O direito à preguiça

Por trás das manifestações de rua e das difíceis negociações políticas, que hoje prosseguem na comissão paritária constituída para estabilizar a reforma das pensões em França, há um debate interessante que ganha espaço social e mediático sobre o sentido do trabalho e da vida. A luta de corpo e alma contra a passagem da idade de reforma dos 62 para os 64 anos não se resume aos dois anos eventualmente perdidos. Mostra alterações significativas na relação que mantemos com o trabalho, que seguramente tenderão a aprofundar-se nas novas gerações.

Alguns jornais começaram por colocar o tema ao nível da mercantilização do tempo da reforma. Com o crescimento de um mercado de lazer, viagens e cultura muito dirigido a seniores, instalou-se um modelo em que se impôs a visão do indivíduo livre do trabalho. Ainda que as desigualdades sociais façam com que nem todos possam aceder a essa visão idílica, ver avançar a idade de reforma será colocar em causa esse sonho.

Diversos sociólogos têm entretanto vindo a público fazer leituras mais densas, sustentando em estudos de campo o quanto se alterou o valor que damos ao trabalho. Em 2008, 62% dos trabalhadores preferiam ganhar mais mesmo que para isso tivessem de prescindir de tempo livre. Em 2022 essa proporção é inversa, com 61% a valorizarem o tempo livre. A pandemia terá sido uma das principais chaves para reavaliarmos o tempo e o espaço da família, mas também a guerra e a crise ambiental contribuem para um certo pessimismo ou sensação de perda no investimento na carreira profissional.

Há quem vá mais longe e argumente que os franceses estão a lutar por um legado cultural, uma forma de vida fortemente ligada à fruição e à valorização do lazer e da criação artística. Com alguma simplificação, há mesmo jornais a refletir sobre a oposição entre os franceses que valorizam o trabalho e a sustentabilidade da Segurança Social e aqueles que proclamam o "direito à preguiça", recuperando uma formulação do socialista Paul Lafargue, que morreu no início do século XX.

Temos ouvido muitas vezes repetir que os millennials valorizam o tempo livre e as relações pessoais, o que acabará por ter efeitos na mobilidade, nos horários laborais, nos tipos de vínculos que se estabelecem entre empregadores e trabalhadores. Mas o tema não é, ou não deve ser apenas, geracional. O trabalho remete para temas como o conhecimento, a inovação ou a motivação, mas coloca igualmente em causa questões como a conciliação da vida profissional com a pessoal, a pressão por resultados, a precariedade apesar da passagem dos anos e das conquistas legislativas. A tecnologia não provocou, por si só, ganhos de tempo e de bem-estar, sendo muitas vezes usada num sentido que pressiona mais os trabalhadores do que os liberta.

Ver os franceses baterem-se tanto contra dois anos adicionais de trabalho abre espaço a uma série de reflexões pertinentes. Num tempo em que vivemos acelerados e sempre à espera de um futuro que não chega, talvez se imponha uma paragem. O direito não à preguiça, mas à pausa. O direito à perceção de que o presente interessa, com todas as suas potencialidades. Sem a angústia das contas até um tempo de reforma em que, finalmente libertos, começaremos a viver de forma plena.

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