Sampaio da Nóvoa foi candidato às eleições presidenciais de 2016, apoiado por uma parte da esquerda. Depois saiu de cena e cumpriu na UNESCO um silêncio (também) diplomático. De volta à visão ativa que mantém da política, não fecha portas a Belém, embora guarde essa questão para outro tempo. Sobre este, o das legislativas, acha impensável que tudo fique na mesma e pede a António Costa a "humildade democrática" de um compromisso alargado, acima dos partidos.
Esteve em Paris quase quatro anos. Afastou-se dos meandros da vida política nacional ou, apesar do silêncio diplomático, manteve-se sempre atento à vida pública?
Mantive-me sempre atento e é um dever de cidadania de todos nós. O afastamento resultou do que eu disse na noite em que perdi as eleições e creio que respeitei integralmente, nomeadamente durante o primeiro mandato do atual Presidente da República, mas sempre com muita atenção. O tempo da UNESCO foi de afastamento por razões diplomáticas, em que a concentração era noutros temas, noutras ideias, noutras esferas, mas foi um tempo absolutamente excecional da minha vida, muito importante e muito marcante.
Como é que avalia a posição de equidistância do secretário-geral do Partido Socialista nas eleições de 2016?
O tempo de 2016 já passou. Foi disputado em circunstâncias muito difíceis em muitos domínios. Não tenho vontade de voltar a essa análise. Não consigo imaginar um tempo nem mais forte nem mais importante do que essa luta pela cidadania, pela liberdade, pela participação, pela esperança, por um país diferente. E se há alguma coisa que me reconforta muito é encontrar pessoas na rua, hoje, passados seis anos, a dizerem-me "obrigado, foi muito importante ter feito o que fez".
Liberto que está das funções diplomáticas, faz parte da sua vontade voltar à atividade política? Equaciona, por exemplo, voltar a candidatar-se à Presidência?
A minha atividade foi sempre a mesma, a minha cidadania, a minha maneira de estar na política, sem estar na política no sentido partidário, foi sempre a mesma e continuará sempre a ser.
Mas pode ser mais ativa ou mais discreta...
Pode ser mais ativa, mais discreta e eu entendi que no princípio de 2015, que era um momento absolutamente dramático do país, era preciso sair de um certo conforto e assumir uma voz mais forte no espaço público. Foi o que fiz, não estou arrependido, antes pelo contrário, já o disse, foi talvez o momento mais importante da minha vida. Quanto a projetos futuros, estamos hoje num momento muito difícil de Portugal, a poucos dias de eleições legislativas. Colocar em cima da mesa o tema das eleições presidenciais daqui a quatro anos, ou estar a falar de alguma coisa sobre essa matéria, acho que seria insensato, seria até um certo desrespeito pelos portugueses e eu não o farei.
Mas não é uma porta que fecha?
Sinceramente, acho que seria um desrespeito para os portugueses nesta fase da nossa política estar a falar de coisas que vão acontecer daqui a quatro anos. Agora, em relação ao meu envolvimento político, nesse sentido amplo de participação, de cidadania, a partir do meu lugar de independente, sempre estive disponível, sempre estarei disponível.
Que opinião tem da forma como o Presidente da República tem desempenhado o seu papel e de como geriu a crise aberta com o chumbo do Orçamento do Estado?
Penso que a pergunta tem duas coisas diferentes. Uma é sobre o papel do Presidente da República nestes seis anos de mandato e a minha opinião é muito clara. Eu julgo que Marcelo Rebelo de Sousa teve um primeiro ano excecionalmente bom, um primeiro ano em que reabilitou a instituição Presidente da República para os portugueses, aos olhos dos cidadãos. Um primeiro ano em que teve um papel essencial na construção de uma situação de estabilidade inédita para Portugal, e julgo que esse primeiro ano foi muito marcante e muito importante.
E depois disso?
Depois disso, julgo que teve um papel de um excesso de comentário. Julgo que todos o dizemos. Num comentário sistemático, permanente, obsessivo, num comentário que tem uma vantagem, que será a matriz e o objetivo de Marcelo, que é explicar aos portugueses a realidade. Explicar a política, explicar a economia, explicar os incêndios, explicar a pandemia. Mas a meu ver esta não é a sua missão principal e, ao fazê-lo, fechou a sua função presidencial numa espécie de presentismo. É uma função presidencial muito marcada pelo presente, pelas coisas do dia a dia. A minha visão da função presidencial em Portugal é um bocadinho o oposto desta, é a ideia de alguém que ajuda o país a pensar o futuro. Falta futuro à política portuguesa, de um modo geral. Estamos excessivamente fechados num presentismo que está a asfixiar as possibilidades de um país que tenha outra ambição, outra ousadia, outra capacidade de pensar o futuro.
Isso é uma crítica também ao Governo? À solução que foi encontrada nestes seis anos?
É uma crítica ao Governo, é uma crítica à política de um modo geral. A política portuguesa está muito fechada, os partidos estão muito fechados. É preciso que tenhamos uma outra qualidade da nossa democracia e a qualidade da nossa democracia passa por uma maior participação, maior abertura da política aos cidadãos. Não basta dizer que queremos que os cidadãos participem. É preciso criar as condições para isso. É preciso que a vida política, as leis eleitorais, a maneira como se organizam as eleições, o modo como o sistema eleitoral funciona não seja um obstáculo a essa participação. Precisamos de instituições com mais qualidade, que não permitam que aconteçam coisas como numa instituição do Estado haver tortura e assassinato, de haver escravatura em Portugal que ninguém viu.
Preocupa-o o risco de ingovernabilidade ou é um tema de presente que está a ser colocado para causar tensão nestas eleições?
É evidente que é um tema de presente, mas é um tema de presente muito importante. Vendo de fora, continuo a não perceber o que aconteceu, continuo a não perceber esta crise, não quero utilizar a palavra de que estou zangado, porque a palavra zanga não é bonita, mas não consigo entender o que aconteceu.
Não consegue entender os partidos, ou o desenlace da dissolução do Parlamento?
Não consigo entender os partidos, em particular o BE e o PCP. Não consigo entender como é que, do ponto de vista do Governo, não houve a capacidade de encontrar uma solução, e também não consigo entender a intervenção do Presidente da República que, na minha opinião se precipitou, e ao precipitar-se também precipitou esta crise. Há uma espécie de incompreensão em relação a esta crise que, a meu ver, era desnecessária num momento muito difícil da nossa vida coletiva.
Acha que os eleitores vão penalizar globalmente a Esquerda?
Não sei. É provável que sim. Não sou capaz de fazer esse tipo de previsões.
Mas a sua opinião como homem da Esquerda é de que este é o momento de mudar o plano?
O que digo é que, neste momento, é preciso que alguma coisa mude. Acho que seria um bocadinho difícil de entender para os portugueses se tudo continuasse na mesma. Quer dizer, lançou-se o país numa crise política com o objetivo de tudo continuar na mesma? De haver a mesma correlação de forças no Parlamento? É esse o objetivo? Bom. Agora qual é a solução? Eu devo dizer que a solução de uma pequena vitória ou uma vitória relativa do PSD que fique dependente de um consentimento do PS para governar ou vice-versa, uma pequena vitória relativa do PS que fique dependente do PSD para governar, me parece uma solução sem nenhum futuro.
Mas antevê-se que qualquer solução estável tenha de ser negociada...
O que me parece, e é talvez a primeira vez na minha vida que tomo uma posição pública neste sentido, de maneira tão clara, é que não vejo ninguém capaz, nos próximos quatro anos, de construir algum futuro para Portugal a não ser António Costa. Creio que é a pessoa que tem essa possibilidade de criar uma espécie de coligação progressista com os portugueses, não é só com os partidos. Gostava de o ouvir falar dessa ambição de coligar, de fazer um contrato com os portugueses, da esquerda e da direita, de causas muito diferentes, dizendo-lhes que será sempre a partir do lugar da humildade democrática, que será sempre a partir do diálogo social, que se fará o próximo Governo.
E é possível esse compromisso acima dos interesses partidários?
Acredito que, em determinados momentos, certas pessoas podem fazer a diferença na vida do país. E acredito que essas qualidades existem, é preciso que haja uma espécie de libertação deste pequeno presente, desse pequeno jogo partidário, e a capacidade de enfrentar os grandes temas do futuro. Os problemas da demografia são provavelmente o mais importante para o futuro. E isto implica políticas inteligentes. Implica uma conceção do que é o intergeracional, do que é a vida nas cidades, implica uma conceção muito diferente da educação, da saúde, da ideia de cuidar...
Não temos isso em nenhum programa eleitoral?
Não temos. Eu li, e reli, muitos programas eleitorais e estão feitos de forma setorial, como é habitual. Não vejo ali as grandes ideias transversais como esta da mudança demográfica, que é essencial. E depois a mudança digital e a chegada da inteligência artificial. O que temos são chavões, mas estamos totalmente despreparados.
E pensa que é essa impreparação que explica fenómenos como os extremismos? Preocupa-o este crescimento?
Preocupa-me como preocupa toda a gente, mas devo dizer que não dou excessiva importância a isso. O que temos de fazer é preparar os cidadãos. Temos de promover a cultura científica. Melhorar a qualidade da nossa democracia. Melhorar a qualidade das nossas instituições. Este é o caminho que temos que fazer. E se fizermos esse caminho, o resto continuará a existir, mas será relativamente marginal.
Concorda com a expressão muitas vezes usada de que o Plano de Resiliência é a última oportunidade para Portugal dar um salto e se desenvolver?
Claro que é uma oportunidade fundamental. Os próximos quatro anos são fundamentais para preparar e projetar Portugal, para conseguirmos sair de um certo marasmo que nos habitou durante este século XXI.
É um homem de esquerda. Este século XXI tem sido governado, sobretudo, pela esquerda...
O século XXI trouxe-nos governos, quase me apetecia dizer, trágicos do ponto de vista democrático, no que diz respeito ao Governo do eng. José Sócrates, com toda a arrogância de uma forma de governar que foi muito nociva para a democracia, e para a participação. E depois o Governo, a expressão não é minha, do "genocídio social" do dr. Pedro Passos Coelho, que nos trouxe essa tragédia social. Precisamos de sair destes espaços.
E os últimos seis anos foram perdidos?
Foram seis anos que tiveram uma primeira fase importante, de tentar repor um conjunto de questões nomeadamente nas áreas do trabalho, salariais, etc. Era necessário reparar essas injustiças, mas ficaram-se no reparar. Ora, eu quero é uma política de preparar o futuro.
Estamos a perder o comboio europeu?
Acho que perdemos energia. Na segunda fase desse ciclo, perdeu-se energia e eu, sinceramente, tenho dificuldade em perceber porquê. Porque é que com a configuração e com a correlação de forças que havia no Parlamento não se conseguiu construir essa coligação progressista, essa coligação de futuro para Portugal que, a meu ver, é absolutamente essencial.
Em relação ao futuro, como é que se trazem os jovens para os centros de decisão?
Não se trazem para a vida política tal como ela existe hoje em dia. Não se trazem para dentro dos partidos, de certeza absoluta.
Mas podemos transformar a política e os mecanismos de decisão?
O melhor que a política pode fazer hoje é olhar para esta realidade. Perceber esta realidade e ser capaz de ajudar o caminho destes jovens. Veja-se o que existe em Portugal nas universidades, na ciência, nas empresas, na sociedade, na saúde, na área dos cuidados, em associações. Tentemos construir maneiras de promover os jovens em vez de imaginar que, com apelos retóricos a que eles participem na vida política, conseguiremos alguma coisa. É preciso ir à procura dos melhores, das melhores coisas, dos melhores movimentos. São jovens que têm muito mais mundo do que todas as gerações anteriores, que têm muito mais consciência política, eu vou utilizar esta palavra intencionalmente, têm muito mais consciência política do que muitos dos políticos e dos partidos que estão na nossa vida. Que têm muito mais consciência dos problemas, que percebem quais são os grandes temas do século XXI.
E os partidos não estão a compreender isso?
Os partidos políticos não estão a perceber porque eles não estão no meio da realidade. Eles estão fora da realidade. E é preciso estar no meio das pessoas, no meio dos problemas, no meio da realidade. E é nesse sentido que eu digo muitas vezes que, se alguma coisa eu quero, é ter coragem de estar no meio. Ser capaz de os ajudar a pensar, e de algum modo contribuir para que eles projetem um outro Portugal com ambição, com ousadia, sempre com esperança.