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Depois de 47 anos de neutralidade o governo de Pedro Sánchez decidiu posicionar-se a favor da solução proposta de Marrocos, à revelia do sócio de Governo e da oposição.
É o fim de 47 anos de neutralidade. Durante mais de quatro décadas, Espanha posicionou-se a favor de um referendo de autodeterminação para o Saara Ocidental, tal e como estipulavam os acordos da ONU. Agora, e sem que nada o fizesse prever, Pedro Sánchez decidiu apoiar a proposta de autonomia apresentada por Marrocos em 2007, que enterra as aspirações de independência do Saara.
A decisão foi comunicada numa carta enviada ao rei de Mohamed VI na qual Sánchez considera a proposta de Rabat "a base mais séria, realista e credível para a resolução do diferendo". Divulgada pelo governo de Marrocos, a decisão provocou outra crise interna no Governo. A ala do Podemos, que foi mantida à margem, distanciou-se da posição do Executivo e criticou a falta de diálogo em temas tão sensíveis.
"Acho que as formas foram incorretas, não só connosco mas com o conjunto do país. É uma mudança radical de posição que merece o respeito e o diálogo com todas as formações políticas e é também uma mudança no conteúdo com a qual, como já disse, não estou de acordo", explicou a ministra do Trabalho Yolanda Díaz.
Do lado da oposição as críticas também se fizeram ouvir. Alberto Nuñez Feijóo, candidato único à presidência do Partido Popular, apenas à espera que o congresso do partido confirme a sua eleição no primeiro fim de semana de abril, acusou o Executivo de "governar de forma déspota" e de "acabar com um consenso histórico na política exterior espanhola".
Esta quarta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros, José Albares, vai comparecer no Congresso dos deputados para explicar a posição do Governo.
Antecedentes
A relação de Espanha com o Saara começou em 1883, com a ocupação do território africano. Uma década depois, e após a formação do Frente Polisário, o movimento independentista do Saara, Espanha propôs a celebração de um referendo de autodeterminação. Marrocos, que não queria arriscar-se a perder o território na votação, decidiu ocupar o Saara. O movimento ficou conhecido como a Marcha Verde: no dia 6 de novembro de 1975, o rei Hassan II enviou 350.000 civis com unidades militares camufladas e ocupou o território.
Um ano depois, Espanha cedeu a antiga colónia a Marrocos sem contar com a vontade da população. Isto deu origem ao conflito armado entre Marrocos e o Frente Polisário que persistiu até 1991, quando foi assinado um acordo de paz com a ONU que incluía a realização um referendo de autodeterminação no ano seguinte mas que nunca chegou a acontecer.
Em 2007, Marrocos apresentou um plano de autonomia do Saara que eliminava, na prática, qualquer perspetiva de independência da antiga colónia espanhola. O Saara teria os seus próprios órgãos legislativos, executivos e judiciais, mas todas as normas deveriam ajustar-se às marroquinas. Da mesma forma, os temas chave como a defesa, as relações internacionais ou a religião estariam sob a alçada de Marrocos.
Até agora, a posição oficial de Espanha sempre tinha sido a de uma neutralidade amparada nos acordos da ONU, que considera o Saara "um território não autónomo pendente de descolonização". No entanto, na prática, a posição dos sucessivos governos sempre foi mais ambígua, de forma a preservar as relações com Marrocos, com quem Espanha tem importantes acordos de colaboração em matéria de terrorismo e imigração.
"Decisão lamentável"
Confrontado com a mudança de posição espanhola, o Frente Polisário acusou Sánchez de usar o Saara como "moeda de troca" para reatar as relações com Marrocos.
"Todos esperavam que Madrid desempenhasse um papel na reativação do processo político, mas não o pode fazer se tomou partido no conflito e isso é claro quando diz que a solução de autonomia é a 'mais séria'. Nem sequer os Estados Unidos foram tão longe, dizendo apenas que era uma das soluções", disse Bachir Oubbi Bouchraya, representante do Frente Polisário para a União Europeia.
"Não deixou espaço para nuances e na sua formulação só faltou dizer que a autonomia é a única solução", explicou, sublinhando que esperam um esclarecimento do Governo espanhol.
A TSF conversou também com o porta-voz da Frente Polisário, o movimento que representa o povo do Saara Ocidental nas Nações Unidas. Mohamed Fadel condena a posição adotada por Espanha e acusa o governo de Madrid de ceder a Marrocos, aceitando a imigração como arma. O porta-voz da Frente Polisário sugere mesmo que é o Partido Socialista espanhol quem está por detrás da proposta marroquina, tendo em consta que "mostrou sempre uma fidelidade muito grande às teses marroquinas".
O porta-voz da Frente Polisário deixa também um aviso claro: "vão continuar os ataques às forças marroquinas" até "virmos que estão a ser dados passos sérios" por parte da "comunidade internacional e da ONU, em particular".
A posição da Argélia
A decisão de Sánchez visa normalizar as relações com Marrocos, que viviam um período tenso desde maio do ano passado, quando as autoridades marroquinas permitiram a entrada irregular de cerca de 6000 migrantes no enclave espanhol de Ceuta. A embaixadora marroquina em Madrid, que foi chamada para consultas em maio, ainda não tinha regressado a Espanha e só o fez depois da nova posição do Governo de Sánchez.
Mas, para além da contestação interna, falta saber como vai encaixar a notícia a Argélia. Histórico apoiante do Frente Polisário, este país é também um dos principais fornecedores de gás de Espanha, com 37% do total consumido no país. Uma posição especialmente importante numa altura em que a União Europeia tenta encontrar formas de depender cada vez menos do gás russo.
Em agosto passado, Argélia e Marrocos cortaram relações e, em novembro, a Argélia fechou mesmo o gasoduto Magreb-Europa que levava gás até à península Ibérica e passou a utilizar apenas o gasoduto que vai diretamente da costa argelina à espanhola. Desta forma, evitava pagar a Marrocos qualquer tipo de valor pela utilização da infraestrutura.
O embaixador da Argélia em Madrid já foi chamado para consultas e o ministério dos Negócios Estrangeiros aguarda uma explicação do Executivo de Sánchez.
Ouvido pela TSF, Raúl Braga Pires, investigador da Universidade Nova de Lisboa e estudioso das questões do norte de África e Médio Oriente, explica que, neste triângulo, há três países fundamentais: Espanha, Marrocos e Argélia. Para o investigador a questão do gás argelino tem um forte peso no escalar do conflito.
De acordo com Raúl Braga Pires, a guerra na Ucrânia foi determinante na decisão agora tomada por Espanha.
O Saara Ocidental é considerado a última colónia em África e Espanha ainda é vista como a potência administrante. O conflito pela independência do Saara Ocidental arrasta-se há quase 50 anos. Grande parte da população sarauí vive em campos de refugiados, sobretudo na Argélia onde a ONU estima que estejam 160 mil pessoas.