"Claro que emendar livros é censura"

A escritora Alice Vieira diz que não podemos ceder à ditadura do politicamente correto. Fala de Enid Blyton, dos abusos na Igreja, do Papa, de Putin e da necessidade absoluta de ler livros.

Na semana em que acaba de fazer 80 anos, sempre de escrita e olhar sobre o mundo aguçados, Alice Vieira critica a moda de alterar expressões em livros. O racismo e o machismo de Enid Blyton, cuja biografia assinou, são os alvos mais recentes. A escritora infantojuvenil lembra que tudo tem uma época e assim deve ser enquadrado. Colecionadora de bíblias e segura na fé, defende que a crise na Igreja é o momento certo para repensar o celibato.

Leu muito Enid Blyton na infância, a ponto de ir à descoberta da sua vida e escrever um livro sobre ela. Como olha para a decisão de alterar muitos dos seus livros e para as críticas de racismo e machismo?

Não, eu isso acho horrível. Os livros foram escritos numa época, e é essa época que se tem de entender. De resto, os livros da Condessa de Ségur, logo ao princípio dizem "esta história tem de ser entendida à luz da época em que foi escrita". Naquela altura havia racismo, as pessoas batiam nos miúdos, não se vai mexer no texto e mudar aquilo tudo. O texto tem a sua época, depois vamos ver quando é que foi a primeira edição e sabemos o que acontecia na altura. Da Enid Blyton, acho que li quase tudo. E depois pensei que gostava tanto do que ela escrevia, que queria escrever uma biografia. E tive sorte, ainda falei com a filha mais nova dela, ainda estava viva, e com outras pessoas que a tinham lido, e todas elas me diziam a mesma coisa: nós devemos lê-la, não devemos conhecer a pessoa, porque era uma pessoa horrorosa. Aquela mulher que escrevia para crianças, não suportava uma criança ao pé dela. Uma coisa é a obra que a pessoa faz, e outra o que a pessoa é.

Olhando hoje para os livros, não considera que eles estejam desajustados?

Não é o que há de desajustado. São escritos na época, claro. Mas não vamos modificar exatamente porque são escritos naquela época. Pertenço a um grupo dos amigos da Enid Blyton e eles também estavam todos de acordo com isso. Os livros têm uma época. Nós também vamos ver os nossos livros, já de há não sei quantos anos, e havia escravos, não é? O que é que a gente vai dizer? Tirar os escravos? Não pode ser. Aquilo que ela escreve é bom.

O caso da Enid Blyton é o mais recente, mas tem havido muitos nas últimas semanas, nomeadamente o muito falado "Charlie e a fábrica de chocolate" [de Roald Dahl]. Considera que estamos a ceder a uma ditadura do politicamente correto?

Quem aceitar isso está com certeza.

E acha que podemos falar em censura?

Vamos lá ver, eu vivi com a censura. A censura política, que é outra coisa. Não a censura literária, como essa. Se nós hoje cortarmos ou emendarmos, claro que é censura, evidentemente, porque não é o texto que a pessoa escreveu. Ou se publica um texto ou não se publica. Quando se publica, é aquele texto, não é outro. Não vamos agora emendar, não vamos pôr outras coisas. Os livros devem ser escritos na sua época. É evidente que se hoje escrevêssemos um livro assim ia logo para o lixo. Mas isto não foi hoje, já foi há muitos anos.

Recentemente, falou do exemplo do seu livro "Rosa, minha irmã Rosa", publicado em 1979. O editor a certa altura perguntou-lhe se deveria adaptar pequenos detalhes, como passar de escudos para euros. E a Alice respondeu que se mudasse isso, teria de mudar tudo.

É mesmo assim que tem de ser, mesmo que se fale em escudos. Quando eu escrevi o livro não havia euros, claro que se fala em escudos. Quando o meu editor me perguntou isso, eu disse que não faz sentido nenhum um livro escrito em 1970 e tal falar de euros, que era uma coisa que não existia, não é? Falo muito em músicas e também não mudo aquelas que agora já não se ouvem. Na altura ouviam-se e eram um grande sucesso, portanto é daquela época.

Mas acontece-lhe olhar para o que escreveu e sentir que já não se revê em algumas das coisas que escreveu?

Eu sou muito exigente em tudo. Já deitei fora dois livros completamente prontinhos para dar ao editor. Fui reler e disse "isto não está mal, mas tenho a impressão que podia fazer melhor". E deitei os livros todos para o lixo. Não emendei nada, recomecei tudo de princípio. Só dou ao editor para publicar quando tenho a certeza absoluta - se é que podemos ter certezas absolutas - de que não sou capaz de fazer melhor. A "Rosa" foi o meu primeiro, é evidente que há ali coisas que hoje já não escreveria. Mas não mudo nada, nada. A primeira edição de um livro meu é igual à última edição.

Até porque elas permitem que os miúdos descubram coisas que ficaram para trás.

Claro. Por exemplo, o "Chico Fininho", que era uma música que se ouvia muito na altura. E isso é muito bom, porque os miúdos hoje não sabem nada. É para eles saberem exatamente como é que as coisas foram. Nunca sabemos o que é que vai agradar. Portanto, não podemos fazer livros... "Ah, eu quero agradar a estes." Não. Eu escrevo um livro para mim. E não penso nem na idade que tem quem vai ler, nem o quê. Nunca faço aquele vocabulário facilzinho para os miúdos entenderem. Também não o faço muito complicado, faço o vocabulário normal que as pessoas usam. Vou muito a escolas - nesta altura já não vou tanto e fazem-me falta. Porquê? Falo com os miúdos e vejo como é que falam hoje. E isso é muito importante saber.

As editoras e outros defensores desta adequação da linguagem argumentam que o tema é particularmente sensível quando se trata de crianças. Há aqui alguma menorização, algum paternalismo sobre elas?

Em certos autores há. Em mim não há. Escrevo aquilo que acho que tenho de escrever. Uma vez, foi a única vez, escrevi um livro e o editor veio a medo falar comigo. É porque a miúda, que tinha para aí 10 anos ou 11, tinha chegado o período. E eu escrevi. Os miúdos sabem! Se não sabem, ficam a saber. E depois, eu acho graça, esse capítulo era daqueles que eram mais lidos nas escolas. E falávamos normalmente porque são coisas que eles sabem, ou devem saber e ninguém lhes deve esconder. Eu costumo dizer que não invento nada, e isso vem da minha costela de jornalista. Sou uma jornalista que também escreve livros, mas tenho mais anos de jornalismo do que livros. E isso é o que me dá falar na realidade, falar daquilo que a gente vê, que a gente ouve.

Esta tentativa de expurgar dos livros coisas que podem não ser tão bem aceites, ou estarem datadas, não terá no limite o propósito de os tornar mais vendáveis? E também a preocupação de dar sempre uma lição nos livros?

A pedagogia nos livros, não! Isso é para a escola, os professores ensinam na escola. O livro é a nossa vida.

Mas acha que as editoras estão preocupadas e que é aceitável a preocupação com temas como a inclusão, ou o escritor deve ser completamente livre?

Acho que não é nada aceitável. E os meus editores, comigo, nunca fizeram isso. Já sabem que é perigoso e nunca na vida fizeram isso. Um livro somos nós que estamos a escrever. Gosto muito, quando acabo de escrever, de estar com o editor a ler o livro e a dizer "isto aqui não soa nada bem". É outra coisa, porque o editor está de fora, e nunca é para tirar coisas, é porque algo não soa bem. Agora, não ponho nada para agradar, nem os editores pediriam isso nunca.

Disse que em miúda, dadas as circunstâncias, porque cresceu nalguma solidão, leu tudo o que lhe aparecia, fosse bom ou mau. Por isso nunca diz a ninguém para não ler seja que livro for. Continua a acreditar que ler livros maus é melhor do que não ler livro nenhum?

Completamente, completamente! Dou um exemplo. O meu neto mais novo estava a ler um livro de Robert Muchamore. O livro era maravilhosamente bem escrito, mas era horroroso, porque era um grupo de crianças deixadas na rua, matavam, assaltavam. Em vez de dizer "não leias", porque é louco, também li, e no fim disse "olha que engraçado, eu também li esse livro, vamos lá conversar um bocadinho". Conversámos, ele tinha percebido aquilo tudo e, a partir daí, cada vez que saía um livro de Robert Muchamore eu dava-lhe. Ao quarto ele disse: "Avó, eu agora gosto mais do Fernando Namora".

Foi feito um caminho acompanhado para chegar a outro género...

Exatamente. Tenho a certeza de que comecei a gostar de ler pelos livros maus que lia. Chega-se a uma altura em que vamos gostando mais de outros. Mas se não lermos nada, não chegamos lá. Se a gente não lê nada, não sabe. Nunca digo a ninguém "não leias esse livro". Nunca sabemos onde é que aquele livro vai tocar. Às vezes há um livro muito mau que nos faz ler outros livros.

Será por essa falta de incentivo, ou até de acompanhamento, que as crianças leem cada vez menos?

Se as crianças, na escola, tiverem uma professora que os faça ter prazer pela leitura... Eu conheço muitas. Não podemos estar à espera que os pais em casa gostem de ler, é a escola que tem de fazer isso. Mas têm de o fazer com alegria e motivá-los.

E os miúdos têm tempo para ler? Com a vida que levam hoje?

Há sempre tempo para ler. Como diz a minha neta mais nova, para aquilo que queremos arranjamos sempre tempo. Eu agora não tenho muito tempo, trabalho para quatro, cinco jornais, uma revista, não tenho muito tempo para ler, mas leio sempre. Não posso ir para a cama sem ler, não consigo.

Mas acha que essa espécie de disciplina também deve ser incutida?

Não, não! Eu tenho dois filhos. A minha filha lia tudo e mais alguma coisa e o meu filho não lia nada. Um dia pediu-me "As naus", do Lobo Antunes, e dei-lhe. E outro dia, "As naus" do Lobo Antunes, e eu dei. À quarta vez disse: "Estás a gostar muito". E ele, "estou a gostar muito de quê?". Das Naus. "Ah não, é que eu assentei lá o telefone de uma namorada e preciso de ir lá ver." Mas o que é bom é que essa namorada, que lia muito, disse-lhe "ou tu lês aquilo que eu leio, ou acabamos já aqui". Estão casados há 28 anos e hoje é um leitor compulsivo, portanto não vale a pena estarmos a impor. Eles lá chegarão, quando for a altura deles.

Há mais de 60 anos adotou a Bíblia como leitura e tem, aliás, um livro destinado aos mais novos que se chama "Histórias da Bíblia para ler e pensar". Como é que alguém que leu dessa maneira as escrituras olha para os abusos sexuais sobre crianças?

Sou, obviamente, contra, e acho que toda a gente é contra, e têm de ser castigados de forma muita séria, para estas coisas acabarem. Se os padres pudessem casar, já nada disto acontecia.

Acha que há uma relação direta entre o celibato e os abusos?

Então não há? Eu vivi muito em Inglaterra e acho que os padres protestantes entendem melhor as pessoas, porque eles também têm essa vida, sabem o que a vida custa. Entendem muito melhor do que estes, coitadinhos.

E o momento que vivemos pode forçar essa discussão na Igreja Católica?

Pode, pode, e acho que o Papa até já está a falar nisso. As mulheres, o casamento de pessoas do mesmo sexo, ele já está a falar nisso. É um grande Papa, é pena ser já tão velhote, espero que ainda faça muita coisa. Está realmente preocupado e tem de tomar uma medida, porque isto assim não pode continuar. Estes agora afastam-se, está bem, e depois amanhã? Afastam-se outros? Não tem solução assim, não tem solução.

Disse que o cardeal José Tolentino de Mendonça, seu amigo há muitos anos, foi responsável pela sua conversão. Têm trocado impressões sobre o que está a acontecer na Igreja portuguesa?

Agora falo pouco, porque como eu lhe digo muitas vezes não lhe perdoo ter-me trocado pelo Papa! [risos] Ele tem sempre muito que fazer. Tenho a certeza que ele também está muito ferido, e até muito mais que eu. Também é padre. Isto tem de ter um castigo mesmo a sério. Agora, em relação à Bíblia, não tem nada a ver. Estou sempre a dizer isto: mesmo as pessoas que não são católicas devem ler a Bíblia, porque a Bíblia é um grande livro. Na Bíblia temos tudo o que há de bom e tudo o que há de mau. De resto, faço coleção de bíblias, tenho uma data delas. A primeira que o meu marido [Mário Castrim] me deu era uma Bíblia extraordinária, a Bíblia destinada a ser lida como literatura.

Recorrendo a um livro seu escrito em 2017, "Só duas coisas que, entre tantas, me afligiram", nesta altura da vida o que é que a apoquenta?

O idiota lá da Rússia, a hipótese de ter uma guerra se ele tocar num botãozinho. Acho que é a única coisa que me aflige verdadeiramente. A minha avó dizia, "saúde e paz, que o resto a gente faz". E é um bocado isso. A única coisa que realmente me aflige é a hipótese de um dia haver uma guerra e o caos.

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