O convite tinha sido endereçado há várias semanas, bem antes de as coisas começarem a azedar na praça pública entre Belém e São Bento. Chegados ao "dia PRR", Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa parecem ter deixado os desacatos para trás e, no périplo que começou em Lisboa e se prolongou por quase 400 quilómetros, mostraram que a relação não está tão tremida assim.
Pelas 10h00, Marcelo Rebelo de Sousa chega à Universidade de Aveiro onde já o primeiro-ministro, com uma delegação governativa de alto nível, o esperava para iniciar a "fiscalização" da obra paga com dinheiros europeus. Antes, um descontraído Ribau Esteves já havia brincado com o primeiro-ministro sobre a entrevista à SIC, que "correu bem", e também constatava que já tinha chovido de manhã "para assentar o pó da habitação".
Entre gargalhadas dos governantes, o autarca de Aveiro colocava o dedo na ferida para o que ainda aí havia de vir, isto porque o Presidente da República ainda não se tinha pronunciado sobre a mais recente apresentação do Executivo em matéria de habitação. Mas já lá vamos.
Já com Marcelo bem atento no local, Costa faz uma apresentação olhos nos olhos para explicar que o dia ainda reservava muita estrada pela frente, com projetos de vários tipos: "A ideia é, neste dia, poder ter uma amostra geral da diversidade, da dinâmica e de quais são os objetivos fundamentais do PRR", falando nas parcerias com universidades e politécnicos, municípios, IPSS e empresas que vão de start-ups a grandes multinacionais.
E se na Universidade de Aveiro o foco foi na inovação, até com um teste a bordo de um "autocarro inteligente" e que com uma tecnologia travava fundo ao confrontar-se inesperadamente com um ciclista, houve aí tempo para o primeiro sinal de aproximação.
Ouça a reportagem da TSF em Aveiro.
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"Pela força da maré / Embrenhar-me nos canais / Nunca navegando à ré / Soltando amarras do cais / Refluindo, refluindo / refluindo até jamais", cantava uma tuna da Academia de Aveiro que depois não quis faltar à selfie com o Presidente da República. Marcelo ainda chama Costa, mas ele põe-se literalmente fora de plano: "O senhor Presidente é que é especialista nas selfies, faz parte da separação de poderes."
Gracejo à parte e uma hora de visita depois, Costa acaba por admitir aos jornalistas que a relação entre São Bento e Belém "não carece de reforço" e que, "ao fim de tantos anos, já está reforçado". E lá seguem caminho para a próxima paragem com muitos sorrisos à mistura.
<strong>Pacote de habitação? Logo se vê...</strong>Seguindo estrada fora, eis que chegam a Lajeosa do Dão, concelho de Tondela, para uma visita às obras do Centro Multivalências da Associação Social Cultural Recreativa e Desportiva de Vinhal. Recebidos alegremente pelos locais, primeiro-ministro e chefe de Estado viram juntar-se um homem da terra que acontece ser vice-presidente do PSD: António Leitão Amaro.
No entanto, nada para a máquina governativa de fazer valer ao Presidente da República que o PRR está em marcha e em várias vertentes. Capacete e colete vestidos, visita à obra e à carrinha elétrica que vai passar a dar apoio ao domicílio dos mais velhos da freguesia.
E é aí que Marcelo mostra que não quer entrar em conflito com o primeiro-ministro. Quando questionado sobre o pacote da habitação, apresentado um dia antes pelo Governo, Marcelo Rebelo de Sousa diz querer esperar para ver as versões finais dos diplomas.
Os "três caminhos" de Marcelo no dossiê da habitação.
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"À luz do meu pensamento, olhando para os diplomas, eu depois aplicarei. Como dizia o senhor primeiro-ministro, e muito bem, há três caminhos, como na vida: um é não ter dúvidas e promulgar, outro é ter dúvidas jurídicas e pedir ao Tribunal Constitucional, outro é ter discordâncias políticas e vetar", vinca Marcelo a quem a luz do pensamento, há semana e meia, iluminava a "inoperacionalidade" de uma ponta à outra e a classificação de "lei-cartaz".
Mas poupando o Governo de um embaraço que fizesse cair mal o resto da viagem, Marcelo não se manifesta - mesmo perante insistência dos jornalistas -, nem confirma um novo envio da lei da eutanásia para o palácio Ratton. A ordem é esperar que os diplomas cheguem à sua secretária e, depois, logo se vê.
Marcelo que ler o diploma da eutanásia antes de tecer mais considerações.
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No entanto, o primeiro-ministro não perdeu a oportunidade para, num tom bem mais leve, insistir no argumento do "uns falam, outros fazem". Em conversa com o presidente da associação local, que se queixava de que são precisos mais apoios para uma população envelhecida, António Costa remata que há novas candidaturas abertas e aproveita para, com um sorriso estampado, concluir que "as grandes diferenças entre as visitas dos presidentes e as dos membros do governo" é nestas visitas com autarcas receberem "a lista do caderno de encargos".
"Mas eu também recebo [e pedem para que] chateie o Governo com isso, chateie, chateie, chateie", responde prontamente Marcelo para o primeiro-ministro que termina fazendo valer o ponto: "É isso!".
<strong>Nem tudo é um mar de rosas...</strong>Em ritmo de campanha eleitoral, a viagem segue para Viseu, onde o autarca Fernando Ruas espera a comitiva para mostrar um reabilitado bairro social.
É aí que António Costa tem o primeiro sabor agridoce ao ser confrontado por um professor, adepto da luta em marcha há várias semanas, falando do caso da própria família porque também a mulher é docente. O primeiro-ministro não se compromete com nada, mas escuta as queixas. Antes, também já tinha ouvido uma mulher queixar-se da falta de habitação social, mas aí não era ele o alvo, mas antes o autarca de Viseu.
E se, de manhã, jornalistas da agência Lusa interpelaram Costa e Marcelo sobre a greve em curso e a falta de resposta às reivindicações, também em Mangualde um grupo de professores esperava por duas das mais altas figuras do Estado para se fazerem ouvir pela contagem integral do tempo de serviço.
"Apreciador da Lusa", Marcelo já tem em mãos a carta dos trabalhadores.
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Mas apesar dos contratempos, foi mesmo em Mangualde que Costa pôde respirar fundo e regressar descansado com a certeza de que a relação voltou ao que era, pelo menos em público.
No balanço final do dia em que se esperava que Marcelo conhecesse as linhas com que o PRR se cose no terreno, depois de tanto aperto em público sobre os fundos europeus - quem não se lembra do "não lhe perdoo" à ministra da Coesão? - o chefe de Estado foi instado pela TSF a dar uma nota ao governo na execução do PRR.
"Eu dava notas quando era comentador, agora como Presidente da República não dou nota", diz Marcelo. Mas é aí que, não chegando à contrição, mete as coisas em perspetiva.
Identificando-se como um "catalisador positivo, que está alerta, que chama a atenção para aquilo que entende, em cada momento, que pode despertar a atenção do governo, do primeiro-ministro, dos autarcas e dos portugueses em geral para um desafio que é único e é difícil", o Presidente chama a si o papel de ter de ser exigente por saber "exatamente qual é a dificuldade que houve para pôr de pé o PRR".
"Dificuldades devem tornar o coração do Presidente mais mole e menos exigente? Não, mas o Presidente reconhece racionalmente as dificuldades que houve", completa Marcelo, lembrando que há países que estão muitos mais atrasados do que Portugal. E no coração mole demora-se ainda Marcelo para lembrar que a função é a de não cair para esse lado e, "de vez em quando, ser duro na exigência quanto à execução".
Marcelo avisa que, de entre as muitas funções do Presidente da República, ser "coração mole" não é uma delas
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"Não tenham dúvidas de que o primeiro-ministro pensa exatamente o mesmo", nota ainda o Presidente ao lado de um António Costa sorridente e que ainda ouve da boca do chefe de Estado que ele "não faz oposição por oposição".
"Quando o senhor primeiro-ministro está atento à reprogramação do PRR para tornar mais fácil e rápido de executar e concretizar os objetivos naquilo que é o mais próximo da meta que foi definida, está na mesma onda", sintetiza.
Uma conversa entre um antigo professor e um antigo aluno que foi parar à mecânica.
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Já António Costa finaliza lembrando ter sido aluno de Marcelo e que sabe o que ele "pensa sobre a Constituição", bem como sabe que o Presidente tem conhecimento do que Costa aprendeu. "Ao fim de tantos anos em que o poder de uns e outros estão mais ou menos estabilizados, já toda a gente percebeu qual a competência própria do Governo e do Presidente da República - é como um automóvel: se cada peça desempenhar a sua função, o carro anda bem e em segurança."
E numa fábrica de carros, sem lançamento de eventuais candidaturas como outrora na concorrente Autoeuropa, António Costa sublinha que pensa "dez vezes mais do que o senhor Presidente da República" na boa execução dos fundos porque, afinal, "se as coisas não correrem bem", é a ele que o povo vai pedir contas.
"É a mim que me pedem contas." Costa pensa "mais dez vezes" do que Marcelo no PRR.
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Com um agradecimento pelos "alertas", termina o périplo com mais uns sorrisos e uns cumprimentos e com a certeza de que tudo voltou a ser, aparentemente, como antes.
Para o primeiro-ministro, o medo é apenas um e em nada tem que ver com o PRR: "Esta mania de os drones andarem por cima das nossas cabeças, estou sempre a ver quando é que me cai em cima da cabeça."
Imagem: Paulo Vaz Henriques/Gabinete PM