foto Rita Carvalho Pereira/TSF
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Corria o ano de 1822, estávamos no reinado de D. João VI e Portugal preparava-se para "uma rutura político-institucional" como não haveria memória.
"É, por ventura, a mais profunda que tivemos na nossa História", arrisca Vital Moreira, professor catedrático jubilado de Direito, antigo juiz conselheiro do Tribunal Constitucional e ex-deputado na Assembleia da República e no Parlamento Europeu, agora coautor dos livros "História Constitucional Portuguesa" e "Para a História da Representação Política em Portugal".
Uma rutura que viria pôr fim ao Absolutismo e instaurar uma Monarquia Constitucional - depois de as invasões francesas terem levado a família real portuguesa a fugir para o Brasil e as forças inglesas terem-se instalado em Portugal.
"A revolução liberal é feita por uma elite intelectual, o Sinédrio, mas com apoio militar - porque os militares não só estavam insatisfeitos com o domínio dos ingleses como com a ausência do rei e consideravam que Portugal se tinha transformado numa colónia do Brasil. E, portanto, houve uma grande aliança social, que fez da revolução liberal um êxito", conta Vital Moreira.
Com este triunfo, instituíram-se novas cortes, rompeu-se com o modelo de poder em que era a vontade do rei a ditar as leis, e surgiu, então, a Constituição Portuguesa de 1822.
"Há um antes e depois dessa revolução constitucional. Antes, era o Absolutismo: não existiam cortes, não existiam liberdades individuais, não existia autogoverno municipal, não havia separação de poderes - o rei tinha o poder legislativo, o poder executivo e também o poder judicial -, havia arbitrariedade do poder, havia tortura, havia censura,...", nota Vital Moreira.
Já com a aprovação da Constituição de 1822, ficam consagrados os princípios dos ideais liberais da época: a representação, a separação de poderes, a igualdade jurídica e o respeito pelos direitos pessoais.
O documento era composto por 240 artigos e dividia-se em seis títulos, consagrando os direitos e deveres individuais dos cidadãos (visava "manter a liberdade, segurança, e propriedade de todos os Portugueses"; estabelecia também que "a livre comunicação dos pensamentos" era "reconhecida como um dos mais preciosos direitos do homem", assim como a existência de "um Tribunal Especial para proteger a liberdade de imprensa", a "igualdade perante a lei" e o princípio da proporcionalidade entre a pena e o delito, sendo abolida a tortura).
Portugal chega a esta nova era constitucional mais tarde do que outros países - como os Estados Unidos da América e a França, que criaram as suas constituições em 1787 e 1791, respetivamente - mas José Domingues, especialista em História do Direito e coautor dos livros "História Constitucional Portuguesa" e "Para a História da Representação Política em Portugal", sublinha que o documento português tinha avanços em relação às outras Constituições da época.
"De acordo com a Constituição de Cádis, por exemplo, no Brasil os afrodescendentes e os escravos libertos não poderiam votar, e, de acordo com a nossa Constituição, podiam", aponta José Domingues.
"A Constituição de 1822 coloca os direitos fundamentais à cabeça do articulado, a abrir logo. É a única Constituição que faz isso", frisa, acrescentando que, também "em relação ao sistema eleitoral para as cortes", se opta por "eleições diretas, pela primeira vez em Portugal".
Apesar de tudo, esta seria uma Constituição que ainda aceitava a escravatura e não reconhecia aos escravos a cidadania portuguesa. Também para as eleições diretas das cortes, estavam excluídos de votar "os criados de servir, os vadios, os Regulares e os que, tendo menos de 17 anos quando se publicou a Constituição", não soubessem ler e escrever quando chegassem "aos 25 anos". Além disso, não podiam ser eleitos "os que não [tinham] renda suficiente para se sustentar, procedida de bens de raiz, de comércio ou de emprego, os falidos e os libertos em país estrangeiro".
Depois de aprovada, a 23 de setembro, a Constituição de 1822 haveria de vigorar durante menos de um ano (até 3 de junho de 1823). Na sequência da Revolta da Vilafrancada, liderada por D. Miguel, filho do rei, e da nomeação de um novo Governo, D. João VI dissolveu as Cortes e revogou o documento.
"A Constituição nasceu, por ventura, demasiado avançada para a sua época. Quando as coisas começaram a funcionar, o rei descobriu que não tinha poder nenhum, a nobreza descobriu que tinha sido totalmente expropriada, o clero descobriu que também tinha perdido poder, os militares acharam que os ingleses já tinham ido embora e que o rei já tinha regressado, logo já estavam satisfeitos,... E, portanto, a coligação que tinha feito a revolução desfez-se", afirma Vital Moreira.
Daí para a frente, Portugal haveria de ter: uma Carta Constitucional, em 1826, outorgada pelo rei D. Pedro IV; a Constituição de 1838, jurada pela rainha D. Maria II; a Constituição Política da República Portuguesa, em 1911, a primeira constituição republicana do país; a Constituição de 1933, que vigorou durante a ditadura do Estado Novo, e, finalmente, aquela que prevalece até aos dias de hoje, a Constituição da República Portuguesa de 1976, redigida após a Revolução do 25 de Abril.
Mas é do documento de 1822 que mais bebeu a atual Constituição: "Ter liberdades individuais garantidas contra o poder; ter liberdade de imprensa; acabar com a inquisição; ter a abolição da censura, (...) A Constituição de 1976 é aquela que mais vai herdar da Constituição de 1822".
"Acrescentámos o sufrágio universal pela primeira vez, acrescentámos o Tribunal Constitucional, acrescentámos o Estado social, acrescentámos a autonomia regional e municipal mais profunda, mas os grandes parâmetros do Estado de Direito Constitucional, esses herdámo-los de 1822", conclui Vital Moreira.
Na Assembleia da República, haverá, esta sexta-feira, uma Sessão Solene para evocar a aprovação da Constituição de 1822, no âmbito das Comemorações do Bicentenário do Constitucionalismo.
A própria Constituição vai estar em exposição, aberta ao público, para quem a quiser ver, nos Passos Perdidos, no Parlamento.