A revolução digital ao serviço dos cidadãos

Pode surpreender-vos, mas somos um dos países que mais serviços digitais oferece aos cidadãos. É uma evolução progressiva que atravessou vários governos, incluindo aquele a que pertenci. Foi um governo anterior que criou a possibilidade de tratar de certos assuntos por via digital através de uma máquina de leitura do cartão cidadão, mas foi no meu governo que se facilitou muito essa possibilidade com a Chave Móvel Digital ou os Espaços do Cidadão (que, por sua vez, se inspiraram no modelo das lojas do cidadão desenvolvidos por outro governo). Isso veio depois a ser aprofundado e exponenciado pelo governo sucessivo com inovações como a app de identificação eletrónica. Este é um exemplo de como uma continuidade de políticas públicas pode fazer evoluir o país. No acesso digital dos cidadãos à administração, Portugal é em muitos aspetos líder a nível mundial.

O problema é que as melhorias que tivemos na relação digital com a administração não têm tido quase nenhum reflexo nos processos de funcionamento e decisão da administração. Hoje em dia podemos tratar de todos os temas de um licenciamento online, mas isso de pouco importa quando essa relação online se prolonga por anos e múltiplas interações com a administração sem qualquer decisão em tempo útil para os cidadãos. Não é incomum os cidadãos terem processos de licenciamento com dezenas, às vezes mesmo centenas, de decisões preliminares sem decisão final à vista. Os diferentes serviços têm também, com frequência, diferentes sistemas informáticos obrigando os requerentes a estarem constantemente a ter de se adaptar. Acresce que, em vez de os cidadãos terem uma relação única com o Estado, e serem os serviços públicos que comunicam entre si, são os cidadãos que têm de comunicar com os diferentes serviços mesmo no âmbito de um único processo. Acontece até termos o absurdo de diferentes serviços públicos fazerem exigências diferentes e incompatíveis entre si aos cidadãos. Todos já tivemos experiências kafknianas, mais ou menos longas e intensas, deste tipo.

Algumas mudanças parecem simples. Por que não exigir que num licenciamento a administração suscite todos os problemas e exigências ao requerente desde o início em vez de estar permanentemente a suscitar novas questões num processo que parece não ter fim e, por vezes, não tem mesmo... E por que não impor que seja a administração a comunicar entre si no que necessita de informação do cidadão já detida por outro serviço da administração em vez de ter de ser o cidadão a andar a fazer a via sacra de serviço em serviço. Eis algo que vos pode surpreender. A lei já o impõe. Sei isso pois foi uma das novidades que introduzimos quando estava no governo. Mas falhou. Não se cumpre e ir a tribunal não é solução pois os tribunais são ainda mais demorados e ainda se arrisca a criar má vontade na administração. O problema é, em muitos aspetos, cultural no funcionamento da nossa administração: formal, desconfiada, avessa ao risco, funcionando em silos. As consequências são desastrosas para o cidadão, mas também para o Estado pois onde a burocracia predomina a corrupção próspera.

Mudar esta cultura exige um processo profundamente disruptivo e só vejo uma forma de o promover rapidamente: inteligência artificial. Temos de mudar o paradigma da administração: do controle prévio para o controle à posteriori e de o fazer diminuindo os riscos de corrupção. A inteligência artificial é o caminho pois permitirá tomar decisões preliminares de forma imediata ainda que sujeitas ao controlo humano. As decisões poderiam converter-se em definitivas após um prazo curto exceto se a administração interviesse para as reverter fundamentado. Decisões deste tipo são particularmente adaptas a serem tomadas de forma fiável, e sem riscos de corrupção, por inteligência artificial. Não apenas os critérios que determinariam as decisões do sistema de inteligência artificial seriam humanos como a intervenção e fiscalização humana estarão sempre presentes. O que estaríamos era a mudar a lógica de decisão da administração do controlo ex ante para o controlo ex post, oferecendo muito mais celeridade e objetividade ao cidadão. Acresce uma diminuição dos riscos de corrupção. Começam a aparecer as primeiras experiências deste tipo nalguns países. Já devíamos estar a fazer o mesmo. Poucos o necessitam tanto como nós.

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