"Queremos derrotar a possibilidade de maioria absoluta do PS"

O objetivo do Bloco de Esquerda é "continuar o que já começou" na Câmara de Lisboa e, por isso, pede força para "derrotar a possibilidade de maioria absoluta do PS". Beatriz Gomes Dias gostaria de ficar com pelouros da Educação e Habitação, sendo que neste último é bastante crítica da atuação socialista. Para o futuro? Construir 10 mil habitações acessíveis na cidade.

Beatriz Gomes Dias, 50 anos, nasceu em Dakar, no Senegal, mas bem pequena veio para Lisboa, a que se candidata agora, pelo Bloco de Esquerda. Licenciada em Biologia, é professora, agora com a carreira suspensa, depois de eleita em 2019 deputada ao Parlamento. Ativista antirracista, fundou a Djass - Associação de Afrodescendentes.

O mandato do Bloco de Esquerda em Lisboa, neste ciclo autárquico, ficou muito marcado pelo caso Robles. Reconhece isso?

O nosso mandato permitiu alterar várias dimensões da política na cidade de Lisboa. O Ricardo Robles teve uma incongruência, que assumiu, e demitiu-se, ao contrário do que muitos políticos fazem. E o Manuel Grilo assumiu o resto do mandato, cumpriu, e nós temos conquistas importantes na cidade de Lisboa. Estamos orgulhosas do mandato que fizemos. Posso referir alguns exemplos de transformações que foram profundas na forma de fazer política e que melhoraram a vida das pessoas. Temos como exemplo o espaço da redução do preço dos passes, que começou do acordo que o Bloco de Esquerda fez com o PS para o Executivo da Câmara Municipal e que depois se tornou numa medida nacional. Também a gratuitidade dos manuais escolares, é uma medida que vem do nosso trabalho na Câmara.

Tendo em conta as lições do caso Robles, garante que não tem interesses conflituantes com a gestão da coisa pública. Nem ninguém da sua lista?

Nós fizemos essa pesquisa, portanto, quando decidi candidatar-me à Câmara Municipal de Lisboa isso foi uma das coisas que eu ponderei. Ou seja, verificar se não haveria nenhum conflito entre o exercício das funções para as quais me candidatava e outras dimensões da minha vida. Não tenho nenhum conflito. A minha declaração de interesses está pública e eu tive que a preencher quando fui eleita deputada [à Assembleia da República]. A minha situação financeira e patrimonial é conhecida.

E na lista?

Também.

O Bloco de Esquerda apoiará Fernando Medina (PS) se este ganhar sem maioria absoluta? Admite que se repita o acordo que foi feito há quatro anos, nos mesmos termos ou noutros?

O acordo que nós fizemos há quatro anos foi muito importante para transformar a vida das pessoas que vivem na cidade de Lisboa. Conseguimos essa capacidade de imposição de medidas do nosso programa porque tínhamos um programa autónomo e os nossos programas são diferentes. Temos um programa que vai ser apreciado, analisado pelos eleitores de Lisboa, pelas pessoas que votam na cidade de Lisboa e, consoante o resultado que nós tivermos, estamos disponíveis para negociar com o PS um acordo que permita a incorporação de medidas que nós consideramos fundamentais. A força que tivermos nas eleições vai determinar a força que temos nesse acordo que será feito com o PS, caso o PS ganhe as eleições sem maioria.

Entretanto já há um acordo formal entre o PS e o Livre. Haverá mesmo, se bem entendemos, uma coligação formal pré eleitoral entre o PS e o Livre. As relações do Bloco com o Livre, nomeadamente com o Rui Tavares, foram marcadas por, enfim, momentos desagradáveis. Essa coligação formal não causa mal-estar no Bloco de Esquerda? O Bloco não se sente ultrapassado neste processo?

Não nos sentimos ultrapassados porque nós temos um programa que é um programa de transformação da política na cidade de Lisboa e que coloca as pessoas em primeiro lugar. E esse programa é que nós consideramos que é importante que seja avaliado. A coligação do PS e do Livre traduz um campo político que foi, de alguma forma, criado nas eleições anteriores. Em 2017 esse campo político já estava desenhado. O que se passa agora é a formalização desse campo político nessa coligação. Em 2017 elegemos um vereador e tivemos uma capacidade de impor algumas medidas na gestão da Câmara Municipal e estamos confiantes de que neste novo ciclo político, com o programa que apresentamos às eleições, vamos ter um reforço da nossa força na Câmara. A eleição de mais vereadores irá permitir não só influenciar, mas criar condições para que mais medidas do nosso programa sejam incorporadas na ação do executivo.

Já se sabe que, vencendo, Fernando Medina irá retirar ao Bloco de Esquerda o pelouro dos Direitos Sociais, que o vereador do BE atualmente detém, para o entregar a Paula Marques, do grupo de Helena Roseta que integra as listas do PS. No quadro de futuras e eventuais conversas do Bloco com o PS, isto é um bom começo de conversa? Não parece nada ser um bom começo de conversa já haver um pelouro que atualmente é do Bloco e que vai deixar de ser do Bloco porque o PS já decidiu entregá-lo a outra pessoa.

Nós precisamos de ter muito bem definidas quais é que são as medidas que vão ser implementadas. Um pelouro dos Direitos Sociais tem um conjunto de atribuições que importa executar. O que o pelouro dos Direitos Sociais irá concretizar em parte está definido no programa eleitoral. Temos o nosso programa com um conjunto de medidas que nós consideramos fundamentais para a transformação da cidade e para resolver os problemas das pessoas que vivem em Lisboa e esse programa vai ser votado. Parece que estou sempre a repetir-me, mas acho que considero isto fundamental. São os programas políticos que são votados. Não são propostas de composição de vereações. Os programas políticos são votados, são analisados e esses votos traduzem-se em mandatos. Portanto, o PS irá ter uma determinada a votação e nós iremos ter a nossa votação. E é a partir da força que nós conseguirmos ter, dos votos que conseguimos ter, é que vamos a negociar com o PS, vamos estabelecer acordos com o PS, a partir de programas. E é a partir desses acordos que a definição dos pelouros irá acontecer. O que nós queremos, neste momento, é ter força para poder impor medidas no executivo, que isto seja feito, um acordo com medidas concretas que transformam concretamente a vida das pessoas. Depois é que se irá definir quais é que são os pelouros que são atribuídos e a quem é que são esses pelouros atribuídos.

E precisamente por falar em questões de atribuição de pelouros, independentemente de conseguirem ou não conseguirem chegar a um entendimento com o Partido Socialista...

...mas nós estamos empenhados nisso. Ou seja, nós queremos derrotar a possibilidade de uma maioria absoluta do PS, porque consideramos fundamental que haja este acordo, este diálogo connosco, para poder imprimir uma transformação profunda na forma como se faz política. Continuar o que já começámos.

Ia perguntar-lhe, se não houvesse entendimento, se não tivesse pelouro na Câmara Municipal de Lisboa, se assumia o compromisso de ficar com esse mandato até ao fim. Tendo em conta esta sua última resposta, pergunto-lhe, e também tendo em conta os resultados das sondagens, que valem o que valem, mas são os dados factuais que temos ao dia de hoje, que pelouro é que gostava de ter na Câmara Municipal de Lisboa no próximo ciclo?

É uma resposta difícil, porque os pelouros que nós tivemos, dos Direitos Sociais e da Educação, foram extremamente importantes. Fizemos um trabalho de resposta a várias dimensões. Se pensarmos nos manuais escolares, foi uma medida muito importante para melhorar a liquidez das famílias, porque deixaram de ter aquela despesa com os manuais escolares. Isso foi uma medida iniciada pelo Bloco de Esquerda que depois tomou uma dimensão nacional. Isso é fundamental. Alterámos a forma como as refeições nas cantinas escolares eram fornecidos, ou seja, aumentámos a qualidade das refeições. Deixaram de ser servidas em recipientes de plástico, portanto isso reduziu o consumo de plástico, mas também melhorou a qualidade das refeições. Nos direitos sociais, neste contexto de pandemia que atravessou dois anos do mandato, também demos uma resposta muito robusta às pessoas em situação de sem-abrigo, iniciámos o projeto Housing First. Educação e Direitos Sociais são pelouros aonde temos um trabalho que iniciámos e que é interessante continuar. Contudo, o pelouro da Habitação também é um pelouro muito importante, porque é aquele aonde estão os problemas mais acentuados da cidade de Lisboa. Precisamos de disponibilizar casas que as pessoas possam pagar, precisamos de recuperar habitantes para a cidade de Lisboa, e isso é conseguido através do pelouro da Habitação, com um programa de renda acessível 100% público. Esse é o caminho que nós consideramos que deve ser seguido, que se disponibilize dez mil casas no mandato de quatro anos. Portanto, também o pelouro da Habitação é um pelouro importantíssimo para nós.

Já lá vamos ao programa do Bloco para estas eleições, mas só para confirmar, se percebi bem, riscados os direitos sociais...

Não estão riscados.

Já estão atribuídos no âmbito de outra coligação com o PS, pelos vistos.

Vamos ver como é que a relação de forças se estabelece. Vamos ver qual é o resultado que o PS tem e qual é a força que nós temos. Isso depois vai determinar o acordo, vai determinar os pelouros que são atribuídos.

Mas parecia-lhe bem, então, pelo menos a questão da Educação e da Habitação?

Sim, mas não deixando, também, de considerar que os Direitos Sociais são importantes.

O Bloco considera o caso dos ativistas anti-Putin completamente resolvido ou não? E essa história condiciona, ou não, as conversas, futuras e eventuais, que o Bloco irá ter com o PS?

O caso foi extremamente grave. É preciso fazer uma revisão dos procedimentos que permitiram que este este grave atropelo dos direitos tivesse acontecido. O presidente da Câmara assumiu as responsabilidades, pediu desculpa e alterou os procedimentos. Contudo, é preciso que seja feita uma avaliação dos novos procedimentos para verificar que efetivamente estão a ser cumpridas as regras. E as regras devem ser cumpridas em todos os departamentos da Câmara, incluindo o gabinete do presidente da Câmara. Não há nenhum departamento que não tenha de cumprir as regras de proteção de dados, isso é fundamental. E, por outro lado, nós também achamos que a exoneração do responsável dos dados, que foi uma das medidas que foi executada na resolução do problema que foi criado, foi uma medida errada e grave, porque o encarregado de dados foi a pessoa que apresentou uma estratégia e implementou medidas para a correção quando foram feitas as queixas. Quando os ativistas russos pediram uma explicação à Câmara sobre a divulgação dos dados, foi a partir daí que ele apresentou um conjunto de medidas para a correção.

Num princípio de boa-fé negocial, digamos assim, entre as duas partes, nas negociações eventuais futuras entre PS e Bloco Esquerda, seria importante para o Bloco que, por exemplo, essa decisão de afastar o responsável da proteção de dados da Câmara de Lisboa fosse revogada?

Nós votámos contra a exoneração do encarregado dos dados. E votámos contra por considerar que era um bode expiatório para um processo que correu mal. Um processo extremamente grave e foi encontrado como responsável para dar um sinal de que havia... que as responsabilidades estavam a ser atribuídas. O encarregado da proteção de dados foi a pessoa que ativamente encontrou uma solução para o problema, apresentou propostas e alterou o modo como os dados eram divulgados e, por isso, a sua exoneração era injusta e, nesse sentido, nós votámos contra a sua exoneração.

Presumo que faça uma boa avaliação do trabalho do atual vereador do BE na CML, Manuel Grilo. Havendo uma boa avaliação, porque é que ele não é candidato, não está nas listas?

Isso foi uma decisão pessoal do Manuel Grilo. Ou seja, ele cumpriu com bastante competência e qualidade e estamos orgulhosas do trabalho que fez nestes três anos, e, tendo cumprido esses três anos, tomou a decisão de não se recandidatar, e não estava disponível. É o mandatário da nossa candidatura. Esta candidatura, o projeto político que apresentamos às eleições, agora em 2021, recebe o legado do que foi o trabalho do Bloco de Esquerda nos quatro anos na Câmara Municipal de Lisboa, mas, de uma forma mais evidente, do trabalho do vereador Manuel Grilo ao longo destes três anos. É esse legado dele.

Há pelo menos uma sondagem que diz que é possível o Bloco ser mais forte do que a CDU em Lisboa. É um objetivo? Ou acha que, enfim, não é isso central no resultado do Bloco?

Como eu lhe disse, o nosso objetivo é: responder à crise da habitação, que existe na cidade de Lisboa...

...o que será um objetivo mínimo para o Bloco? Passar de um a dois vereadores?

O nosso objetivo é ter uma força maior... mais força na Câmara Municipal de Lisboa. Isso implica eleger mais vereadores do que aquilo que temos eleito atualmente.

Acha possível? Acha possível ao Bloco ser mais forte do que a CDU em Lisboa? Se isso não acontecer, será uma desilusão?

Considero que temos condições para ter uma melhor votação do que aquela que tivemos em 2017. O nosso programa e a nossa intervenção na Câmara, o trabalho que desenvolvemos, ao longo dos quatro anos, é reconhecido e valorizado. E, por isso, criamos condições para podermos esperar e ambicionar um reforço da nossa votação e dos vereadores que temos.

O Bloco umas vezes conseguiu eleger em Lisboa e noutras não. Não há uma constância nos resultados. Quando se candidata, sente que o peso do resultado de Lisboa implica leituras políticas nacionais?

O nosso trabalho de organização na cidade de Lisboa tem vindo a crescer e estamos mais fortes e vamos ficando mais fortes ao longo do tempo. Portanto, tendo eleito, tendo tido a capacidade de eleger um vereador em 2017, tendo cumprido funções executivas na câmara municipal, penso que estamos em condições de ter uma boa votação nestas eleições de 2021 e reforçar a nossa presença na câmara e conseguir impor mais medidas do nosso programa para a gestão da cidade.

E fazer leituras nacionais?

Penso que são dimensões diferentes. Ou seja, temos uma dimensão municipal, que é o nosso programa municipal, que nós defendemos e para o qual nos estamos a bater e a apresentar o programa e a querer que o máximo de pessoas o conheça, e que o maior número de pessoas se reveja nele, e com o maior número de pessoas a associar-se a esta proposta, para reforçar a nossa capacidade na câmara. E, por outro lado, temos a dimensão nacional, em que o Bloco de Esquerda tem um programa para o país e está a dialogar com o PS para impor um conjunto de medidas do nosso programa nacional no programa que depois vai ser executado. Portanto, são duas dimensões diferentes. Acho que devem ser lidas em separado.

Nas presidenciais, a candidata do Bloco de Esquerda foi claramente ultrapassada pelo candidato do Chega. É uma possibilidade que a preocupa em Lisboa, o crescimento do Chega, ainda por cima tendo em conta o seu papel como ativista antirracista e sendo o Chega o que é.

A proposta do Chega nacional tem sido centrada no ataque às pessoas racializadas, às pessoas ciganas, pessoas afrodescendentes, também tem sido no ataque muito marcado pelo ataque à esquerda. Ou seja, um discurso de ódio. Muitas das propostas políticas do Chega visam aumentar a vulnerabilidade em que essas populações das comunidades ciganas e das comunidades afrodescendentes já se encontram. E pessoas pobres também. Há aqui um discurso de ataque a grupos mais vulneráveis. Isso caracteriza o discurso do Chega.

O que lhe pergunto é se esse discurso tem acolhimento ao ponto de, como já aconteceu nas presidenciais, se tornar um discurso eleitoralmente mais forte do que o discurso do Bloco de Esquerda. O Chega é só um problema da direita ou também é um problema da esquerda, digamos assim?

O Chega é um problema porque ele alicerça toda a sua proposta política na exploração de preconceitos e na exploração da divisão da sociedade portuguesa, colocando umas pessoas contra outras pessoas. E isso é o problema e isso nós temos que combater. Por outro lado, também muitos dos dirigentes do Chega estão associados a negócios imobiliários. O Chega, no Parlamento, tem defendido os "Vistos Gold", que é uma medida que tem reduzido a disponibilidade de habitação para as pessoas que querem viver em Lisboa. Portanto, há um conjunto de medidas do posicionamento programático do Chega que deve ser combatido. E é isso que deve ser o centro da nossa intervenção. É contra este discurso, que estigmatiza as pessoas, que nós nos candidatamos também. Porque, quando afirmamos que queremos que Lisboa seja uma zona livre de discriminação, nós estamos a dizer, inequivocamente, que as múltiplas discriminações de que determinadas pessoas são alvo agravam as suas condições de vida, ampliam a desigualdade e aprofundam a vulnerabilidade em que elas se encontram. É esta a proposta política que eu levo e é esta a proposta política que eu espero que seja vencedora e que seja acolhida pelas pessoas que vivem em Lisboa.

Já disse que a maior prioridade do município deve ir para habitação e tem o objetivo concreto de, até ao final do mandato, de construir dez mil casas. Onde e como?

Essas dez mil casas são fundamentais para poder controlar o mercado de arrendamento. Vai permitir garantir que há casa a preços acessíveis e isso é fundamental. Nós não vamos conseguir recuperar habitantes na cidade de Lisboa se elas não conseguirem pagar os arrendamentos. Essas casas podem ser obtidas através de várias estratégias que nós já pensamos. Uma delas passa por recuperar, por ter um programa de renda acessível 100% público, que será uma medida da Câmara Municipal de Lisboa e essa medida, que já disponibilizou mil casas poderá, ao longo destes quatro anos do mandato, disponibilizar mais. Estas mil casas não estão nessa conta das dez mil. Depois temos o património disperso da Câmara Municipal de Lisboa, que pode ser recuperado e disponibilizado para este programa de renda acessível. O programa de renda acessível, como a CML o tem apresentado, tem dois pilares: um pilar público, que é o que tem avançado e que já disponibilizou estas mil casas; e há um pilar privado, que o presidente da câmara e que o PS insistem em manter, que não tem funcionado e que não disponibilizou nenhuma casa. Se alterarmos esta prioridade, e dermos a prioridade ao programa de renda acessível 100% público, podemos ir recuperar duas mil casas que serão resultado deste programa, deste pilar privado.

Porque é que não se foi mais longe na questão da habitação, neste mandato? É só a questão do privado ou houve outras questões?

Mas deixe-me terminar de dizer, de enumerar quais é que são os mecanismos que nós precisamos de mobilizar para conseguir estas dez mil casas. Portanto, a recuperação de património disperso da Câmara Municipal de Lisboa, a recuperação de património público para disponibilizar neste programa de renda acessível, e também conseguir captar algumas das casas que estão dedicadas ao alojamento local, passá-las para este programa de renda acessível. Ou seja, temos todos estes mecanismos que nos permitem obter estas dez mil casas. Contudo, respondendo à sua pergunta sobre a habitação, o que verificamos é que, no programa de renda acessível, o que resultou foi imposto pelo Bloco Esquerda, a parte pública do programa - e daí a importância de nós termos força para poder impor algumas medidas. O PS e o executivo da Câmara Municipal de Lisboa tiveram um entendimento contrário, considerando que o programa de renda acessível teria estes dois pilares, teria um pilar privado e um pilar público. E insistiu no pilar privado e acabou por correr mal. Esse pilar privado não avançou e as casas que estão disponíveis são apenas mil, número muito inferior ao que é necessário na cidade e, por outro lado, também era preciso impor regras do limite da locação de casas para o mercado de alojamento temporário, de curta duração, que foi também uma medida que resultou do acordo com o Bloco - mas ainda não conseguimos perceber plenamente o resultado dessa medida, porque, entretanto, a pandemia aconteceu e o turismo diminuiu bastante. Não podemos continuar a ter zonas da cidade em que mais de um quarto da habitação disponível está alocada a arrendamento de curta duração. Precisamos de resolver também essa diferença entre o alojamento de longa duração e o alojamento de curta duração.

E o outro problema da cidade é precisamente a mobilidade. Há um candidato que defende as cidades de 15 minutos, mas o Bloco tem aqui uma variante que é a Carris em 5 minutos. Que ideia é esta e como é que se concretiza?

É uma ideia extraordinária que permite ganhar a confiança das pessoas para o uso do transporte público. Nós precisamos de ter transportes públicos gratuitos e de qualidade. E, para isso, precisamos que as pessoas confiem que, quando saem de casa têm um transporte público num período previsível. Precisamos de transportes públicos em maior quantidade, em maior número e precisamos que eles sejam gratuitos. Como é que nós vamos conseguir implementar esta medida? É uma medida para ser implementada ao longo do mandato dos quatro anos, em três fases. Numa primeira fase, iremos garantir as carreiras de bairro gratuitas e para as pessoas que estão sem emprego. Portanto, essa será a primeira fase. E essa primeira fase custa 4 milhões, pelos cálculos que nós fizemos. Depois, numa segunda fase, iremos garantir que será gratuito para jovens com menos de 18 anos, irá custar 8 milhões e, depois, nesta segunda fase, [que será grátis] para pessoas com mais de 65 anos, e custa aproximadamente 10 milhões esta medida. E, depois, uma terceira fase, é estender a toda a população. Mas, para isso, é preciso reforçar a oferta de transporte público, para depois poder garantir que temos transportes públicos para toda a população. E esta medida é fundamental porque nós precisamos, urgentemente, de reduzir o número de carros que entram na cidade. A cidade não pode continuar a receber aproximadamente 360 mil carros diariamente. Tem que se reduzir o número de carros que entram. Para isso, precisamos de convencer as pessoas a deixar os carros em casa, e isso faz-se com transportes públicos gratuitos e de qualidade.

Esses valores que apresentou para estas medidas, ao nível dos transportes públicos, pelo menos nas contas que fiz, são 22 milhões de euros e ainda não abrange toda a gente. Onde é que vai buscar este dinheiro?

Esse dinheiro pode ser obtido, ou seja, pode ser alocado através do orçamento da câmara e, também pode ser alocado através da taxa turística, que pode ser usada para melhorar os transportes e, destas duas formas, nós conseguimos ter a receita necessária.

Há muita polémica à volta das ciclovias. A mais controversa será, porventura, a da Almirante Reis. Admite algum excesso do voluntarismo pro ciclovias ou acha que não? Acha que tem que haver mais e que o que pode acontecer é um problema de desenho da rede, digamos assim?

Nós precisamos de ter vias dedicadas aos ciclistas, ou seja para o uso da bicicleta. Precisamos de reduzir o número de carros que circulam na cidade. Ou seja, nós precisamos de transformar a mobilidade na cidade. E isso passa pela construção de vias dedicadas e elas devem-se estender pela cidade. Há zonas que não têm vias dedicadas para ciclistas, têm de ser criadas, e temos de criar também zonas de acalmia de trânsito, reduzir a velocidade a que os carros circulam, portanto, precisamos de, ao longo destes quatro anos, ir transformando a forma como as pessoas se deslocam na cidade, criando prioridade para os peões, para as bicicletas, para os transportes públicos. E, para isso, precisamos de ir transformando as vias na cidade.

Já aqui frisámos, ao longo desta conversa, que a Beatriz Gomes Dias é ativista antirracista. O Bloco não se cansa de denunciar que, de facto, o país tem um problema de racismo sistémico e estrutural. Sente que Lisboa está cada vez mais racista?

O que sinto é que nós precisamos, urgentemente, de ter medidas estruturais e transversais para remover os obstáculos que resultam da discriminação étnico-racial, do racismo. Ou seja, as sociedades foram construídas sobre preconceitos étnicos, raciais, de género, de identidade de género, de capacidade, de expressão de género, de idade. E todos esses preconceitos estão ativos. E eles criam dificuldades e obstáculos, ou seja, associam-se a outros fatores que criam desigualdade, como o estatuto socioeconómico, a classe social, somam-se e criam formas específicas de exclusão social. Precisamos de reconhecer que esses fatores estão ativos, temos que os conhecer bem, para os poder remover, ou seja, para podermos desenhar políticas públicas que removam esses obstáculos e que permitam uma justiça social e o acesso a direitos fundamentais, como o acesso à habitação de qualidade, o acesso ao Serviço Nacional de Saúde, o acesso verdadeiro à informação por pessoas que são alvo de múltiplas discriminações, ou seja, que combinam vários fatores de discriminação e de exclusão social. Isso afeta-as desproporcionalmente e faz com que, por exemplo, no contexto da crise que estamos a viver, grupos de pessoas tenham sido desproporcionalmente afetadas pela crise.

Mas sente que a cidade esta cada vez mais discriminatória?

Sinto que a cidade não implementou, ainda, de uma forma suficiente e robusta, mecanismos para eliminar a discriminação. Portanto, a discriminação continua ativa e continua a afetar desproporcionalmente as pessoas. E nós precisamos de reconhecer. Isso é fundamental.

Lisboa cidade feminista, este é um capítulo do seu programa, também. Não é habitual. Defende espaços noturnos seguros e sem "opressão sexista". Como é que isto se faz? Soluções concretas?

A medida em si é fundamental. Nós precisamos de reconhecer que existe uma opressão de género, ou seja, que existe violência de género e que o assédio é uma dimensão da violência de género. Precisamos de deixar de confundir o assédio com um elogio, porque não é um elogio, é uma forma de opressão que é exercida sobre as mulheres.

Mas isso é uma questão autárquica? O que é que um autarca pode fazer?

Acho que esse reconhecimento é muito importante. Se nós tivermos, se fizermos um trabalho de reflexão que reconheça que o assédio, a opressão sexual, a violência contra as mulheres é uma realidade que está colocada na cidade, porque, na verdade, os espaços noturnos são frequentados no âmbito da cidade... Ou seja, as pessoas saem à noite na cidade de Lisboa, também saem à noite em Braga. Cada município precisa de reconhecer essa dimensão como sendo uma dimensão autónoma, específica, que precisa de ser respondida. E nós precisamos de fazer um trabalho de formação dos empresários. As pessoas que têm esses espaços precisam de reconhecer que a violência contra as mulheres pode estar presente e ativa nesses espaços, e, por isso, encontrarem mecanismos de formação dos seus trabalhadores e trabalhadoras para a prevenção dessas ocorrências, para que as mulheres se possam sentir mais seguras nesses espaços. Imagine o que é estar no espaço de diversão noturna onde o dono, o gerente, tem uma consciência plena das dimensões do assédio, ou seja, que reconhece que o assédio não é o piropo, que reconhece que o consentimento é fundamental e que "não" é "não", ou seja, não é insistindo que se vai conseguir levar a pessoa a fazer o que o outro deseja que ela faça. Se os donos desses estabelecimentos tiverem uma formação específica sobre essa matéria, podem ter intervenções junto dos clientes, o que aumenta a segurança e o conforto das mulheres nesses espaços. Mas nós não precisamos de estar só nesses espaços. A própria câmara tem funcionários. É o maior empregador da cidade. Portanto, precisa de fazer formação dos trabalhadores e das trabalhadoras, precisa de ter regulamentos e normas para a própria câmara, para os gabinetes, os departamentos, para os funcionários. Não é só uma medida nacional, também não é só uma medida simbólica, ou só de transformação cultural. É uma medida concreta de intervenção, de códigos de conduta, que são implementados nos serviços, na forma como as pessoas atendem, na forma como se relacionam, como os colegas se relacionam entre si. Tudo isso pode ser feito a nível municipal, e, sim, também é preciso ser feito a nível nacional.

Tem referido muitas vezes que é preciso colocar as pessoas no centro da política. Aquilo que perguntamos é se, ainda por cima nesta circunstância pandémica, podem estar as pessoas no centro da política - mas também os negócios?

É uma pergunta bastante interessante e pertinente. O que sentimos é que, na cidade de Lisboa, as pessoas não têm estado no centro da política - têm estado os negócios. E isso tem afastado as pessoas da cidade. No Censos de 1981, viviam aproximadamente 800 mil pessoas na cidade de Lisboa; no de 2011 viviam 500 mil pessoas. Esta perda de habitação resulta desta política que coloca os negócios no centro. Houve bairros inteiros que mudaram para o Barreiro ou para outras cidades. Pessoas que viviam em Alfama e cujas casas foram vendidas, que foram despejadas das suas casas, mudaram-se para outros sítios e Alfama ficou quase vazio. É uma das zonas da cidade onde a maioria dos apartamentos estão alocados ao alojamento local. Ou seja, não estão as pessoas, está o alojamento temporário, está dedicado aos turistas, mas não está dedicado às pessoas que vivem.

Mas os negócios no seu todo porque é que não podem estar equiparados?

Precisamos de devolver as pessoas à cidade e devolver a cidade às pessoas. Há espaços públicos onde os empreendimentos são de tal forma caros que estão vazios. Não há pessoas a morar nesses empreendimentos. Muitos deles são especulativos. Portanto, precisamos de transformar tudo, esta lógica de construir a cidade, o espaço público deve ser desenhado de modo que possa ser ocupado pelas pessoas, garantir o direito à cidade. É isto. Devolver a cidade às pessoas e colocar as pessoas no centro da política. Mas a atividade económica também é importante. Porque é preciso atividade económica para a dinâmica da cidade e é preciso encontrar um equilíbrio entre a cidade para as pessoas e a atividade económica da cidade.

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