"O povo russo é como todos os povos do mundo. Alguns são certamente maus, mas na sua maioria são muito boas pessoas." John Steinbeck escolheu terminar com esta frase o livro "Um diário russo", escrito em plena Guerra Fria depois de uma viagem que tinha como objetivo mostrar aquilo a que chamou "o grande outro lado". Alexei (nome fictício) teve de convencer a mãe de que os portugueses também são boas pessoas.
Milhares de russos saíram do país desde que Vladimir Putin anunciou a mobilização de reservistas. Alexei foi um deles. Embora o Presidente russo tenha garantido que este seria um recrutamento "parcial", muitos temem que seja muito mais amplo e arbitrário e multiplicam-se os relatos de homens sem formação militar e de todas as idades a receberem avisos para serem mobilizados. Além disso, como já se tornou normal, tudo pode mudar de um dia para o outro. O que é "parcial" pode amanhã ser "geral".
Alexei não quer matar ucranianos. Não foi chamado para combater, mas com 37 anos corre esse risco. Se o for entretanto, já estará longe, num país, diz, onde as pessoas são tão calorosas como o tempo e cuja língua até soa a russo aos ouvidos de quem não a percebe. Mas a vontade de Alexei sair da Rússia surgiu muito antes da guerra, quando em 2021 Putin alterou a lei para conseguir disputar dois novos mandatos de seis anos, abrindo caminho à permanência no Kremlin até, pelo menos, 2036. Até então, a lei russa não permitia que um Presidente exercesse mais de dois mandatos consecutivos, pelo que em 2024 teria de abdicar do poder.
O moscovita começou a preparar-se para sair do país no verão de 2021, conseguindo um visto Schengen através de Espanha. Portugal não lhe atribuiu um destes vistos, mas abriu-lhe a porta de outra forma: o programa "Startup Visa", promovido pelo IAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação) com o objetivo de captar investimento estrangeiro. Este visto atribui uma autorização de residência a profissionais altamente qualificados que pretendam criar empresas de tipo startup. A candidatura para a empresa que se propôs a criar já foi aprovada, o próximo passo é abrir uma conta bancária em Portugal, mas já foi rejeitado por um dos bancos.
O processo devia ter ficado concluído em dezembro de 2021, mas atrasos sucessivos arrastaram o processo e agora Alexei teme que a guerra tenha mudado tudo. Se o visto não for aprovado, vai tentar um país asiático. Regressar à Rússia não é opção.
A primeira tentativa concreta para abandonar o país foi em fevereiro deste ano, logo depois do início da guerra. "A partir deste momento percebemos que o nosso governo está preparado para matar pessoas e que todo o país está envolvido... é completamente de loucos."
O voo que tinha marcado para a Turquia foi cancelado. Alguns dias antes de a mobilização começar conseguiu comprar bilhetes de ida e volta, com intenção de preparar a vinda para Portugal e conseguir um visto antes de se mudar definitivamente. Por causa do recrutamento, acabou por nunca regressar a casa, mas foi talvez a promessa de que o faria que o ajudou a atravessar a fronteira.
A UE proibiu voos diretos entre seus Estados-membros e a Rússia após o ataque à Ucrânia, por isso Alexei viajou de Moscovo para São Petersburgo, a que se seguiu uma viagem de autocarro de nove horas para Helsínquia, na Finlândia, o dobro do tempo que teria demorado se as estradas não tivessem cheias de pessoas a tentar fugir.
Na fronteira, foi interrogado pelas autoridades russas. "Perguntaram-me se estava a par da mobilização, se conhecia as minhas responsabilidades perante a lei, se sabia que estava a incorrer num crime se tivesse sido recrutado e estivesse a fugir." Durante 10 ou 15 minutos os guardas fronteiriços analisaram os dados, tiraram cópias dos bilhetes e Alexei aguardou ansioso, "como se fosse culpado de alguma coisa".
Aprovada a passagem, no outro lado de lá da fronteira guardas "sorridentes" só lhe perguntaram qual era o propósito da sua viagem e quando pretendia voltar. O autocarro que o levou da fronteira para Helsínquia estava cheio de homens russos em idade militar. Todos conseguiram sair da Rússia.
Daí seguiu viagem de avião para Amesterdão, nos Países Baixos, depois para Madrid e depois para Alicante e por fim Torrevieja, no sudeste de Espanha, antes de seguir viagem para Lisboa. Foi na casa de amigos espanhóis que finalmente se sentiu seguro.
"Antes disso não conseguia dormir. Ninguém estava à minha procura, mas no fundo sentia-me muito inseguro. Nunca sabemos o que pode acontecer no dia seguinte. Dormir no sofá deles foi a primeira noite completa que dormi em várias semanas. Dormi como um bebé. É um sentimento estranho, sentir-me melhor longe da minha própria casa, muito mais seguro num país estrangeiro."
Quando, a 24 de fevereiro, Putin anunciou o que descrevia como uma "operação militar especial" na Ucrânia, ninguém acreditou que algo ia mesmo acontecer, diz Alexei. "Todos pensaram 'isto é de loucos'", a Rússia era uma peça importante na economia global e vivia tempos de "conforto", especialmente para quem vive nas grandes cidades. Invadir a Ucrânia não fazia sentido.
Depois, "quando a guerra começou, todos pensaram que seria muito curta, tal como aconteceu em 2014 com a Crimeia, mas isso não aconteceu. E agora com a mobilização tudo se está a encaminhar para que nada mude. Não acredito que Putin mude de ideias, já alcançou tantos dos seus objetivos que agora não vai parar". O próximo passo é recrutar mais pessoas, acredita Alexei.
"No início, Putin era muito inteligente e transmitia uma mensagem mais liberal nos seus discursos, depois o tempo passou, decidiu ficar Presidente para sempre e mudou muito. Tornou-se um ditador. De ano para ano tudo ficou pior em termos de liberdade e liberdade de expressão", e "tudo mudou de forma dramática no último ano".
Alexei deixou de participar em protestos contra o governo. Há dez anos podia dizer o que quisesse na rua, discordar de quem quisesse. Agora há pessoas a ser detidas por mostrarem um papel em branco durante um protesto, lembra. "É de loucos, não há qualquer lógica". Agora, "se for apanhado a protestar na rua podem mandar-me para a guerra, não mudaria nada por agir assim, e é muito arriscado, infelizmente. O tempo para mudar alguma coisa tinha sido há cinco ou dez anos, mas isso não aconteceu."
Acredita, por isso, que os russos já não serão capazes de se revoltar contra Putin e a guerra internamente. "Há leis, mas não funcionam. Se te quiserem pôr na prisão põem-te na prisão. Basta uma publicação nas redes sociais. Por qualquer coisa podemos ir parar à prisão e enviados para guerra."
Também há dez anos havia alguma imprensa independente, mas agora apenas a informação veiculada pelo governo é transmitida pelos meios de comunicação russos.
"Eu e os meus amigos não vemos televisão. Temos acesso à informação através do Twitter, do Telegram, do Youtube, que é muito diferente da do governo. Estou muito surpreendido que o Youtube ainda não tenha sido banido na Rússia. A equipa do Navalny tem um canal onde tenta explicar o que está realmente a acontecer."
Navalny, o líder da oposição mais proeminente da Rússia que está a cumprir uma sentença de nove anos numa prisão de segurança máxima, "era uma esperança para muitas pessoas porque começou como um blogger, uma pessoa normal que estava a tentar expor o que o governo de Putin estava a fazer."
Ao contrário do filho, a mãe de Alexei não é apoiante de Navalny. Por gostar dela e querer manter uma boa relação, o melhor é evitar falar sobre a guerra. "É muito complicado falar com ela sobre isto, não só sobre a guerra mas também sobre a situação política na Rússia. Tentei várias vezes mas percebi que não funciona, por isso decidi parar de insistir para poder manter uma relação com ela".
A decisão de sair do país não foi apoiada pela mãe. "Quando tento explicar-lhe porque fiz isso ela diz que aqui sou um estranho e que ninguém me vai ajudar." Não é verdade, tenta explicar-lhe. "As pessoas são só pessoas independentemente de onde vivamos."
Tal como "80% dos russos a minha mãe nunca esteve num país estrangeiro" lembra. "Não sabem que as pessoas são as mesmas em todo o lado. Há pessoas más e muitas pessoas boas em todos os países".
Entre os amigos da sua idade, nenhum foi recrutado, mas "todos são contra a guerra. Todos estão chocados e assustados e não querem matar pessoas sem razão nenhuma."
Alexei lamenta que os russos não se tenham sequer revoltado com o facto de Putin ter mudado a lei para se manter na presidência. "Não percebem que um sistema político assim é o caminho errado e não resulta. Que o poder muda as pessoas. Não percebem problemas mais complexos. Ou não querem perceber... não sei, é complicado."
"Não sei como é que as pessoas conseguem justificar o que estão a fazer. A guerra acontece de tempos a tempos, não só na Rússia, mas para as pessoas normais não há explicação, a Rússia não se está a defender, não há qualquer motivação para matar pessoas na Ucrânia. Muitas pessoas das gerações mais velhas acreditam mesmo que estamos a combater nazis por causa da propaganda, mas não sei... acho que não percebem o que se está verdadeiramente a passar. A televisão não mostra o que as pessoas estão a sofrer, não mostra as cidades em ruínas. Só dizem que tudo está a correr bem e que estamos a tentar defender os ucranianos."
Para criar uma startup em Portugal, Alexei investiu todas as poupanças e vendeu o carro. Tencionava ser o próprio a fazê-lo, mas por causa da saída precipitada teve de pedir ajuda à mãe. O filho deixou tudo preparado e bastava-lhe assinar alguns papéis para vender um carro do qual não era proprietária, mas não foi fácil. Até estas pequenas coisas, aponta, são reveladoras do enorme fosso geracional na Rússia.
Enquanto não criar a sua própria empresa, tem de manter o emprego e continuar a trabalhar remotamente para uma empresa russa, apesar de pagar impostos que vão parar ao bolso de Putin, o que lhe pesa na consciência. Recebe o salário através de uma conta criada num terceiro país, mas tudo pode mudar de um dia para o outro.
Alexei tem "esperança" de que alguma coisa aconteça e conduza ao fim da guerra, mas realisticamente não imagina o que possa ser. Teria de ser "um milagre".
Não se considera um desertor, nem um refugiado. "Portugal era o meu sonho há muito tempo", conta. No dia da entrevista, num final de tarde em outubro, preferiu sentar-se num lugar onde pudesse aproveitar os últimos raios de sol do dia mesmo sendo um local mais exposto a olhares curiosos, apesar de querer manter a sua identidade protegida.
Garante que nunca foi alvo de descriminação e que todos foram sempre "amistosos na rua, o que é inusual", tentando ajudar mesmo não falando inglês. "Acho que todos percebem que nem todas as pessoas são apoiantes de Putin, especialmente se saíram da Rússia."
Segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), entre 1 e 27 de outubro foram emitidas 169 autorizações de residência em Portugal a cidadãos russos.
"Se Putin ficar no poder não vou voltar", garante. Alexei vai passar um inverno sem neve e nunca terá de matar ninguém. Espera que a mãe veja como está feliz e que isso seja suficiente.