Reportagem TSF. Como uma estrada isolada numa aldeia ucraniana se transformou numa armadilha de guerra
Guerra na Ucrânia

Reportagem TSF. Como uma estrada isolada numa aldeia ucraniana se transformou numa armadilha de guerra

Há um cemitério de carros em Oleksandrivka, na região de Kherson. Mas não é fácil chegar até lá. Quem vem de Mykolayiv tem de ultrapassar mais de uma dezena de postos de controlo da defesa ucraniana. A estrada apresenta as marcas da guerra: está esburacada e lamacenta. Nas bermas, os veículos militares abandonados assinalam as batalhas de um tempo em que as linhas eram incertas.

Nos campos em redor multiplicam-se os avisos de minas. Não são poucos os restos de rockets, mísseis, que se veem. O caminho faz-se pelo interior de várias aldeias, sempre junto à costa. São 50 quilómetros que se estendem por quase duas horas.

Para quem não ficar preso na lama, a entrada na aldeia faz-se por uma estreita via que separa o lago Solonets do Golfo do Dnieper. Logo depois, entramos finalmente em Oleksandrivka, mas não sem antes pararmos em mais um posto de controlo.

Mais à frente estão uma bandeira ucraniana numa carrinha vítima da guerra e o que resta de um tanque T-90 russo que não conseguiu escapar da trincheira e está apontado para a estrada, aquela estrada. Subimos um pouco e chegamos ao centro da aldeia.

Chegar até lá não é fácil, mas alturas houve em que sair ou chegar foi impossível. Na estreita faixa de terra que acabamos de percorrer, entre massas de água, há mais de uma dezena de carros civis e um par de camiões, um deles ainda carregado com os alhos que ali perto se produzem: alguns olham para Kherson, outros apontam para Mykolaiv. Em comum têm uma perigosa proximidade com a água.

É impossível dizer quantas pessoas terão morrido neste troço de estrada com pouco mais de cem metros. Em quase todos os veículos são bem visíveis as marcas dos tiros de pistolas. Alguns dos veículos estão totalmente calcinados, outros têm marcas de ferrugem, e outros até nem têm grandes marcas do tempo. As margens íngremes deixam adivinhar que alguns automóveis podem já ter sido engolidos pela água.

Desta história, como de todas as outras, correm versões diferentes, mas que coincidem em vários pontos fundamentais: eram carros civis, estavam ali porque as autoridades russas tinham anunciado a abertura de um corredor humanitário, foram atacados a partir de posições russas e o número de mortos ainda está por determinar.

"Foram os russos que rebentaram com a caravana quando as pessoas tentaram sair em direção à zona ucraniana", conta Ivan Zayets, uma das 16 pessoas que viveram na aldeia juntamente com o exército de Moscovo.

O homem dá mais detalhes: "Alguns ainda tentaram voltar para trás para levar mais pessoas, foi nessa altura que os esmagaram." Ou seja, depois de as autoridades russas terem anunciado a criação de um corredor humanitário para permitir a saída de refugiados para o lado ucraniano.

Vários carros juntaram-se e, quando já estavam a chegar a terra de ninguém, o primeiro foi alvejado. Isto fez com que se formasse uma longa fila de trânsito numa estrada rodeada de água. Não há alternativas.

Um a um, os carros, quem os conduzia e quem neles seguia caíram, um a um, na armadilha russa. Todos, na mesma sequência e pela mesma ordem com que tinham confiado em Moscovo para fugir dali.

Os dois lados saberão o que aconteceu: do mesmo modo que todas aquelas viaturas ficaram à mercê da linha de fogo russa, também a linha ucraniana tinha vista desimpedida. Os homens de Kyiv dominavam uma colina na outra margem e de onde conseguiam observar o lugar onde tudo aconteceu. Em caso de conflito, aquela fila de civis estava tão exposta a um lado como ao outro.

O assunto ainda está a ser investigado e, por isso, questionada pela TSF, a presidente da junta não quis voltar a ele. Mas, no início do mês, contou o seguinte à rádio Svoboda: "Voluntários que queriam trazer-nos ajuda humanitária e civis que tentaram recolher familiares, ou possivelmente eram de Kherson, vieram para cá. Eles [os russos] atiraram contra o primeiro carro. Depois, formou-se um engarrafamento e eles... Bem, limitaram-se a atirar."

O caso terá acontecido a 31 de março do ano passado. Mas há quem garanta que o episódio não foi um ato isolado. Por aqui, o medo ainda impera. A guerra não acabou e ainda há quem espere pelo regresso das forças russas.

Ivan lembra-se bem das posições fortificadas dos invasores: "Na colina, à saída da aldeia, há uma fila de casas. A seguir há um campo agrícola." Foi nesse campo, assegura, que os russos estacionaram tanques e blindados para transporte de pessoal.

"Há lá uma quinta que produz verduras, alhos, cebolas, etc... Era daí que disparavam, constantemente, contra o centro", assegura sem pestanejar.

O homem refere-se agora aos ataques contra uma pequena bolsa de resistência de soldados ucranianos no edifício da escola.

O Exército ucraniano já reconheceu, há vários meses, ter feito uma operação para resgatar os feridos da escola e fornecer armas aos resistentes. O destino destes soldados ainda é tratado pelas autoridades ucranianas como informação confidencial.

Na aldeia vizinha, foram as forças ocupantes que tomaram a escola, conta Ivan. Ocuparam essas instalações e as da biblioteca e, "essencialmente, interrogaram as pessoas ou levaram-nas para a cave. Os meus dois filhos foram levados para lá, mas acabaram libertados mais tarde."

Em Oleksandrivka, 21 pessoas morreram durante a ocupação e quatro continuam dadas como desaparecidas.

O que lá vai, lá vai e aos 71 anos Ivan Zayets sente que não há tempo a perder: "Agora só precisamos de uma coisa: que nos deem materiais para construirmos as nossas casas.

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