Deixem as crianças em paz

"Os dois alunos de Famalicão que não frequentam a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento desde 2018, por imposição do seu pai, teriam normalmente sido retidos, ou, como se dizia no meu tempo, teriam chumbado por faltas." Daniel Oliveira lembra que a retenção por faltas é "uma das bandeiras dos que têm posições mais conservadoras sobre o ensino", e aponta a contradição: "Como acontece muitas vezes com os conservadores, a virtude é só para os outros."

O jornalista considera, no seu espaço habitual de Opinião, na TSF, que, "desde que esta novela começou, o Ministério da Educação e o agrupamento de escolas Camilo Castelo Branco fizeram tudo o que era legalmente possível para ultrapassar o impasse, e [para que] os alunos, que têm bom aproveitamento às outras disciplinas, não àquela, não perdessem um ano das suas vidas".

"Desconfio que até foram para lá da lei", atira o cronista, que salienta que todas as alternativas foram exploradas e tentadas, inclusivamente "a realização de planos de recuperação que até excluíam as questões que aquele pai considera mais sensíveis - que são muitas".

Tudo foi "recusado pelo pai", assinala Daniel Oliveira, acusando: "Se o objetivo não era resolver o impasse, era agravá-lo, para ter uma vitória política à custa dos seus próprios filhos."

Além da componente de entretenimento, que o cronista encara como um "costume destes ativistas ultrarradicais", que deturpam "completamente o conteúdo desta disciplina", este pai "não hesitou em expor os seus filhos aos olhos públicos, num combate político que é seu, não deles".

"O que este pai e este grupo ultraminoritário de fanáticos religiosos e políticos querem é instituir o direito de cada encarregado de educação ter poder de veto sobre o currículo de cada disciplina, ou mesmo sobre a sua existência", afirma o jornalista.

Crítico desta postura, Daniel Oliveira salienta que tal seria "abrir um precedente inaceitável para a escola". O cronista propõe assim um exercício: "O que diríamos, se determinados grupos religiosos e culturais quisessem impor, por causa das suas convicções, que as meninas estavam dispensadas de algumas disciplinas?" Uma questão colocada em alguns países, elucida.

Daniel Oliveira vai mais longe: "E se estes pais quisessem que a teoria da evolução deixasse de ser ensinada nas escolas? Ou que fosse ensinada a par com o criacionismo? Ou, se quisessem, como alguns pais já exigem, se deixasse de falar do esforço de vacinação nas escolas? Para não pôr o ónus nos outros, imaginem que eu exijo que os descobrimentos deixem de ser ensinados da forma demasiado laudatória que hoje podemos ver nos manuais escolares, e, até isso acontecer, decida que a minha filha não participa nas aulas de História? Ou que não se fale de empreendedorismo?"

O cronista alerta, na conclusão deste exercício mental, que a "ideia de que os pais podem usar a objeção de consciência em casos como estes não resulta apenas de equívocos jurídicos". É mais profundo do que isso, garante. "Estes pais acham que, sendo indiscutivelmente responsáveis pela educação dos seus filhos, passam a ser seus proprietários. Mais, que podem isolar os seus filhos do resto da sociedade, impedindo qualquer influência externa à família."

"Uma oferta à la carte" é algo que não se coaduna com a escola, construída para todos, salienta Daniel Oliveira, para quem estes pais "confundem a ideia de que a escola é ideologicamente neutra, com a ideia absurda de que ela não tem, como uma das suas funções, criar um sentido de comunidade, o que implica a partilha de valores fundamentais, basicamente os que estão presentes na Constituição da República".

Mas, "sem partilha de valores, as crianças nem sequer podem partilhar espaços físicos comuns", alerta. "Nada disto impede que os pais em casa transmitam os seus próprios valores. Serão tanto mais eficazes a fazê-lo quanto mais respeito inspirarem aos seus próprios filhos, e quanto mais presentes forem na sua educação, e não impede que, como cidadãos, usem todos os instrumentos democráticos que têm ao seu dispor para mudar as políticas públicas."

"Não haverá uma escola feita à imagem e semelhança da sua vontade individual", vinca o jornalista. Trata-se de "viver em sociedade", defende ainda.

Apesar de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e de o Supremo Tribunal Administrativo terem dado razão ao Ministério da Educação, permitindo que os alunos fossem retidos, essa não foi a escolha do Ministério. "Garantido que estava que a instrumentalização de menores para um combate político não criava uma jurisprudência que levaria a um quebra-cabeças incomportável, em que cada disciplina e currículo passava a ser opcional, o secretário de Estado da Educação João Costa decidiu que os dois alunos não seriam retidos até à conclusão dos processos, que acontecerá daqui a anos, já eles não estarão na escola..."

Daniel Oliveira refere que esta decisão surge dias depois de o Supremo Tribunal Administrativo ter dado razão à Tutela, e esse é um ponto fundamental que o leva a enaltecer: "A escolha foi seguramente difícil, e é arriscada, por poder passar a ideia de que é um prémio ao infrator. Só que os infratores não são aqueles menores. Com esta decisão, o secretário de Estado mostra quem põe as crianças em primeiro lugar e quem, pelo contrário, não as deixa em paz, não hesitando em prejudicar o seu futuro. Porque se julgam proprietários desse futuro."

* Texto redigido por Catarina Maldonado Vasconcelos

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