O coração socialista não lhe tolhe a verve: João Galamba, o ministro das Infraestruturas apanhado no meio da tempestade entre Belém e São Bento, não deve continuar no Governo. Álvaro Beleza, médico e presidente da Sedes, Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, defende o primeiro-ministro e agradece ao presidente da República o sentido de Estado. E pede calma. "Há muita histeria, muita berraria".
Sugeriu, há dias, a propósito da crise institucional entre o Governo e a Presidência da República, e mesmo não se tendo referido a ninguém, que este caso demonstrava uma clara ausência de adultos na sala. Quem é que se comportou de forma menos adulta em tudo isto?
Quando estava a referir-me a adultos na sala, estava a referir-me, em especial, ao ministro das Infraestruturas, a vários membros e assessores do Governo. O presidente da República teve sentido de Estado. Porque sentido de Estado é a capacidade que alguém, num lugar de responsabilidade, tem de se autocontrolar, de dormir sobre o assunto antes de tomar uma decisão e de pensar, primeiro, no bem coletivo e, em último lugar, no seu próprio. O presidente da República teve a posição sensata.
E, por contraponto, e tendo também tido tempo para pensar e dormir sobre o assunto, António Costa esteve na mesma linha?
Eu tinha, praticamente, adivinhado - também não era difícil - que um primeiro-ministro não pode fazer uma remodelação, não deve, a pedido. É natural que o primeiro-ministro não fizesse essa remodelação e aceitasse o pedido de demissão do ministro das Infraestruturas, João Galamba. Eu acho que essa parte foi, talvez, infeliz, mas o futuro dirá quem é que terá razão. Se calhar estou enganado, veremos. Temos que ter a calma, todos. Há muita histeria, há muita berraria, as comissões de inquérito [referindo-se à da TAP ] são para isto mesmo, para saber as verdades. Todos os governos cometem erros, todas as oposições, o ser humano é imperfeito. Portanto, às vezes, pessoas muito inteligentes têm maus dias e têm más decisões. Agora, a questão da ética republicana, que convém lembrar muito nestes momentos, é de que um lugar político é um lugar transitório, de serviço público, e que sair de um lugar desses não quer dizer que seja o fim da vida. Há mais vida para além da política, há muito político que já se demitiu e que saiu de lugares de governação e que voltou. E, às vezes, vejo alguns que estão muito agarrados ao poder, que nem lapas, e que têm alguma dificuldade em assumir as responsabilidades.
Estava a falar de um modo abstrato, mas, voltando aos episódios dos últimos dias, quem é que está agarrado ao poder neste caso? É João Galamba ou é António Costa?
O ministro das Infraestruturas.... No lugar dele, não conseguiria manter-me no cargo. Mas isto tem a ver com a consciência individual. Se calhar, sou mais sensível, talvez por ser mais velho, tem a ver com a minha geração. Eu tenho a sensibilidade de políticos como Portugal teve no princípio do 25 de Abril, uma geração dourada da política. Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, todos eles com diferenças de opiniões, mas uns cavalheiros. E com educação, sentido nobre da política. E isso faz muita falta. Há que aprender com os erros e espero que, agora, tudo serene e que as coisas sejam mais simples.
Acredita mesmo nisso?
Tivemos um crescimento económico extraordinário no ano passado. Estamos a ter um crescimento económico acima do previsto e vamos bater todos os recordes de exportações. Portugal tem boas empresas, boa Academia, bons empresários, boas estruturas. E, portanto, haver uma crise política no meio disto tudo e a destruição do Parlamento seria um desperdício. Os mandatos são para cumprir. O Parlamento deve ir até ao fim.
Esse seu otimismo quer dizer que acredita que o Governo vai manter-se em funções até, pelo menos, às europeias do próximo ano? Ou acha que, em caso de nova escorregadela, o presidente da República vai materializar a ameaça que deixou no ar?
O presidente também não iria dissolver o Parlamento a pedido, porque tem que haver respeito pela autoridade e pelas regras da democracia. A situação económica é boa. Não está a chegar às pessoas, não, porque isto funciona como uma pedra no charco. Nós tivemos uma inflação, já batemos o pico da inflação, mas ainda estamos todos a sentir as consequências da inflação alta, principalmente as pessoas que têm menos rendimentos. E depois, a consequência posterior da inflação, que é o aumento dos juros, estamos a tê-la ainda. Ainda há o Banco Central Europeu. Manteve um aumento dos juros. Mais pequeno, é certo, mas manteve. E deu um aviso para os governos não andarem a fazer ao contrário dos bancos centrais, porque havia um aumento de juros. Os bancos centrais não podem andar a aumentar os juros para tirar dinheiro da economia e, ao mesmo tempo, os governos andarem a pôr dinheiro na economia. Isto é contraditório.
O presidente, sobretudo na parte inicial da sua intervenção, que foi duríssima, passou um atestado de incompetência ao Governo, referindo-se a áreas em que o Governo estava a fazer grandes anúncios, grandes proclamações, mas não estava a conseguir, usando as suas próprias palavras, fazer chegar o dinheiro ao bolso das pessoas...
Quando se fala do populismo, temos que dizer a verdade às pessoas. O Governo não pode pôr o dinheiro no bolso das pessoas. Há uma medida dos bancos centrais para aumentarem os juros e tirarem dinheiro da economia. É uma questão de oferta e de procura. A inflação está a baixar. Andamos aqui com um jogo de espelhos que não é correto. Eu acho que o Governo tem estado bem em várias áreas. Na Saúde, tem estado muito bem e está a fazer reformas estruturais relevantes. Na Administração Interna, muito bem. O ministro Duarte Cordeiro tem estado muito bem na área do Ambiente. Há áreas da governação que estão a correr bem. Há outras que não correm tão bem. Mas isso também faz parte de todos os governos.
Está a pensar no dossiê TAP?
É evidente que escândalos como o da a TAP não ajudam. Mas já agora com a TAP.... e, por isso, é que eu acho relevante a questão do ministro das Infraestruturas. Ele não tem condições políticas hoje. Eu sei que está a prazo. Mais dia menos dia, o ministro sairá do Governo. E não é só isso. Ele é o ministro que tem que tratar da privatização da TAP. É preciso agora vender, privatizar bem a TAP. Preservar o hub português. Essa é a questão estratégica para Portugal. É o hub. E a TAP é uma ferramenta ao serviço de Portugal. Isto não é nada contra o jovem João Galama. Não é uma questão pessoal. O ministro que tutela a TAP devia ser o mais forte possível politicamente. E não ter que andar com estes problemas todos os dias e com esta comissão de inquérito. Isso é uma coisa óbvia. Até um médico entende. Óbvia e elementar. Mas não é assim. O Governo terá que gerir isto. Compete aos líderes políticos pôr aqui um bocado de água na fervura e calma. Porque Portugal até está a ter crescimento económico. Estamos a crescer mais do que a média europeia. Coisa rara nos últimos 20, 30 anos. Eu próprio, que tenho sido o maior crítico, e tenho defendido, como sabem, políticas de crescimento económico típicas da Irlanda e da Holanda, em termos fiscais, reconheço isso. Com este crescimento, temos que ter juízo.
Há pouco aflorou a questão do populismo. Passe a imagem simplista, não há aqui um "recreio" que não faz muito sentido entre o presidente da República e o primeiro-ministro?
Se há altura em que é muito importante que o presidente da República e o primeiro-ministro tenham uma boa relação, é agora. E, portanto, a história não os desculpará se não fizerem um esforço para terem. Isto correu mal. Todos cometem erros e ninguém é perfeito. Temos que andar para a frente e temos que ter um presidente e um primeiro-ministro que retomem a sua boa relação, porque isso é bom para o país.
Acha que as palavras duras, mas apesar de tudo tolerantes do presidente, demonstram que ele está, de certa forma, encurralado pelo quadro político e pela inexistência de uma alternativa clara e homogénea à direita?
A gratidão é uma coisa bonita e está muito no DNA do Partido Socialista, de Mário Soares, de que eu, com muito orgulho, faço parte. O presidente apoiou muito o Governo do Partido Socialista, nomeadamente no tempo da geringonça. Portanto, eu acho que há que ser grato a um presidente da República de outra cor política que pensou no país à frente das suas próprias convicções pessoais e, portanto, tem que haver aqui respeito mútuo. Mas acho que, se houvesse uma alternativa de Direita, o cenário teria sido este. O presidente não pode ser a oposição, porque isso prejudica o maior partido da oposição e a liderança da oposição. É importante para o país que o PSD se afirme como alternativa, que haja uma alternativa de um partido ou de vários a este Governo. E essa é que é a melhor maneira de combater o populismo. Que a alternativa a um Governo do PS, que é um partido de centro-esquerda, seja uma governação de centro-direita, de moderados de direita reformistas. O PSD tem que se fortalecer, tem que apresentar um programa de Governo alternativo. Devia ter ministros-sombra, como tem o sistema inglês, para nós sabermos quem são os rostos da oposição para a Saúde, para a Defesa, para as várias áreas, e de ter políticas alternativas naquilo que há de ser alternativo.
Não lhe parece que o cidadão comum ficou com a sensação de que, depois de uma tempestade, não aconteceu nada?
Mas é uma tempestade. É uma tempestade por causa de alguns escândalos e de algumas atitudes, como a de chamar o SIS. Alguém tem de pagar o preço, no fundo foi isso que o presidente disse. E vai pagar, não tenho dúvidas que, no fim do dia, alguém vai pagar. Se não paga agora, paga mais tarde.
A SEDES publicou um livro com 57 medidas na área da Justiça. O problema é tão profundo que exige um caderno tão abrangente? E em que é que o país ganhava com a extinção do Ministério da Justiça?
A ideia é fazer como alguns países têm: o Ministério da Administração Interna e o da Justiça no mesmo ministério, a que não se chama o Ministério da Justiça. Já há áreas hoje que passaram para o Conselho Superior da Magistratura. Nós defendemos a ideia de criar um Conselho Superior único de Justiça, que gira, no fundo, os tribunais, que administre os tribunais. Temos que ter a independência dos três pilares da democracia: judicial, legislativo e executivo. Portanto, toda essa área deveria estar à parte e ter uma gestão própria, com um orçamento próprio, como tem a Presidência da República e a Assembleia da República.
Outra das bandeiras da SEDES tem que ver com a necessidade de mudar o sistema de ensino, aprofundando a ligação entre as empresas e as universidades. Numa área em permanente estado de crispação, e agora ainda mais, será possível um entendimento duradouro e verdadeiramente progressista?
Eu, por acaso, acho que aí até tem havido avanços, e esse é um entendimento do Governo e da oposição, acho que aí há um grande consenso e Portugal tem dado muitos passos nesse sentido. Hoje temos mais doutorados nas empresas, mais ligação das empresas à investigação em algumas universidades, que são casos de sucesso, mas precisamos ainda de uma coisa que eu disse, há tempos, na Porto Business School: mais doutorados nas empresas, é preciso mais gestores qualificados nas empresas portuguesas, mas também precisamos de ter empresários com sucesso a dar aulas na faculdade, que não tenham que ter um curso superior para ser professores. Rui Nabeiro devia ter sido professor catedrático de Economia. Porque são exemplos desses que os jovens têm que seguir. Nós temos que criar espírito de empreendedorismo na juventude portuguesa.
Como é que se consegue isso? Os jovens têm salários baixíssimos, são forçados a emigrar...
Por isso é que nós defendemos que Portugal tem que fazer aqui algumas reformas estruturais. Nomeadamente, na mentalidade. Nós temos medo do risco. Nós temos sempre a coisa da culpa. Quando alguém comete um erro, parece que é uma coisa para toda a vida. Quando uma empresa vai à falência, não se pode levantar mais porquê? Temos que aprender a viver com o erro e a superar o erro e a dar oportunidades às pessoas. Depois, o financiamento da economia, muito baseado na banca. Ao passo que a economia americana e inglesa e anglo-saxónica, têm bolsas de valores muito importantes. Por isso é que as startups portuguesas que se tornam unicórnios vão para os Estados Unidos. Não é só porque têm mais mercado, é porque têm financiamento de risco. Aqui não há financiamento de risco. Portanto, nós temos uma economia muito aristocrática. Os grandes grupos são quase todos familiares. O ascensor social é pequeno. Há aqui muita coisa que é preciso ultrapassar. Tem que haver capital de risco, tem que haver investimento. Para aí, têm que ir os fundos como o PRR e outros do Estado. Tem que se apostar em jovens que parecem doidos. O Steve Jobs, quando era miúdo, parecia doido. Há muitos que tentaram ser Steve Jobs e que falharam. Para haver um que tenha sucesso, muitos falharam.
Tem lembrado, por diversas vezes, a necessidade de o país ser mais pragmático na aplicação dos planos de desenvolvimento económico. A verdade é que, Governo após Governo, mais à Esquerda ou à Direita, não há plano nenhum que resista e essa materialização demora a acontecer. Porquê?
Nós (na Sedes) vamos homenagear agora, a 29 de maio, o dr. João Salgueiro. Vamos criar um prémio de visão estratégica. Porque a geração de João Salgueiro, de Rui Vilar, Guilherme Oliveira Martins, de Sá Carneiro, de outros, foi a geração que, nos anos 60 e 70, fez os planos de desenvolvimento do país. Por exemplo, a divisão administrativa que ainda temos nas CCDR. As barragens, a água, muito do pensamento estratégico. O aeroporto do Montijo, por exemplo.... Eles tinham pensado num outro aeroporto. Desde o 25 de Abril que nós andamos com menos pensamento estratégico e mais a discutir a política do dia-a-dia.