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Foram onze reuniões, 105 dias de Governo de António Costa, com Cavaco Silva, no Palácio de Belém, tempo "curto", admite o antigo Presidente, para "conhecer bem a personalidade", mas, ainda assim, Cavaco traça um retrato crítico nas entrelinhas do que escreve sobre o primeiro-ministro.
"Retive a ideia de que era um homem pessoalmente simpático e bem-disposto, de sorriso fácil. Um hábil profissional da política, um artista da arte de nunca dizer não aos pedidos que lhe eram apresentados. Uma habilidade patente na sua política de equilíbrio entre a satisfação dos interesses do PCP e do BE e as exigências de disciplina orçamental da Comissão Europeia", pode ler-se no segundo volume das memórias do antigo Presidente.
Cavaco escreve que António Costa mantinha "uma atitude descontraída " perante problemas graves e complexos como se tudo fossem meras trivialidades"
"Os problemas acabariam por passar com o tempo e não perturbavam o gosto que sentia em ser primeiro-ministro", escreve Cavaco Silva para acrescentar :"creio que percebera com Passo Coelho que, em política, uma excessiva preocupação em falar verdade não era caminho para o sucesso".
Na narrativa agora apresentada, o antigo Presidente da República, diz que, depois das eleições legislativas de 2015, "não restava qualquer dúvida quanto ao objetivo que o líder do PS pretendia alcançar: ser nomeado primeiro-ministro", mesmo que, como Cavaco Silva sublinha, várias vezes, "em rutura com a prática de quarenta anos de democracia", em que governava quem vencia as eleições.
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O antigo presidente descreve a reunião que manteve com António Costa, no período a seguir às eleições legislativas de 2015, quando o líder do PS lhe deu conta das negociações com a esquerda parlamentar.
"Perante a abertura e generosidade do PCP e do BE, que tanto entusiasmavam António Costa, disse-lhe: "quando a esmola é grande, o pobre desconfia".
Costa respondeu-lhe "a nossa democracia não ficará mais saudável com uma direita forte, um PS fraco e uma extrema-esquerda forte. Portugal ganhar em que se alargue o espaço político da governabilidade. Compete-me salvar o PS".
"Ocorreu-me dizer-lhe que ser primeiro-ministro era uma solução necessária para se salvar a si próprio como líder do PS, mas como é óbvio, não o fiz", escreve Cavaco Silva.
O então Presidente limitou-se a dizer que "aquele momento era o pior para fazer experiências governativas" e deixou claro que "não considerava aceitável" quebrar a tradição portuguesa de quarenta anos de democracia de o Presidente convidar a formar governo o vencedor das eleições legislativas".
"Fiquei com a ideia de que António Costa era um político profissional de pendor taticista que, para ser nomeado primeiro-ministro, estava determinado a estabelecer um compromisso de tipo frente popular com a extrema-esquerda", recorda Cavaco.
O "parto da Geringonça"
Foi Fernando Medina, autarca de Lisboa, quem primeiro falou a Cavaco Silva sobre as negociações do PS com os partidos da esquerda.
Cavaco chama Medina a Belém para lhe explicar a ausência na cerimónia do 5 de outubro, um dia depois das eleições, e aproveita para lhe perguntar opinião sobre os resultados eleitorais.
"Na 6ª- feira, 9 de outubro, fiquei convicto de que António Costa estava a negociar com o PCP e o BE a formação de um governo", escreve o antigo Presidente.
Medina disse-lhe que o PCP considerava aquela "uma oportunidade para se adaptar aos novos tempos, para não correr o risco de definhar" e que na reunião que tivera com Costa, o partido incentivara Costa a avançar para primeiro-ministro, dizendo que os comunistas "esqueceriam as suas posições sobre a NATO, a União Europeia e o Euro."
Três dias depois, a 12 de outubro, Cavaco recebe Costa, ao fim da tarde, para uma conversa de duas horas "correta e de total franqueza". António Costa deixa claro que havia "poucas condições" para consensos entre o PS e a coligação PSD-CDS, como defendia o Presidente, no rescaldo das legislativas. O líder do PS, conta Cavaco, "vinha satisfeito da reunião com o PCP", recebera de Jerónimo de Sousa um documento de nove pontos considerados prioritários na nova legislatura.
Cavaco escreve que que o PCP "manifestara-se disponível para um acordo de incidência parlamentar com o PS e, inclusivamente, para assumir responsabilidades governativas".
Desde sempre crítico da participação "da esquerda radical" nos rumos da governação, Cavaco Silva descreve como na audiência concedida ao PCP, antes da indigitação de Passos Coelho para primeiro-ministro, questionou o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa : "Essa solução governativa terá por base uma coligação? Um acordo parlamentar? Haverá acordo escrito?".
Jerónimo responde que as negociações ainda estavam em curso e que "há exemplos de governos minoritários sem acordo escrito". Cavaco fica com a impressão de que Jerónimo "não gostou" das suas perguntas e que "o PCP não queria acordo escrito com o PS" logo, "não estava assegurada", na leitura do então Presidente, "a estabilidade política ao contrário do que dizia António Costa".
À saída a delegação do PCP informa que não haverá perguntas: "face ao que se passara na audiência, deverão ter considerado necessário ajustar o que traziam preparado para dizer aos media" escreve Cavaco Silva.
PS, PCP BE e PEV tinham deixado claro que não viabilizariam um governo PSD-CDS.
Cavaco decide, apesar de tudo, convidar Passos Coelho para primeiro-ministro para " confrontar as diferentes forças políticas com as suas responsabilidades".
O antigo Presidente da República é cáustico na forma como descreve a assinatura dos entendimentos entre o PS e os vários partidos da esquerda, no último dia do debate do programa do Governo de Passos Coelho.
"Foram cerimónias algo clandestinas, envergonhadas sem presença da comunicação social, sem dignidade. Não só não havia acordo tripartido como tinham sido necessários vinte dias para conseguir fechar três acordos bilaterais com os partidos da esquerda radical", escreve.
Costa acaba por chegar a primeiro-ministro, apesar de chegarem ao Palácio de Belém, "cartas e telefonemas, inclusive de alguns conhecidos membros do PS" a pedir ao Presidente "que não desse posse a quem tinha perdido as eleições".
"No final da reunião, com ar satisfeito e descontraído, António Costa disse que se sentia honrado por receber a incumbência de formar Governo. Tinha conseguido o seu objetivo", escreve Cavaco Silva.
Adiante, depois de considerar que o "primeiro Governo de António Costa não foi bom para o país" e que "ficou com sérias preocupações sobre o futuro do país", Cavaco Silva escreve que "em poucos meses o governo foi ao encontro dos interesses das clientelas do PCP e da intersindical - o respetivo apoio ao executivo de António Costa revelara-se um bom negócio".
Antes tinha referido "pressões" da CGTP sobre o PCP para que se entendesse com o PS.
"Poucos meses depois de terminar o meu mandato, ganhei a convicção de que o primeiro-ministro, com a cumplicidade do PCP e do BE, era mestre em gerir a conjuntura política, em capitalizar a aparência de "paz social" e em empurrar para a frente os problemas de fundo da economia portuguesa: a não ser que algo de muito extraordinário acontecesse, o seu Governo completaria a legislatura", conclui Cavaco Silva, no final do capítulo dedicado a António Costa "Um Primeiro-Ministro entre dois fogos".
Cavaco Silva aponta a "rendição da ideologia perante a realidade". Diz que o PCP se apercebeu que "para consolar os militantes, poderia criticar em público a política económica e financeira do Governo, mas não poria em causa a estabilidade governativa, neutralizando, assim, a ação dos sindicatos" e "o BE, (...) estava deliciado com o usufruto do naco de poder que lhe cabia".
"A ostensiva retórica do "virar a página da austeridade" permitiu iludir durante algum tempo, mas não todo", argumenta Cavaco Silva, notando a ausência de investimento público, o crescimento da carga fiscal ou o recurso às cativações.
O segundo volume do livro "Quinta-feira e Outros Dias" vai ser apresentado publicamente na quarta-feira, em Lisboa.