Cavaco arrasa política de austeridade de Passos Coelho mas acaba a elogiá-lo

No segundo volume de "Quinta-feira e outros dias", o ex-Presidente da República critica duramente Pedro Passos Coelho pela "falta de equidade na repartição de sacrifícios" exigidos aos portugueses, mas conclui que o antigo primeiro-ministro é, ainda assim, credor do apreço dos portugueses.

Sem "estados de alma" e "sempre com a mesma tranquilidade", Pedro Passos Coelho ouviu todas as críticas de Cavaco Silva "sem nunca levantar a voz". E foram muitas, a avaliar pelo relato que o ex-Presidente da República faz no segundo livro sobre os dias que passou no Palácio de Belém.

Da crise da TSU (Taxa Social Única), aos cortes nos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos, passando pela aplicação da sobretaxa, Cavaco Silva enumera, uma por uma, todas as medidas que foram tomadas pelo governo liderado por Pedro Passos Coelho, com as quais discordou. Revela os conselhos que "o professor de economia pública, mais do que de político" lhe deu, bem como todas as negas que recebeu do ex-primeiro-ministro, para memória futura. A austeridade era necessária? Cavaco Silva tem a certeza que sim. Mas da forma como foi aplicada? Seguramente que não.

TSU? "Suscitava-me muitas dúvidas"

A ideia de baixar drasticamente a Taxa Social Única para as empresas, ao mesmo tempo que seria aumentada também brutalmente para os trabalhadores, começa a ganhar forma em 2011, ano em que Pedro Passos Coelho chega ao Governo. Mas só em 2012, depois do chumbo do Tribunal Constitucional (TC) aos cortes no 13º e 14º meses dos funcionários públicos é que começaram a ganhar forma.

Pedro Passos Coelho apresentou a medida a Cavaco Silva, como a única alternativa ao chumbo do TC e, se um ano antes já tinha levado uma nega do então Presidente da República, em 2012 voltou a ouvir os mesmos argumentos. No livro "Quinta-feira e outros dias", Cavaco conta que chamou "à atenção do primeiro-ministro para as lições que deviam ser retiradas das desvalorizações cambiais feitas no passado", acrescentando que "se uma descida da TSU for acompanhada de uma subida de salários", isso não significa "necessariamente que descem os custos do trabalho". Ou seja, conclui Cavaco Silva, "não há ganhos de competitividade e a Segurança Social pode perder receita".

A contribuir para as dúvidas do ex-Presidente estava ainda a contestação social que uma medida deste género poderia provocar no país. Mas, se em 2011 Passos Coelho deixou cair a ideia, defendida com unhas e dentes por Vítor Gaspar, no ano seguinte decidiu insistir nela, apesar de todos os conselhos vindos de Belém.

O que se seguiu, diz Cavaco, só lhe veio dar razão. "O anúncio desta alteração na TSU, feito pelo primeiro-ministro no dia 7 de setembro de 2012, suscitou um dos maiores protestos realizados em Portugal democrático", escreve o ex-Presidente, ao mesmo tempo que reafirma ter-se tratado "de uma decisão económica, social e politicamente errada, discordância que sublinhei insistentemente junto do primeiro-ministro".

"Não aceitei o argumento de que não havia alternativas"

Se em relação à TSU Cavaco Silva garante ter sido sempre frontalmente contra - e reivindica para si o empurrão final a Passos Coelho para desistir da medida -, o ex-Presidente da República afirma ter tido postura idêntica em relação a outras medidas de austeridade que acabaram por ser implementadas. É o caso dos cortes nos salários da função pública.

"Os cortes dos vencimentos da função pública ou das pensões não são mais do que um imposto sobre as pessoas", argumentou Cavaco a Passos, explicando-lhe que "os impostos sobre o rendimento dos cidadãos devem ser repartidos de acordo com o total dos seus rendimentos e não segundo a profissão que exercem."

O ex-chefe de Estado diz ter sido sempre um defensor de um "adicional à coleta no IRS" que seria, no entender de Cavaco, "apesar de tudo, mais justo, na medida em que atingiria todos e não apenas alguns". A esta proposta, Passos Coelho terá respondido que iria "colocar a hipótese ao ministro das Finanças", mas a verdade é que nunca foi essa a opção do Governo. E Cavaco insistiu nela, várias vezes.

O tema do adicional à coleta no IRS voltaria à mesa das reuniões de quinta-feira, no Palácio de Belém, quando o Governo PSD-CDS decidiu avançar para os cortes nos 13º e 14º mês da função pública. Além das dúvidas que Cavaco Silva diz ter tido sobre a constitucionalidade da medida, para o ex-Presidente da República a proposta do Governo não era mais do que "um artifício contabilístico para sustentar que os cortes dos subsídios de férias e de natal inscritos no orçamento para 2012 seriam cortes de despesa." Na prática, afirma, sem margem par dividas, "trata-se de um imposto."

Neste segundo livro, que relata o segundo mandato de Cavaco Silva em Belém, o ex-presidente deixa bastante claro que alertou várias vezes Pedro Passos Coelho para a necessidade de implementar medidas de austeridade equilibradas e que não afetassem apenas uma parte da população. Sobretudo no que toca aos funcionários públicos.

"O que seria teoricamente errado, por violar um princípio básico de equidade fiscal, era tributar certas parcelas do rendimento global dos indivíduos de forma diferente das outras", escreve o ex-presidente, argumentando que "seria uma arbitrariedade na distribuição da carga de impostos sobre o rendimento." Era isso, recorda Cavaco, "que o Governo se propunha fazer no Orçamento do Estado para 2012, ao discriminar de forma negativa os rendimentos provenientes de salários da função pública e de pensões, independentemente do rendimento global dos contribuintes e da sua situação pessoal."

Quando Passos Coelho levou a Belém, pela primeira vez, a ideia da sobretaxa de IRS, deixando de fora a tributação de juros e de dividendos - com o argumento de que era preciso fomentar a poupança -, Cavaco terá alertado para "as duras críticas" que o Governo iria sofrer. "As medidas anunciadas pelo ministro (Vítor Gaspar) seriam certamente um choque para a generalidade dos cidadãos. Estes iriam ficar com uma perceção dos sacrifícios associados ao Programa de Assistência Financeira e não compreenderiam que a maior parte dos chamados rendimentos do capital fossem excluídos das medidas de austeridade."

A "postura agressiva do Governo"

Cavaco Silva não discordou apenas do conteúdo das medidas de austeridade do Governo de Pedro Passos Coelho. Discordou também da forma como elas eram anunciadas. Regressado do Algarve, das suas habituais férias de verão, em 2011, o ex-Presidente da República vinha "insatisfeito com a estratégia de comunicação do Governo" e, garante, deu conta disso mesmo ao primeiro-ministro.

Segundo Cavaco Silva, "aos olhos dos cidadãos, o Governo surgia como que empenhado em anunciar-lhes sacrifícios e, pela postura agressiva que adotava, quase parecia ter prazer em apresentar medidas negativas". O ex-chefe de Estado chegou mesmo a transmitir a Pedro Passos Coelho que o surpreendia "esta gestão de expectativas".

A falta de coragem de Passos Coelho

Outra das "revelações" que constam do livro "Quinta-feira e outros dias", tem a ver com a extinção dos governos civis. Uma das primeiras medidas de Pedro Passos Coelho, logo que chegou ao Governo.

O ex-Presidente da República diz ter ouvido o anúncio "inesperado" de Passos Coelho, durante a tomada de posse, e garante que se apressou a avisá-lo que "a sua decisão não teria sido tão apressada se tivesse conhecido o extraordinário trabalho realizado pela Governadora Civil de Setúbal, Irene Aleixo, nos anos 80, para lidar com a emergência social no distrito."

Cavaco Silva é da opinião - e transmitiu-a a Passos - de que "os governadores civis eram um fator de proximidade do Governo com as populações, possibilitando uma resposta mais célere e eficaz a problemas que inesperadamente emergiam". O ex-primeiro-ministro terá ficado surpreendido com as observações de Cavaco e, nas palavras do próprio, "não foi capaz de apresentar uma justificação sólida para a necessidade de extinguir de forma tão apressada aqueles serviços." Limitou-se a explicar que os Governos Civis "eram um ninho de clientelas partidárias extremamente difícil de contrariar." Cavaco Silva conclui que a decisão do ex-primeiro-ministro em extinguir este órgão do Estado tinha sobretudo a ver com "a falta de coragem para enfrentar as clientelas do PSD e do CDS. Quanto a mim, uma má justificação."

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