Daniel Oliveira começa por abordar o caso da equipa de cirurgia geral do Hospital Amadora-Sintra, que "ameaçou demitir-se se os colegas que denunciaram más práticas médicas não fossem afastados". "Sabendo que das 18 denúncias feitas, só uma se confirmará e que é bastante fácil essas coisas acontecerem em centenas de operações, não faltará mesquinhez e lutas internas em toda esta história", considera.
No seu espaço habitual de Opinião na TSF, o jornalista afirma que "é possível que os alvos destas denúncias, que ainda não se puderam defender, tenham razões para se sentirem ofendidos".
"Mas a exigência inaudita só parece natural a quem se habituou a viver numa espécie de Omertà corporativa. O corporativismo foi reforçado pelo Estado Novo, que o impôs no lugar da democracia e do sindicalismo. Ele protege as classes mais qualificadas de qualquer pressão que envolva o interesse público e tende a apenas impor-se ao Estado, vergando-se perante o poder económico, com que tantas vezes a cúpula da corporação partilha interesses", refere.
O cronista explica que perante a ameaça de demissão da equipa de cirurgia geral do Amadora-Sintra, a Ordem responsável pela peritagem disse que "não tinha poderes para regular o conflito". "Pode ser fiscalizadora dos lares de idosos, tentar travar a entrada de novos médicos na profissão, cumprir funções sindicais, mas não pode agir perante uma pressão para calar denúncias", completa Daniel Oliveira.
"Acumulando poderes que não têm paralelo no resto da Europa, as ordens não são demasiadas vezes órgãos de autorregulação, são substituídos de uma sociedade civil anémica num país desigual, onde a representação social e política é um privilégio. Esta concentração de poderes é perversa", defende.
De imediato, Daniel Oliveira relembra que a bastonária dos enfermeiros foi acusada pelo Ministério Público de cobrar milhares de quilómetros que "nunca terá feito, através de mapas de deslocação forjados como forma ilegal de remuneração suplementar não tributada".
"Perante a acusação de peculato e falsificação de documentos, reagiu como reage sempre: insultando. Terá a oportunidade de se defender do que é acusada, presumindo-se inocente até ao fim, o que não permitiu a algumas pessoas contra quem fez insinuações caluniosas durante o processo de vacinação. Por não envolver dirigentes partidários ou ministros, este caso não contou com a atenção de outros. Porque a comunicação social instituiu que o único verdadeiro poder que existe neste país é o político e que as únicas instituições que devem ser escrutinadas são as do Estado", sublinha.
O comentador recorda, assim, o caso da presidente da Raríssimas, "que ao fim de uns dias se transformou num debate sobre ministros e políticos de que seria próxima".
"O caso foi muito mais mediática, porque Paula Brito e Costa usava dinheiro destinado a quem mais precisava - é verdade -, mas, acima de tudo, porque pareceu poder atingir quem governava e isso é tudo o que interessa seja qual for o Governo. Sindicatos, ordens, associações patronais ou profissionais, IPSS e empresas, muito menos transparentes, com menor rotatividade de dirigentes e onde o poder está muito mais concentrado do que nos partidos políticos, por exemplo, escapam ao escrutínio", sustenta Daniel Oliveira.
Desta forma, "cria-se a ideia de que vivemos num país de gente impoluta, onde as ovelhas ranhosas são os políticos, vindos de Marte para uma terra de santos".
"O que deveria ser um combate à corrupção - exista onde existir -, passa a ser um ataque à democracia, desgastando os únicos que são escolhidos por nós, com um escrutínio que dispensamos aos outros, exibindo-os como uma espécie de excecionalidade. A corrupção existiu, existe e existirá em todos os lugares onde haja poder, não há países nem classes mais corruptas do que outras. Há condições políticas, sociais, económicas e institucionais que favorecem a corrupção. A desigualdade que protege a corrupção da elite e o estado da nossa Justiça são os fatores essenciais da corrupção nacional", reforça.
O jornalista indica que a acusação à antiga presidente da Raríssimas, "um caso conhecido em 2017 com factos que remontam a muito antes, chegou em 2023".
Para Daniel Oliveira, "é assim que a Justiça serve quem pode demorar, resistir, pagando por isso". "Quem tem tempo e dinheiro até pode pôr essa espera a funcionar em seu favor. Os outros não contam com ela. Talvez tenha sido por isso que a nova direção da Raríssimas acabou por assinar um acordo pagando 74 mil euros a quem é suspeito de lhe ter causado um enorme dano patrimonial e reputacional para a ver pelas costas. Talvez não pudessem correr o risco de esperar, esperar, esperar."
"Se queremos combater a corrupção temos de nos impor a nós próprios como comunidade três coisas: primeiro, que esse combate seja exigente para todos, caso contrário instala-se a ideia de que a corrupção é fenómeno exclusivo da política e fragilizaremos o poder democrático perante todos os outros poderes onde a corrupção não é menor; depois, não premiarmos demagogos e populistas para quem a corrupção é um mero argumento de autopromoção, apesar de raramente terem a autoridade moral para o usar; por fim, reformar a justiça para que ela deixe de servir para julgamentos mediáticos, em que uma boa manchete é melhor do que uma condenação em tribunal. Precisamos de mais rigor no lugar da indignação", finaliza.