Desconfinamento pode salvar festivais? "Temos de aguardar pelas regras"

Álvaro Covões, diretor da promotora do NOS Alive admite que o festival previsto para julho pode não acontecer apesar do desconfinamento. "Festivais bolha" não acontecem em abril.

O plano de desconfinamento prevê os grandes eventos exteriores de volta a 3 de maio, sujeitos a regras da DGS. Pode ser a salvação dos festivais de verão?

Temos de ter muita cautela e aguardar a definição das métricas. A primeira boa notícia foi a reabertura das salas de espetáculo, a 19 de abril - que curiosamente é segunda-feira, dia de fecho dos teatros... É cedo para fazer comentários.

Se as regras da DGS impuserem lotações muito abaixo do normal, será viável haver festivais?

Já houve essas regras em maio, de uma pessoa por 20m2... Será possível para outro tipo de festivais, não os que conhecemos.

Seria possível trazer bandas estrangeiras?

Se houver restrições nas viagens, não houver uniformidade da situação sanitária nos países por onde passam os artistas, essa tipologia de festivais não existirá - nem os artistas podem viajar.

Primavera e Rock in Rio já cancelaram.

Os festivais obedecem a três logísticas. A primeira é a sua própria logística: há um momento em que temos de fechar contrato com fornecedores, contratar equipas e começar a trabalhar. Para contornar a incerteza, países como Alemanha e Dinamarca implementaram seguros: não sabendo que regras terão no verão mas não querendo impedir a atividade económica, fazem um seguro que cobre o prejuízo de se vir a proibir os festivais. Foi este caminho que alguns encontraram e a proposta que a APEFE fez ao governo.

E teve resposta?

Ainda não tivemos. Mas há mais logísticas. Para virem, os artistas têm de se juntar antes para ensaiar e ir para a estrada em abril - e neste momento não podem juntar-se para trabalhar. Muitos não poderão ir para a estrada, logo não chegam cá em junho para os festivais. E depois há a logística dos fornecedores: se não há confirmação do evento vão aceitar outro trabalho.

E quanto aos patrocinadores - muitos deles marcas de bebidas, outro setor muito massacrado - há viabilidade financeira e disponibilidade?

Existir existe, até porque há compromissos. O tema é que quando falamos em festivais na tipologia que conhecemos precisamos de uma de três coisas: imunidade de grupo, eventos-bolha em que todos os que entrarem tenham sido testados e estejam negativos - se a ciência aceitar que podem juntar-se -, ou o que Joe Biden anunciou recentemente, eventos para vacinados com dispensa de uso de máscara. Ou seja, podemos juntar pessoas mas com outras regras.

Já propôs isso ao governo?

Eventos-bolha sim. Para vacinados ainda não, porque se estava a assistir a uma discussão pública meio tendenciosa, em que muitos comentadores diziam que os vacinados terem mais direitos do que os não vacinados seria discriminatório - esquecendo o direito de quem quer trabalhar e não pode. Eu acho que é mais importante a dignidade de poder trabalhar mesmo que nem todos possam usufruir.

Pode haver eventos-bolha em abril?

Houve notícias disso, mas estamos a falar de ciência, não é uma coisa exata, com prazos. Em saúde tem de se ter a certeza do que se faz e o modelo não está concluído.

Qual é o prazo para decidir se pode haver NOS Alive?

Temos de esperar. Para já, pela métrica que será decidida para estes grandes eventos. Vamos conhecer as portarias que o vão regulamentar e as instruções da DGS. No ano passado os festivais foram proibidos em fim de abril, ainda nem estamos em meados de março... Temos tempo para tomar decisões. Ainda nesta semana ouvi o virologista Pedro Simas, que não é fundamentalista, referir isso: é muito cedo. Estamos num processo de vacinação, de imunidade de grupo que não sabemos quando chega. Estamos numa grande ansiedade por estarmos há um ano confinados e esquecemos que o tempo é o melhor amigo da ciência.

Mas é possível do ponto de vista logístico organizar eventos com milhares de pessoas e assegurar condições de segurança? É possível o distanciamento nos festivais?

Não. É como um casamento, dançar, festas populares. Não se imagina uma festa com distanciamento.

E com lugares sentados?

Isso pode acontecer, mas são métricas diferentes. Se tivermos oportunidade de organizar eventos mesmo que as pessoas tenham de estar sentadas e haja regras de distanciamento, é uma experiência. É diferente, mas é melhor do que não fazer nada - até para os espetadores.

Mas num Alive?

Isso é impossível.

As medidas que foram sendo tomadas podiam ser menos lesivas para o setor da cultura, ditando regras e deixando as empresas decidir se fazia sentido abrir?

Portugal até foi dos poucos países onde as salas de espetáculos abriram - com lotação a 50%, não é o ideal, mas muitos países nem isso conseguiram. Isso cá fez-se e funcionou sem que houvesse surtos em espetáculos, quer no backstage quer no público. Foi uma experiência bem-sucedida. E também há coisas que aqui não se conhecem, por exemplo Madrid teve sempre os teatros abertos, desde maio, assim como restaurantes e lojas. Eu estive a 26 de setembro no Teatro Real para o Festival do Fado - quando aqui se falava das tropas estarem na rua por causa do confinamento - e víamos famílias a passear, obviamente a respeitar o distanciamento, e tudo aberto. Tivemos inclusivamente o ministro da Cultura de Espanha no espetáculo. Foi um momento uau!

Como é que a Everything is New está a sobreviver? Quanto já perdeu?

Em 2020, tivemos quebras de receitas de 80,3%. Estamos em crescimento e tínhamos muitos projetos especiais, como exposições e outros, e tínhamos três ou quatro contratos a termo que não pudemos renovar.

Mas não houve despedimentos?

Não, mas para as empresas irem ao lay-off e ao apoio à retoma não podem despedir. E doeu não renovar contratos...

E em salas como o Coliseu e o Campo Pequeno qual foi a quebra?

Foi semelhante, uns 80% no Coliseu e 60% no Campo Pequeno, porque são três áreas de negócios - mas a parte de espetáculos foi dessa ordem. Mesmo abertos, com a lotação limitada a metade, há logo uma quebra de 50% e se a essa juntarmos o tempo de encerramento, sábados, domingos, dois meses e meio de confinamento... Facilmente se chega aos 80%.

Já tem planos para retomar espetáculos no Campo Pequeno?

Sim, vai ser feito agora o trabalho. Há cinco que vão ser reagendados, pela quinta vez, de acordo com este calendário de desconfinamento. Pode ser que à quinta seja de vez. Estamos agora a falar com os artistas logo para o arranque da abertura - 19, 20, 21... Temos essa vantagem: os reagendados podem acontecer logo.

Voltando ao NOS Alive, é possível que não aconteça?

Claro. Se houver uma regra que não o permita, não acontece. Temos de estar preparados para isso.

E como estão a correr as vendas de bilhetes?

Estão paradas, vende-se um ou dois por dia. Ninguém compra bilhetes confinado. O que acontece é vender o que está longe. Abrimos The Weeknd quando faltavam 610 dias para o espetáculo e as pessoas compraram. Há apetência do público por sair de casa, isso é óbvio. E há um conjunto de espetáculos reagendados para 2022 muitos deles negociados em 2019. Quando acontecerem, há uns dez em que as pessoas terão comprado os bilhetes três anos antes.

E que aconteceu aos bilhetes do Alive do ano passado?

Nós tínhamos a lei dos vouchers, como a maioria dos países da União Europeia (UE) - as pessoas podiam trocar por um vale para usar noutro produto. Mais de mil pessoas trocaram para The Weeknd e muitas para a edição de 2021. Vermos se acontece ou não.

O IVAucher faz sentido?

Sim, essa medida foi criada para ajudar os três setores mais afetados pela pandemia - a cultura com quebras de 80%, o turismo e a restauração de 65% -, que precisam de apoio à retoma, e foi muito bem recebida quando o governo falou com as áreas. Não é comum o governo incentivar o consumo e ainda menos com crédito fiscal. Mas é uma ideia extraordinária para fomentar o consumo e pôr a economia a funcionar.

O governo lançou-a para três meses. Faria sentido prolongar?

É uma experiência, tem de se ver. Se eu vestir o casaco do ministro das Finanças, tenho de cobrar impostos. Acho que os três meses são simbólicos e importantes, começando em maio para usar os créditos até setembro. Será relevantíssimo, ainda mais depois deste interregno que não estava previsto e que causou um prejuízo muito maior. Falamos da pandemia sempre referindo-nos a 2020 e esquecemos que já vamos quase em 90 dias sem trabalhar em 2021. As mazelas e consequências serão muito mais graves do que pensámos.

O PRR devia apostar mais nas empresas do que na redistribuição a partir do Estado?

Portugal, pela primeira vez em 46 anos, devia investir nas empresas.

É uma falha do plano?

Sim, que começa logo na origem, na Comissão Europeia, porque até as regras estabelecidas para utilização dos dinheiros são estranhas em contexto de pandemia. O dinheiro devia ser investido em primeiro lugar para garantir a manutenção de emprego e em segundo para criar mais emprego e melhorar o nível de vida. Ora uma parte será para as autarquias construírem habitação acessível - é uma ideia interessante, mas não cria riqueza. Estamos a construir a casa começando pelo telhado. O caminho não devia ser esse, devíamos aproveitar as oportunidades todas para Portugal descolar de vez da cauda da Europa. Todos os partidos e governos falam nisso mas todos os anos descemos um degrau.

Há muitos anos defendo que o acesso à cultura está diretamente ligado à riqueza e ao nível de vida, quanto mais caímos no acesso à cultura - vai-se menos a museus e teatros, lê-se menos -, mais vamos descendo. O INE publicou há pouco tempo dados segundo os quais, entre 19 países, nós éramos os 17.º. É uma tragédia. Esse dinheiro tem de ir para as empresas. O plano original de Costa e Silva tinha três páginas para a Cultura e desapareceram no documento para discussão pública.

Não tem uma linha?

Fala lá pelo meio, mas tinha três páginas e desapareceram. E sobre turismo também se fala muito pouco - um setor que já nos ajudou a sair da troika mais cedo do que qualquer estimativa apontava e que voltará a ser fundamental para nos ajudar a reerguer.

É um plano com demasiado Estado?

O país é demasiado Estado. No CAE de exploração de espetáculos, há 32 empresas. Quando o setor privado só tem 32 licenças de empresas para explorar salas de espetáculos entende-se que o país é muito estatizado. Ainda não percebemos que isto não funciona? Eu podia estar errado, independentemente das minhas convicções políticas ou económicas, mas o certo é que estamos sempre a descer. Então temos de ter coragem de dizer que não funcionou. Como não funcionaram as políticas culturais. Em 2019 venderam-se 6 milhões de bilhetes para espetáculos ao vivo em Portugal, em 2018 foram 5 milhões; se descontarmos os turistas - em 27 milhões de visitantes muitos vão a espetáculos -, dá um bilhete por português de dois em dois anos para um espetáculo ao vivo. O que inclui festivais, ópera, ballet, teatro... Tudo. É uma tragédia. Isto acontece porque não há hábitos culturais nem poder de compra. Somos um país pobre. Andamos a brincar à pobreza escondida.

Nós temos grandes concertos mas sabemos que estamos a trabalhar apenas para uma faixa de portugueses que tem capacidade - não é o que se passa noutros países. Aqui andamos a brincar à pobreza escondida.

Quando achamos, tanto autoridades de saúde como governo e partidos, que todos os portugueses têm mais de um par de sapatos ou um casaco e aprovam estes planos em que não se pode comprar roupa... a não ser pela internet - que não é para todos, é preciso ter cartão, ter literacia digital -, estamos a mostrar desconhecimento profundo do país. Há muita gente que só tem um casaco. Se acontecer algo a quem só tem um casaco, essa pessoa passa frio.

Entre a crise e as medidas de apoio, incluindo moratórias, PRR, etc., há risco de ficarmos ainda mais dependentes do Estado?

Portugal está isolado em Bruxelas a pedir a extensão das moratórias. Os outros não precisam porque os governos puseram dinheiro nas empresas - Berlim fechou as empresas mas deu-lhes o dinheiro equivalente à quebra de receitas para fazerem face às despesas. Cá, criou-se o Apoiar.pt, que dá uns trocos às micro e pequenas empresas - não chega para as médias... e as grandes nem tiveram acesso, foram excluídas de apoios tirando o lay-off. E depois foi: rendas, pede-se ao senhorio para empurrar para a frente; centros comerciais, pede-se que não cobrem; empréstimos, pede-se ao banco que adie. Isto vai ter consequências. Noutros países as empresas não se descapitalizaram e quando tiverem de pagar estão preparadas. Os apoios novos, sendo mais do mesmo, não vão evitar que tenhamos problemas - até porque a retoma não será imediata.

Quando prevê que o setor cultural poderá regressar à vida próxima do normal?

Quando houver imunidade de grupo. Nós trabalhamos com ajuntamentos - tudo o que é ao vivo é assim.

Tem conhecimento de muitas famílias a sofrer nesta área devido à quebra de trabalho?

Se nós tivemos 80% de quebra e éramos o melhor cliente de muitos fornecedores, eles também não faturaram. É perda em cadeia. A economia está adormecida, as empresas em que os custos salariais são mais relevantes estão cobertas pelo lay-off e apoio à retoma, vão-se aguentando. Mas quando apagarmos a luz como será? Por isso é que defendemos que quando recomeçarmos tem de ser a 100%.

Mas pode não haver procura.

Vai haver. Porque as pessoas, por uma questão de saúde mental, querem sair. E gerando emprego há mais rendimento e a procura começa a aumentar, há mais consumo. Basta olhar para as bolsas: os investidores não gostam de perder dinheiro e as ações de setores como entretenimento, cultura e turismo estão com preços acima de fevereiro de 2020.

Está otimista relativamente à imunidade de grupo no verão?

Temos de acreditar que a ciência, com ajuda da Inteligência Artificial, chega lá. Que a vacina dá certo. Fazemos as contas: 800 mil infetados - todos sabemos que os números reais são duas a três vezes mais, pelo que se duplicarmos dá 1,6 milhões; mais 1 milhão de vacinados, já temos cerca de 26% com alguma imunidade. E ainda estamos a começar. Acredito que em abril ou maio estaremos a falar de forma diferente. Só tenho pena que não aprendam connosco, com o que fizemos nos concertos (para evitar a violência), que é controlar as pessoas à entrada. Portugal devia ter a coragem de fazer testes rápidos em todas as fronteiras a custo suportado pelo Estado. Dá segurança a quem nos visita e a nós. Porque não foram os portugueses que se portaram mal, acho que muita da carga viral veio de fora, porque não controlamos e somos um país de migração. Testes rápidos resolviam o problema para termos um verão mais tranquilo e sermos um país exemplar.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de