvia (Kharkiv). Uma das cidades mais atingidas pela aviação russa. Quando viu a sua casa ser destruída, apanhou boleia para Kiev e, depois, o comboio para Lviv. Quando lhe pergunto qual é a última imagem que tem na cabeça da cidade onde vivia, pega no telefone e começa a mostrar os quadros que pintou. Eram retratos grosseiros, mas felizes. Repito a pergunta. Imagem que guardou na memória. Mostra-me mais pinturas.

Volodymir já não está ali. Ficou preso no dia antes da guerra começar. Volta ao quadro.

Andriy, 59 anos, parecem 70, tem a sua própria versão da história recente da Ucrânia. «Vivemos num sistema feudal. É tudo feudal. A política, a economia, o futebol, o exército, tudo. A Ucrânia é feudal». Apresenta-se como cientista, especialista em tecnologia. Depois, como professor universitário. Diz ter sido afastado, porque a Universidade também é feudal». Recorda a revolução laranja (2004), e lamenta que essa democracia sonhada pelos cidadãos tenha durado pouco. Biden é «corrupto», por isso não para Putin. A corrupção está na base desta guerra. «A minha vida acabou». Deixou ficar a mãe em Kiev, e isso não o deixa dormir. E, além disso, não tem computador nem internet, por isso está desesperado. Não pode manter o seu canal no YouTube, onde explica com detalhe todas as teorias que tem sobre o seu país e o mundo em geral.

Andriy já não mora aqui.

Danil, 14 anos, estudante. Fugiu de Donbas, a região que desde 2014 está em conflito. É o leste da Ucrânia, onde há mais russos e onde as tropas de Putin se sentem em casa. Desde os oito anos, acabado de entrar numa escola como aquela em que está agora, que convive dia a dia com a guerra. Uma de "baixa intensidade" como dizem os militares, mas uma guerra. Danil recusa fotografias. Ele e a mãe tiveram uma oferta de asilo em Portugal. Estão a pensar. Nem sabem bem onde fica, como será o país, o que vão encontrar. Há duas coisas que Danil sabe. «Estou assustado, tenho medo». E sabe outra coisa. «Não quero voltar para casa».

Danil não quer morar aqui.

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