Sociólogo e professor universitário, tornou-se conhecido do país através da política - foi ministro da Educação, da Cultura, da Defesa e dos Negócios Estrangeiros. Esteve nos governos de Guterres, Sócrates e de António Costa. Nos intervalos da governação, enquanto dirigente do PS, foi muitas vezes convocado para o trabalho político de "malhar na direita". Tem 65 anos e parece ter desistido do sonho de acabar a carreira pública na academia. É, agora, o Presidente da Assembleia da República.
Começava por uma das suas frases mais célebres e mais glosadas, "eu gosto é de malhar na direita". Hoje nesta função, arrepende-se de ter dito esta frase?
O que nós dizemos, dizemo-lo num contexto e essa frase foi proferida numa reunião interna do Partido Socialista, e numa sessão preparatória de um congresso há vários anos, numa altura em que era claro que poderíamos usar frases fortes com o devido sentido figurado. Lembro-me de uma campanha em que um dos cartazes de um dos partidos concorrentes tinha reproduzido um senhor vestido de cozinheiro com uma pá e dizia, "vote em quem lhes bate forte", e, evidentemente, ninguém considerava que isso fosse um incentivo à violência. Infelizmente, devo dizer que o contexto discursivo mudou bastante, e agora com a proliferação do discurso de ódio, temos de ter bastante mais cuidado nas figuras de estilo que utilizamos.
Essa foi uma das coisas que disse no seu discurso de posse, a questão da linguagem, mas iremos lá mais a frente. Quão longe está hoje o Presidente da Assembleia da República desse dirigente socialista tão duro nas palavras contra os adversários?
São funções completamente diferentes e, portanto, como Presidente da Assembleia da República represento a casa, dirijo a casa que exprime todo o país na sua diversidade. Portanto, deixarei de ser o militante de uma das partes, porque serei o primeiro entre os pares que estão lá todos por uma única razão, foram eleitos pelo povo português, e cada um e cada uma deles merece o respeito devido a quem foi escolhido pelo povo português.
Vou insistir neste ponto porque o quadro parlamentar de hoje é bem diferente. A direita de que falava em 2009 era o PSD e o CDS, hoje há mais direita para além dessa, ou além da direita clássica, digamos assim. O Chega é para si a maior ameaça ao regime democrático?
Não, o regime democrático confronta-se sempre com várias ameaças, hoje devo dizer que a maior ameaça à democracia política está nos regimes autoritários e nos seus apóstolos. Mas a grande confrontação que o mundo hoje vive, é entre as democracias e as autocracias e, infelizmente, essa confrontação está até a assumir foros de guerra militar.
Está a falar de Putin e da invasão à Ucrânia.
Estou a falar desse caso e de vários outros casos, nalguns deles a confrontação é de natureza mais política, noutros é de natureza mais económica e, infelizmente, a Rússia decidiu agredir militarmente a Ucrânia e invadir a Ucrânia. Neste momento, temos no leste europeu uma crise de segurança como não vivíamos desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Que expressão utilizaria para classificar o Chega? Radical, xenófobo, racista, nacionalista, populista, de extrema-direita, ou tudo isso?
Como sabe, sou um cientista social e no âmbito da ciência política, costumamos caracterizar os partidos políticos segundo duas variáveis: a primeira, remete para a distinção clássica que vem da revolução francesa, entre direita e esquerda e, portanto, nessa classificação, o Chega é um partido de direita. A outra variável, remete para a maior ou menor moderação ou extremismo dos diferentes partidos e, nesse sentido, diria que um cientista político caracterizaria o Chega como um partido de extrema-direita ou de direita radical. Essa é uma classificação convencional que tem, aliás, um sentido neutral, faz-se com distanciamento para caracterizar os partidos políticos. É uma distinção bastante útil em Portugal, visto que em Portugal é clara a alternância entre o centro-direita e o centro-esquerda. O Partido Socialista no centro-esquerda e o Partido Social-Democrata no centro-direita, e o CDS muitas vezes também fez parte do centro-direita. Depois, temos partidos que temos à direita ou à esquerda destes dois, com uma diferença assinalável no caso português: embora ideologicamente o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda sejam partidos revolucionários, são partidos que têm atuado sempre no quadro constitucional que vivemos. Ao passo que o Chega contesta esse quadro constitucional, portanto, não faço uma equivalência, não trato o PCP e o BE de um lado e o Chega do outro, como se fossem simétricos. Mas estou a responder como cientista político.
E se despir essa pele de cientista político e vestir a pele apenas de Augusto Santos Silva, é assim que continua a nomear o Chega?
Sim, como Presidente da Assembleia da República olho para cada um dos 230 deputados e deputadas, como valendo por igual. Insisto, eles estão na Assembleia da República por uma única razão: foram escolhidos pelos portugueses, e não há portugueses que valham mais ou menos, consoante os partidos em que votam, são todos iguais. Portanto, cada uma e cada um dos deputados é livre no exercício do seu mandato e deve ter do Presidente da Assembleia da República todo o apoio, incluindo do ponto de vista logístico e operacional, na medida em que dirijo a Assembleia enquanto organização, para realizarem o seu mandato. Dito isto, esses 230 deputados distribuem-se por grupos parlamentares, também em função das escolhas das pessoas, e que deram ao Partido Socialista 120 deputados, ao Partido Social-Democrata 77 deputados e, portanto, como Presidente da Assembleia da República, também não posso ignorar que 197 deputados dos 230, pertencem a partidos de centro-esquerda e centro-direita. Portanto, não vou tratar partidos que valem X, como se fossem iguais a partidos que valem Y, quando Y, por vezes, é cinco, seis ou mais vezes, superior a X.
Prometeu e comprometeu-se a tratar todos os deputados da mesma forma. A dimensão de cada grupo parlamentar poderá determinar o modo de condução dos trabalhos, isto é, os tempos regimentares que lhes são atribuídos?
Sim, mas isso vem da Constituição. Há uma regra de respeito pela representatividade eleitoral e que, depois, é traduzida no regimento, incluindo na atribuição de tempos. Por razões que todos compreendemos, essa regra não é inteiramente proporcional, porque, se o fosse, a esmagadora maioria dos tempos seria vivida em duopólio pelo PS e PSD, que têm mais de quatro quintos dos deputados. Portanto, a regra que se aplica no regimento é uma regra que beneficia, e bem, os pequenos partidos.
Nas suas palavras inaugurais disse que não havia espaço para o ódio.
Só não havia espaço para o ódio, disse que só não havia espaço para o ódio.
Mas foram lidas por muitos como um aviso feito exatamente à medida do Chega, com avisos e com recados. Sem o Chega no hemiciclo utilizaria essas mesmas palavras?
Sim, aliás, julgo que essa leitura do meu discurso, é uma leitura muito pobre. O que fiz foi celebrar duas coisas que me parecem muito importantes: a primeira, foi esse facto inaugural de, pela primeira vez, o Parlamento português ter como seu Presidente um deputado eleito pelos portugueses que vivem fora de Portugal. Esse é um facto absolutamente singular, inaugural, não tem nada de pessoal, mas é um facto que deve ser relevado. Pela primeira vez, o Presidente, além de ser do Porto - também é a primeira vez que isso acontece -, é um deputado eleito por portugueses que vivem no estrangeiro. O que numa certa medida é o culminar da ideia fundadora do Parlamento, como casa da representação de todos os portugueses. O segundo facto que quis assinalar, é que o Parlamento é a casa da palavra. Fiquei sempre muito impressionado das várias vezes em que ouvi Mário Soares dizer, "como político, a minha única arma é a minha palavra", são as palavras que digo e isso é uma caracterização sublime da ação política. Se há sítio em que a palavra é rainha, esse sítio é o Parlamento, porque o Parlamento é a única casa de entre os órgãos de soberania, em que o país vê expressa toda a sua pluralidade. Os órgãos de soberania, à luz da nossa Constituição, são o Presidente da República, a Assembleia da República, o governo e os tribunais. Retiremos os tribunais porque não são órgãos políticos, temos então o Presidente da República, o governo, e a Assembleia da República. O Presidente da República, por definição, não tem oposição, representa-nos a todos, representa a nação inteira, portanto não se diz do Presidente da República que há uns que o apoiam e outros que se lhe opõem. No governo, no Conselho de Ministros, não está representada a oposição, seria um absurdo lógico. A Assembleia da República é a casa onde estão todos representados, na medida da sua própria representatividade social, e isso deve ser valorizado. Deve ser valorizado com limites e estabeleci dois que acho que vão ser recordados ao longo do meu quadriénio: o primeiro, é exatamente esse, todas as ideias são admitidas, incluindo as ideias que sejam contrárias à Constituição ou à democracia, mas não é admitido o discurso de incitamento à violência, à desqualificação, à perseguição, portanto, o discurso de ódio. O segundo limite, sendo a regra a expressão livre de todos, a regra é também que a decisão se toma com maioria e, portanto, são essas duas realidades que em particular ao Presidente da Assembleia da República, convém garantir que se equilibrem. A expressão de todos, incluindo os direitos de todos os grupos parlamentares e de todos os deputados, independentemente da dimensão do respetivo grupo parlamentar e, por outro lado, o respeito pela vontade soberana do povo que se exprimiu em maiorias.
Vou insistir, porque na escolha de palavras que fez no seu discurso inaugural disse , e bem, que as palavras servem para exprimir ideias, para travar combates, para acrescentar e não esvaziar, isso parece óbvio a todos. Esse sublinhado para a elevação do debate, para a força das palavras e das ideias, não tem outra vez o mesmo destinatário?
Não, não me parece. Aliás, é um discurso que procurou ser também a celebração da generalidade dos deputados na sua comum vinculação a características básicas de Portugal, como democracia avançada e de forte componente social, como é.
Com um Parlamento com maioria absoluta de um só partido, no caso, o seu partido de origem, terá de ser um presidente mais atento àquilo a que Mário Soares chamou a ditadura da maioria?
Não diria que tenho de ser mais atento, porque todos foram atentos. Agora, o facto de haver uma maioria de um só partido na Assembleia da República, torna ainda mais importantes os mecanismos de freios e contrapesos que são constitutivos de uma democracia. Ainda ontem, na conferência de líderes, tendo verificado que em relação a uma questão específica relativamente à constituição das comissões parlamentares, havia de um lado o PS e do outro lado todos os partidos. Portanto, tomei a iniciativa de pedir ao PS que reconsiderasse a sua posição para que a posição expressa pelos outros partidos fosse admitida, e isso resolveu-se em 30 segundos.
É um trabalho de diplomacia?
É um trabalho de negociação, de procura de consensos, de arbitragem, de monitorização e acompanhamento próximo da dinâmica das coisas e tudo isso faz parte do meu trabalho.
Só para esclarecer, o que dizia Soares tinha validade para Cavaco Silva, mas não tem para Sócrates ou Costa no que toca à ditadura da maioria?
A ditadura da maioria não decorre de haver uma maioria, decorre das condições em que essa maioria queira exercer o seu poder. Uma maioria podia ser até de dois terços e ser absolutamente democrática, mas também poderia ser uma maioria por um só deputado e exercer essa maioria no desrespeito absoluto pelos contrapesos. Se quer que lhe dê exemplos, até porque não perdi a minha capacidade de observação ou de memória, lembro-me, por exemplo, que nos tempos a que se referia então o presidente Mário Soares, o então primeiro-ministro não aceitava debates televisivos, mesmo em período eleitoral. É um exemplo, poderia dar-se outros exemplos, mas não vale a pena porque não estamos numa entrevista de História.
Já que fala em debates, é a favor do regresso dos debates quinzenais na Assembleia da República?
Lá está, como Presidente da Assembleia da República, devo notar duas coisas: a primeira, é que houve uma revisão relativamente recente do regimento, a menos de dois anos nessa nova formulação, uma revisão que nesse caso específico resultou de uma proposta apresentada pelo principal partido da oposição, que o partido da maioria aceitou. Portanto, se há neste momento um calendário de debates com o primeiro-ministro, que faz com que o primeiro-ministro possa ir ao Parlamento para esses debates de dois em dois meses, depois vai lá por muitas outras ocasiões, isso resultou da vontade da oposição e não da maioria. Essa é a primeira coisa que devo notar, porque às vezes parece que foram imposições da maioria - a tal ditadura da maioria -, e neste caso, aconteceu exatamente o contrário. A segunda coisa que devo notar, como pessoa que lê jornais, além de estar presente na conferência de líderes parlamentares, é que já vários partidos políticos sinalizaram a sua vontade de apresentar propostas de revisão de regimento. Portanto, certamente que haverá um trabalho entre os diferentes partidos políticos, e certamente que haverá um consenso que há de resultar desse trabalho. Tudo o que seja valorizar o debate político, a mim parece-me útil.
Nos últimos seis anos, fruto dos resultados eleitorais, o Parlamento voltou de alguma forma a ser o centro do debate político em Portugal, o tal sistema de freios e contrapesos, se quiser, numa linguagem mais bélica, a arena onde se disputou o território das ideias e do combate político. Com uma maioria absoluta - independentemente de ser do seu partido de origem ou de outro qualquer -, não pode haver tentação do Parlamento ser desvalorizado? Ou seja, um partido sozinho possa fazer aprovar o que entender, como aconteceu no passado e, portanto, o Parlamento perder esse peso e importância que tem tido na sociedade portuguesa nos últimos seis anos?
Não julgo que isso vá acontecer. Em primeiro lugar, porque há muitas decisões no sistema português que não se bastam apenas com maiorias, há leis, começando pela lei eleitoral, e outras leis relativas, por exemplo, à Defesa Nacional, que exigem maiorias qualificadas de dois terços. Depois, há outras leis que, se por exemplo tiverem o veto do Presidente da República, implicam maioria de dois terços, além de que há muitos outros instrumentos de fiscalização e controlo dos atos do governo e da administração, que serão certamente usados. O que aconteceu nas eleições de 30 de janeiro, porque assim o eleitorado determinou, é que foi corrigido um problema identificado no Parlamento, na legislatura de 2019, que era um problema que se chama tecnicamente de governabilidade. Esse problema foi corrigido e, portanto, o governo em funções tem todas as condições para ver o seu programa aprovado, devidamente apreciado e não rejeitado, etc. Portanto, ficou com todas as condições de governabilidade que pediu e isso não tem necessariamente que significar, nem a diminuição da centralidade do Parlamento como o debate político por excelência, nem a sua capacidade de fiscalizar e escrutinar o Governo.
Que garantia é que pode dar aos portugueses, aos eleitores, que isso vai mesmo acontecer? Ou seja, muitas pessoas na opinião pública e publicada, mas sobretudo na pública, acham que agora com uma maioria o Governo vai fazer o que quiser. Enquanto representante de todos os deputados que representam todos os portugueses, que garantias pode dar aos portugueses?
A garantia que posso dar é que agirei nesse sentido.
Há uma guerra na Europa com consequências devastadoras para os ucranianos e com efeitos de choque por todo o lado. Os países da União Europeia, na sua opinião, fizeram tudo o que podiam até agora ou podiam e deviam ter ido mais longe?
Creio que a União Europeia e a NATO foram muito longe, ainda irão mais longe, não tenho a menor dúvida sobre isso, dentro do que é necessário e razoável fazer. Aliás, podemos dizer que do ponto de vista político o presidente Putin tem averbado sucessivas derrotas e uma, se não a maior derrota política que averbou até agora, foi justamente o seu falhanço nesse objetivo essencial que era dividir e enfraquecer a União Europeia e a NATO. Pelo contrário, só fortaleceu a União Europeia e a sua unidade e a unidade da NATO. Agora, indo direto à sua pergunta, fui, como ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos que mais veementemente defendeu que nos competia a nós, membros da Aliança Atlântica, ter a contenção e razoabilidade que as autoridades russas não estavam a ter, para evitar que uma guerra na Ucrânia provocada pela Rússia, se tornasse numa guerra generalizada na Europa e no mundo.
Mas isso não deixou os ucranianos sozinhos?
Não, porque nós nunca faltámos nem estamos a faltar com o apoio aos ucranianos, e não é apenas um apoio verbal, é apoio político e diplomático muito importante, é um apoio igualmente importante que resulta das sanções muito fortes e impactantes que estamos a aprovar contra a Rússia, designadamente, na dimensão económica, e é também um apoio militar, porque como toda a gente sabe, os países membros da Aliança Atlântica, no seu conjunto e bilateralmente, estão a apoiar a Ucrânia, fornecendo os equipamentos e armas indispensáveis para que a Ucrânia possa cumprir o seu direito e dever de se defender de uma guerra que lhe foi provocada.
O Presidente da Ucrânia já foi convidado para falar no Parlamento português. Como está o processo?
Nós procedemos a isto com toda o cuidado e a harmonia institucional que nos caracteriza e, portanto, ontem a conferência de líderes exprimiu o seu apoio por larguíssima maioria a que o Presidente da Assembleia da República convidasse o presidente Zelensky a participar numa sessão plenária. Como se trata de um presidente de uma república, e eu falei com o nosso, porque importaria que os dois órgãos de soberania estivessem bem articulados nesse pedido, combinámos que eu próprio trataria das questões mais organizativas e na quinta-feira de manhã recebi a embaixadora da Ucrânia, que me transmitiu já a aceitação do convite por parte do presidente Zelensky e, portanto, estamos já a tratar dos aspetos relativos à marcação da sessão em concreto.
Mas foi o senhor Presidente da Assembleia da República que convidou o presidente Zelensky?
Formalmente, o convite é realizado por dois impulsos: do Presidente da República de Portugal, porque se trata de convidar um presidente da república de um país estrangeiro, e o Presidente da Assembleia da República porque se trata de convidar esse presidente para participar numa sessão na Assembleia da República. Para rematar qualquer dúvida sobre isso, ao longo dos seis anos do mandato do atual Presidente da República, e como tinha, aliás, acontecido com dois anteriores com que tive o gosto de trabalhar - o Dr. Jorge Sampaio e o Professor Cavaco Silva -, este Augusto Santos Silva, nas diversas funções que foi ocupando, teve sempre esta linha que é tratar destas questões que envolvem várias instituições e, neste caso, vários órgãos de soberania, sempre na total articulação entre eles.
Já fui testemunha de algumas visitas de Estado em que estava presente o senhor como ministro dos Negócios Estrangeiros e Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República, e ambos demonstraram grande cumplicidade que, se calhar, vai um pouco mais longe que o institucional, mas já lá iremos. Para concluir este tema, como é que comenta a posição do PCP ao não aprovar o discurso do Presidente Zelensky ao Parlamento português?
Como Presidente da Assembleia da República, com o respeito que devo ter pelas posições, como cidadão Augusto Santos Silva, membro do Partido Socialista, devo dizer que me custa muito a compreender.
Porquê?
Porque está nos antípodas do que penso sobre quem provocou a guerra, quem tem razão nisto, quais são as consequências da guerra, como é que nos devemos posicionar perante ela, como é que devemos agir. São duas posições completamente nos antípodas, a minha e a do PCP nesta questão.
O Orçamento do Estado e o Programa do Governo são inevitáveis nesta conversa. A oposição tem criticado que não estará adaptado à realidade, à guerra, e a todos os impactos da guerra. É assim como diz a oposição, será mais do mesmo que aí vem?
Certamente que o primeiro-ministro já terá respondido a isso.
Mas precisaremos de um programa mais adaptado às circunstâncias que vivemos?
Não valorizaria demasiado. Fazendo agora o papel de veterano, é fácil imaginar que se o programa fosse o programa eleitoral com as adaptações indispensáveis por causa do que aconteceu nos dois meses entre as eleições e a tomada de posse, como veio a ser, a oposição ou quem quisesse criticar, criticaria na base de se o mundo mudou, porque é que o programa é o mesmo? Se a opção tivesse sido noutro sentido, de fazer alterações muito radicais ao programa por causa dos acontecimentos, a crítica poderia bem ter sido que agora vão governar com um programa diferente do que iam fazer quando se apresentaram a eleições. Portanto, todos sabemos que, como é evidente nestas circunstâncias, quem está na posição da maioria deve apoiar, é esse o seu dever democrático, quem está na posição de oposição deve criticar, e é fácil imaginar que críticas seriam se por acaso a solução tivesse sido outra.
Mas admite que poderá carecer de ajustamentos, tendo em conta o impacto do petróleo ou eventualmente a nível da Defesa, que esses ajustamentos serão necessários?
Mais uma vez, falando pela minha experiência, deve saber que participo há vários anos na elaboração de programas eleitorais do Partido Socialista, é sabido que uma das primeiras coisas que o PS faz, e bem, quando se aproximam as eleições, é tirar-me da rua e meter-me na redação de programas, visto que as minhas capacidades de mobilização eleitoral são bastante poucas. Portanto, devo dizer que no programa eleitoral de 2019, não havia uma única referência à expressão "pandemia de covid-19", e o XXII Governo quase não fez mais nada se não lidar com a pandemia. Portanto, é evidente que um programa é um programa e temos de ir ajustando esse programa às circunstâncias concretas que vivemos durante quatro anos. Sendo que quatro anos em política, é muito perto de eternidade, e dito isto, um programa é também um conjunto de compromissos que devemos cumprir, independentemente de as circunstâncias singulares serem estas ou aquelas. Mais uma vez, não havia nenhuma referência à pandemia de covid-19 no Programa de 2019, porque o PS pode ter muitas qualidades, mas proféticas não tem, e a pandemia só começou em março de 2020.
Mas agora não há referência à inflação e já se sabia que iria subir.
Peço desculpa, mas acho que há referência à inflação, não quero discutir o conteúdo do programa, porque isso compete aos senhores deputados fazer e aos membros do governo. Mas o que queria dizer é que, se no Programa de 2019 não havia nenhuma referência à pandemia, o facto de termos essa batalha e ter tido que assumir essa batalha contra a pandemia, não nos impediu, por exemplo, de cumprir o compromisso de ir aumentando o salário mínimo.
Por falar em política de rendimentos, precisaremos de uma nova tendo em conta a inflação que estamos a ver galopante na Europa e também em Portugal?
Já ouvi várias vezes o primeiro-ministro dizer - e se não me engano, também no discurso de posse -, que ele contava ter um acordo na concertação social sobre rendimentos nos próximos meses.
É o primeiro Presidente que é deputado pelo círculo da emigração fora da Europa, já o sublinhou, como é que vai olhar para a emigração a partir dessa nova cadeira que ocupa na Assembleia da República?
De duas maneiras: primeiro, tenciono exercer plenamente o meu mandato como deputado pelo círculo fora da Europa. Isto quer dizer que as minhas obrigações de contacto com o eleitorado, a minha atenção particular ao que se passa nas comunidades portuguesas fora da Europa, far-se-ão a 100%. Depois, como Presidente da Assembleia da República, procurarei aproveitar este facto, esta singularidade, para valorizar ainda mais a forma como a Assembleia exprime a vontade, os projetos, as ideias, e também os sentimentos e emoções dos dois milhões e 300 mil portadores de cartão de cidadão português que vivem no estrangeiro, dos quais um milhão e 600 mil são eleitores.
Creio que há poucos dias estreou uma conta no Twitter. É uma forma de chegar melhor à diáspora portuguesa, é essa a estratégia?
E a toda a gente. Fico sempre muito impressionado, e não sei se já disseram, mas tenho 65 anos, pertenço por idade e também por razões profissionais e geracionais, ainda ao universo Gutenberg. Sou, por exemplo, daqueles que ainda não se habituou a ler jornais no ecrã e que prefere folhear, preciso do gesto físico de folhear jornais. Aliás, leio de trás para a frente, portanto, preciso desse gesto físico. Mas, como tenho filhos e netos, tenho que reconhecer que já hoje muita gente não tem televisão em casa, mas vê televisão através do computador e muita gente antes vê, por exemplo, o Diário de Notícias ou a TSF, não porque esteja a ler o jornal ou a ouvir a rádio, mas porque está a seguir-vos no Twitter, Facebook e por aí. E, portanto, tenho de estar aí. Eu também tenho um produto que são as minhas ideias, sou eu próprio, portanto também tenho que fazer o meu marketing, que na verdade é comunicação política.
Está a haver uma cerca sanitária institucional, sobretudo no que diz respeito às vice-presidências do Parlamento?
Não exprimiria assim. É muito simples, o que o regimento diz é que têm direito a apresentar candidaturas a vice-presidente os quatro maiores grupos parlamentares, mas não diz que têm o direito de ver eleitos os seus candidatos, são eleitos os candidatos que tiverem, neste caso, pelo menos 116 votos. Portanto, deve escolher-se com cuidado as candidaturas e deve proceder-se às consultas necessárias para que as candidaturas tenham sucesso. E julgo que esse processo se iniciou, ainda não se completou, e vamos ver se há condições para se completar. No caso particular da Iniciativa Liberal, devo reconhecer que ter 108 votos num universo necessário de 116 votos numa primeira votação, significa estar perto dessa eleição.
Em relação aos diversos órgãos que não são eleitos e são de nomeação, e há dezenas de nomeações que têm de ser feitas pelo Parlamento, essa cerca sanitária institucional vai manter-se?
O Parlamento não vive com cercas sanitárias, vive de debate e de confrontação política e quanto mais viva melhor. Dou vários exemplos: ainda na conferência de líderes desta semana, pedi a todos os grupos parlamentares que apresentassem os seus representantes para o Conselho de Direção para o canal Parlamento e para o grupo que me assessora em matéria de edições e outras questões de natureza cultural. Nesse caso, regimentalmente, cada grupo parlamentar indica um deputado e, portanto, qualquer que seja a personalidade indicada por qualquer grupo parlamentar será aceite por mim.
Será validada?
Claro, se é indicação é indicação. Se é eleição, temos de ser eleitos.