As épocas festivas e sobretudo o Natal têm muito pouco de mágico em famílias disfuncionais. São até "a pior altura do ano" para crianças em situações de conflito, como ontem destacou a presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, ao apresentar as estatísticas de denúncias chegadas àquela entidade no mês passado. Só em dezembro, foram 871 os relatos de menores em perigo. Número que se traduz num recorde desde que este mecanismo de denúncia online foi criado, em junho de 2020.
É chocante o número de mulheres que a todo o momento continuam a ser vítimas de violência conjugal, mas é igualmente perturbador e por vezes menos abordado publicamente o número de crianças e jovens que sofrem e são tantas vezes transformados em arma de arremesso entre os pais. Em setembro do ano passado, havia 853 mulheres e 15 homens a residir em casas de abrigo e um número de crianças que nos deve fazer pensar: 706.
Convém recordar que, além de a casa não ser pensada para menores e por isso nem sempre ser o espaço mais adequado para estes estarem, uma criança que é retirada da sua residência sofre um processo brutal de perda do ambiente habitual. Perde o espaço que tinha como seu, a escola, os amigos. É retirada para um recomeço forçado e não será de ânimo leve que essa opção é tomada pelas autoridades que intervêm no processo.
As casas de abrigo são uma resposta necessária e por vezes a única forma de as vítimas conseguirem escapar ao círculo vicioso da violência, mas não deixa de ser inquietante a perda que o processo acarreta. Como defendeu a presidente da Comissão Nacional de Proteção, Rosário Farmhouse, deveriam ser criadas casas para agressores. A mudança de foco evitaria a dupla agressão, obrigando a vítima a mudar de vida. Protegeria efetivamente os interesses dos agredidos, e em particular dos menores, exigindo o afastamento do agressor.
Claro que estas como outras matérias penais devem ser vistas com ponderação e sem precipitações, já que o quadro legal aplicável terá sempre de preservar os mecanismos de defesa e o direito à presunção de inocência de quem é acusado. Mas toda a intervenção deve caminhar ativamente para que a vida das vítimas seja o menos afetada possível, e para que o medo da mudança não tenha um efeito de bloqueio.
Os dados sobre crianças e jovens em risco revelam uma sociedade que não consegue proteger e assegurar os direitos básicos aos mais frágeis. São um sintoma de debilidades multisetoriais, que afetam instituições policiais, de saúde ou de educação, que cruzam o espaço da família e as redes informais de vizinhança, que exigem um esforço articulado de todas estas áreas em conjunto. São números que nos responsabilizam a todos, coletivamente. E ninguém pode ficar descansado quando continuamos a bater recordes nos piores indicadores.