Silva Peneda: "O combate à pobreza tem de ser uma espécie de operação militar"
entrevista TSF JN

Silva Peneda: "O combate à pobreza tem de ser uma espécie de operação militar"

Foi ministro do Emprego e da Segurança Social nos anos de maioria absoluta do PSD. E presidiu ao Conselho Económico e Social nos anos da troika. José Silva Peneda continua a pensar sobre o futuro do país e desafia o Centro-Direita a assumir como seu o combate à pobreza e às desigualdades.

Defende que os aumentos salariais na Função Pública acompanhem a inflação. O Estado português tem condições para pagar mais 5% ou 6%?

Eu acho que tem. E a minha proposta é a seguinte, para a Função Pública, mas também para o setor privado: um aumento normal e um aumento diferido. Isto é, uma parte do dinheiro ficaria numa conta individual, que o trabalhador não podia utilizar no imediato. Seria uma forma de poupança forçada, se quiser. Em segundo lugar, a inflação a que estamos a assistir é importada. Tem a ver com os produtos petrolíferos. Tem a ver com energia. Tem a ver com os cereais. Os aumentos na Função Pública não vão provocar muito mais inflação do que a que vem do exterior.

O aumento de 0,9% para a Função Pública, já em vigor, representa, segundo as contas do Governo, um aumento da despesa superior aos 200 milhões de euros. Se o aumento fosse de 5%, estaríamos a falar de uma despesa superior a mil milhões de euros. Acha que isso é razoável quando sabemos que Portugal tem sobre si a guilhotina do défice e da dívida pública?

Compreendo isso, mas o Governo diz que não estamos em tempo de austeridade. Para mim, a medida da austeridade é a perda do poder de compra. E, neste momento, julgo que há condições para negociar em Concertação Social uma solução deste género. Na Função Pública admito que podia não ser uma solução tão abrangente, podia ser menos de 4%. É evidente que quando se negoceia em Concertação Social, a minha experiência mostra isso, nunca se pode negociar um único assunto. É preciso haver um compromisso em que todos se sintam minimamente satisfeitos.

A última vez que um Governo foi tão generoso no aumento da Função Pública, o país entrou, como sabemos, numa situação de quase bancarrota e os funcionários públicos acabaram até por perder salários.

Foi uma inconsciência.

E nesta altura não seria?

Não. As situações são totalmente diferentes. Poderíamos ter uma longa conversa, porque fui um grande opositor à forma como a receita da troika foi aplicada. Aquele período foi caraterizado por muita dor que não era justificada. Podia-se fazer um ajustamento sem tanta dor.

Acha que as empresas portuguesas teriam capacidade para, de uma forma ou de outra, pagar mais 5% ou 6%?

Temos de falar nisto numa perspetiva mais ampla. O problema das empresas, hoje, passa por questões estruturais. As empresas têm custos fixos sufocantes. Por exemplo, a taxa social única (TSU). Julgo que temos de pensar seriamente numa reforma em que a Segurança Social deixe de ser financiada exclusivamente pelo fator trabalho.

A última vez que houve uma proposta no sentido de reduzir a taxa das empresas, houve uma espécie de levantamento de rancho nacional.

Essa proposta não fazia sentido nenhum, porque diminuía a contribuição das empresas e aumentava a dos trabalhadores. Não cabia na cabeça de ninguém. As próprias confederações patronais estiveram contra essa proposta.

Qual seria, então, a solução?

Em vez de financiar a Segurança Social pelo fator trabalho, pela TSU, substituía por uma contribuição solidária baseada no volume de negócios. Porquê? Porque hoje, com as novas tecnologias, há empresas que têm pouca mão de obra e pagam pouco à Segurança Social; enquanto a maioria das empresas grandes paga muito, porque tem muita mão-de-obra.

Num país em que, segundo alguns empresários, se é castigado por investir, por se ter sucesso. Castigado do ponto de vista fiscal. Não acha que isso seria...

Não. Hoje, em Portugal, tem de haver preocupação com dois problemas: a pobreza e a desigualdade que, normalmente, são temas de Esquerda. Se o Centro-Direita se quer afirmar, tem de incluir no seu discurso o combate às desigualdades e o reforço da classe média. E as desigualdades hoje são gritantes na forma como é tributado o fator trabalho para a Segurança Social. Empresas altamente sofisticadas contribuem muito pouco, e empresas que têm mão de obra mais intensiva contribuem muito. São quase sufocadas. E o que vejo hoje nos mais jovens é um descontentamento muito grande. São altamente qualificados e têm salários de mil e poucos euros e perspetivas de carreira diminutas. Se o Centro-Direita não olha para isto a sério, está condenado a desaparecer ou a ter votações muito baixas. Ou, então, a ceder à demagogia barata, aos que protestam, mas que não apresentam soluções, ou que apresentam soluções muito simples para problemas muito complicados. Como é que podemos dizer que vivemos numa sociedade livre quando 20% da população vive na pobreza?

Está satisfeito com o Orçamento do Estado para 2022?

Não vejo no Orçamento do Estado (OE), nem era possível ver, reformas de fundo. É um OE de continuidade. A minha preocupação é pensar como podemos resolver os graves problemas da sociedade portuguesa. E não chega apresentar ideias, são necessárias soluções. Por exemplo, o combate à pobreza: todos estamos de acordo, mas como é que se faz? Para mim, não há dúvida nenhuma que tem de ser a nível local. E a componente de formação profissional é decisiva. E onde? Nos grandes centros urbanos. Na política tem de haver prioridades. Diria que o combate à pobreza tem que ser uma espécie de "task force", quase uma operação militar.

Foi presidente do Conselho Económico e Social. Acha que a Concertação Social está a cumprir o seu papel?

A Concertação Social é a forma moderna de fazer política. Enganam-se os que pensam que o voto é suficiente para a legitimidade política. É uma condição necessária, mas não suficiente. As sociedades evoluíram, são mais complexas e fragmentadas. Se o poder político não tem formas de diálogo estrutural com os vários setores da sociedade, a legitimidade política é curta.

Não acha que, para quem assiste, o que prevalece é o antagonismo entre as posições das associações empresariais e os sindicatos?

A Concertação Social é um processo de negociação e o epílogo é sempre o compromisso. É um compromisso em que, se calhar, nem todos ganham o que queriam. Mas, feito o balanço, vale a pena ir por esse caminho. E é sempre possível obter entendimentos, depende da forma como a agenda é construída.

O Governo tem sido muito criticado por tomar decisões sem se preocupar com a Concertação Social. Exemplo: os aumentos do salário mínimo. O Governo fez bem em decidir sozinho?

Aconteceram coisas mais graves, como o Parlamento decidir matérias laborais sem ouvir a Concertação Social. Pode não haver entendimento, mas deve ouvir. Aliás, a lei diz que no salário mínimo deve ouvir. Mas nem tudo pode ser obtido com consenso.

No caso do salário mínimo, não lhe causa incómodo?

Não. Se não há consenso, o Governo tem que decidir. É desejável que haja entendimento, mas, quando não há entendimento, o Governo não pode ficar de mãos atadas.

Relativamente aos valores, está a fazer-se o suficiente? Ou precisamos de subir ainda mais o salário mínimo?

Até agora, a crítica era que o aumento era excessivo. Agora, é que está tudo a ir para o médio.

Há, de facto, uma aproximação entre salário mínimo nacional e salário médio.

Portanto já não vejo muito a discussão na base de não aguentar o salário mínimo. Mas é verdade que isto afunilou e realmente há uma franja que está a ser castigada, porque o salário mínimo absorve muitos dos recursos das empresas. É um problema sério.

Começa a fazer caminho a discussão sobre a chamada semana dos quatro dias. Acha que Portugal tem condições para evoluir nesse sentido, ou ainda estamos no campo da utopia?

Depende dos setores, depende das empresas. Eu já vi estudos feitos, alguns até engraçados, que tentam demonstrar que a produtividade é muito maior. É uma matéria que merece ser estudada, mas não estou a ver que haja condições para, de repente, haver uma norma que decrete a semana de quatro dias.

Faz parte do "Movimento pelo Interior", que apresentou uma série de propostas para tentar quebrar um "círculo vicioso". O que está a falhar?

É coragem política que falta. É um problema de fundo, que tem séculos. É um desperdício, por duas vias: por um lado, a concentração de população no litoral que obriga sempre a mais investimentos, que nunca são suficientes; por outro, a desertificação do Interior.

Porque não há coragem política?

Porque é mais cómodo. E porque em Lisboa ninguém pensa nisto. Acham que em Lisboa alguém está preocupado? Que os burocratas alguma vez pensam no Interior? Vem o investimento e fazem em Lisboa. Só não fazem no Rossio porque não cabe lá.

Então, não há solução...

Alexandre Herculano defendia uma administração descentralizada. Eu sou um discípulo de Alexandre Herculano, se quiser. Outros, não. Os argumentos contra a regionalização são sempre no sentido de denunciar "mais despesa, mais funcionários, mais automóveis". Vejam a forma como está a fazer-se a descentralização municipal. O presidente da Câmara do Porto tem toda a razão. O Estado quis aliviar-se de um conjunto de tarefas e deixar a despesa pública para os municípios; "Eu gastava 50 com isso, agora ficas com isso e só levas 25". A isto chama-se vigarice.

Houve entretanto um reforço de verbas para a educação.

Mas só depois de muito barulho. É assim que resolvem o problema do défice! Transferindo encargos para os municípios.

Como se ultrapassa a desconfiança sobre a regionalização?

O problema tem a ver também com os partidos. São muito centralistas. A estrutura política em Portugal, a cultura política em Portugal, é centralista. Quem advoga princípios de descentralização, ou de regionalização, está em minoria. Eu não desisto e continuo a dizer que a regionalização é fundamental. Um exemplo: o Norte é a região que mais exporta no país, mas os fluxos financeiros são todos canalizados para Lisboa. Onde é que está localizada a produção de bens transacionáveis? É no Norte! Não é Lisboa! É no Norte! Portanto, qualquer política de investimento a sério, e de reforço da capacidade produtiva e aumento das exportações teria de beneficiar esta região. Isso parece-me tão óbvio, mas vê-se alguma concretização, ouve-se algum discurso político, alguma medida? Não se vê!

O "Movimento pelo Interior" tinha alguma esperança no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Mas, pelos vistos, essa esperança também se esfumou.

Como eu já disse, o Plano de Recuperação e Resiliência tem um risco: pode transformar-se num livro de cheques para os ministérios.

O que é que isso quer dizer?

Um livro de cheques para despesa corrente dos ministérios. Mas o PRR não é o nosso único instrumento. Temos o Portugal 2030, de que não conhecemos ainda os detalhes todos. Mas reequilíbrios para o Interior, vejo pouco.

Olhando para o seu partido de sempre, o PSD, que balanço faz destes anos de liderança de Rui Rio?

Com dados objetivos, o balanço não é famoso. Os resultados eleitorais foram o que foram e o próprio líder, Rui Rio, tirou as suas conclusões. Decidiu sair...

Tarde demais?

Não. Foi na altura oportuna. Uma semana antes, até se falava da hipótese de ele poder disputar o lugar de primeiro-ministro. Decidiu quando devia decidir. Em termos de objetivos, o resultado não foi brilhante. Em termos de circunstâncias, teve uma vida difícil. Não era fácil lutar contra uma geringonça que tinha tudo controlado e geriu as expectativas de uma forma positiva.

O PSD já tem um novo líder, mas pode dizer-se que a tarefa que tem pela frente não será fácil. Quatro anos na Oposição, sem assento na Assembleia da República e uma bancada construída pelo líder que sai. São demasiadas dificuldades?

Estou como diz o Marques Mendes, "são dificuldades, mas também são oportunidades".

Não há o risco de ser apenas um líder de transição?

O futuro o dirá. Fazendo um pouco de futurologia, as eleições europeias serão determinantes.

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