Reportagem TSF na Ucrânia. "Feliz Aniversário", Kolia

Sonya tem sete anos. Percebe-se logo, mesmo antes de perguntar. Está naquela fase em que os dentes da frente não deixam margem para dúvidas. Um deles ainda vai a meio do crescimento, para ficar ali o resto da vida dela. Há um mês que passa o dia no mesmo lugar. O café do pai. Mas sobre isso, falamos mais adiante. Sonya saltita pelo espaço, tem energia a mais e liberdade de movimentos a menos. O pai está a trabalhar. A mãe tenta ajudar, mas a irmã de colo de Sonya insiste em não adormecer. A birra absorve toda a atenção da mãe. Quando chego, ela vai imediatamente buscar um desenho que acabara de pintar. No parapeito largo da janela, está o «estúdio» com os materiais: folhas brancas para desenhar, cadernos para colorir, livros infantis da Barbie e um copo com duas dúzias de lápis de cor.

O retrato mostra um soldado, vestido com um camuflado, de metralhadora na mão, cabo virado para baixo, como ela tem visto na rua e na televisão; tem um capacete, uma fita azul no braço direito - como usam militares e forças de defesa civil ucranianas - uma bandeira nacional ao lado e uma inscrição no topo «Cdhem Poxaehnr!», assim mesmo, com exclamação. O pai vem em socorro de Sonya. Explica que «um amigo» faz anos e ela andou a preparar a surpresa, o desenho, para lhe entregar. Elogiado o trabalho, Sonya saltita outra vez para o lugar onde estão os materiais e guarda o presente dentro de um envelope azul escuro, formato A4, que ela mesma tratou de fazer.

Dmitriy Zhovnirenko, o pai de Sonya é, como já se disse, o dono do café. No dia em que começou a guerra não sabia bem o que fazer. Mas, mal dormida uma noite decidiu que, a partir do dia seguinte, não fecharia as portas, como quase todos os outros cafés e restaurantes por toda a cidade. Pelo contrário. Resolveu manter as portas abertas e cozinhar para ajudar. Todos os dias, desde 25 de Fevereiro, dali partem, pelo menos, 300 refeições: 150 para um batalhão das forças especiais, mais 120 para a defesa civil da cidade e outras 30 pra o quartel de bombeiros, que fica uns metros ao lado. Além disso, faz mais umas 50 para quem aparecer e precisar de comer alguma coisa. Não cobra nada.

«Fui pedir aos restaurantes que decidiram fechar, que enviassem para cá os alimentos que tinham armazenados», explica, orgulhoso. Além disso, todos os dias «há voluntários que entregam aqui bens alimentares para nós cozinharmos». Os funcionários não têm mãos a medir, mas não há tristeza, fadiga ou reclamações do trabalho. Pelo contrário. «É a nossa forma de colaborar, de fazer parte, de ajudar este esforço de guerra». Insiste para que prove as refeições de hoje: é uma espécie de pão, de tamanho generoso, que tem dentro vegetais e frango. Acabaram de sair do forno. Uma delícia.

Ele não tinha ainda pensado nisso, mas quando lhe pergunto se tem ideia de quantas refeições já preparou, responde de imediato. «Dez mil».

Enquanto falamos, Sonya pousa a cabeça em cima do ombro do pai, para escutar a conversa. Na verdade, o destinatário do desenho ainda não chegou, ela já deu várias voltas na sala principal do pequeno café, que só tem meia dúzia de mesas, a irmã continua a choramingar ao colo da mãe, não tem mais nada para fazer.

Peço, a ambos, se posso tirar uma fotografia a Sonya e ao seu retrato de guerra. Concordam. Ela corre, vai buscar, de novo, o desenho, senta-se à mesa e exibe o trabalho. Sem sorrir demasiado, porque, recordo, há aquele detalhe do dente da frente ainda estar a meio do crescimento e, convenhamos, Sonya não sabe bem onde irá parar aquele retrato dela com o seu retrato. Opta por sorrir apenas o necessário para que se perceba a felicidade, mas sem exibir qualquer dente que possa comprometer a estética da imagem. Afinal, ela também se ocupa dos livros da Barbie e, nessas imagens, não há nos sorrisos em transformação. Mas não precisa de sorrir, porque o olhar trata disso.

Chega, entretanto, «o amigo» a quem se destina a surpresa, chama-se Kolia Serga, é um músico relativamente conhecido em Odessa, cliente habitual do café do pai de Sonya. Ela, agora envergonhada, entrega-lhe o envelope e recua, fica à espera de ver o que vão dizer os olhos dele, ele também sorri com eles, agradece, pega nela, os funcionários trazem um queque de chocolate com uma vela apenas, cantam o primeiro verso dos «parabéns», ele sopra, aplausos, acabou, já está.

«Feliz Aniversário!», diz a inscrição, pintada com as cores da bandeira da Ucrânia.

O desenho está fiel. O músico alistou-se na defesa civil e usa uniforme, tem barba, só o capacete e a arma estão a mais no desenho; mas devem fazer sentido na imaginação de Sonya que olha para aquele amigo dos pais como um soldado, não há-de ser um soldado porquê, se está vestido como um, e os soldados que ela conhece de ver na rua e na televisão usam capacetes e uma arma a tiracolo? Kolia não parece importado com o facto do retrato lhe acrescentar elementos, afinal a defesa civil também é uma forma de combate e, se calhar, ele até usa arma e capacete, mas não os leva quando vai ao café.

Tocam as sirenes.

Kolia regressa ao posto de vigia.

Sonya senta-se à mesa a comer uma porção igual àquela que vai para os sodados, os que usam armas e os que não.

Dois bombeiros chegam para levar o almoço para o quartel.

Olho com pormenor para a fotografia. O camuflado que Kolia enverga no desenho de Sonya é feito com pequenas manchas irregulares. Mas, grande parte dessas manchas irregulares tem a forma de um coração. Pequenos corações, de cores diferentes, constroem uma malha que se tornou tecido militar, num pais em guerra e numa cidade à espera dela. Em Odessa, que desenho fará hoje Sonya, se os russos não atingirem a cidade, entretanto?

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de