A morte violenta de Jéssica chocou o país, colocando no centro do debate a proteção a crianças em risco. Dulce Rocha, magistrada jubilada com uma vida dedicada aos direitos dos menores, sublinha a falta de envolvimento da sociedade a reportar situações de risco e admite falta de estabilidade e de recursos das comissões de proteção para lidar com o fenómeno. Considera ainda que a definição de um plano, replicando a metodologia seguida na violência doméstica, daria frutos na defesa das crianças.
Viu alguma emissão televisiva sobre a morte de Jéssica, em Setúbal? Acompanha o debate gerado pela cobertura e as queixas apresentadas à Entidade Reguladora para a Comunicação Social?
Acompanhei nos primeiros tempos. Nos últimos dias já não vi, porque, além de ser doloroso, agora este assunto está entregue às autoridades competentes, que estão a fazer um bom trabalho. Veja-se o caso da Polícia Judiciária, que em pouco tempo descobriu os autores do crime. Acompanhei o velório e devo dizer que me chocou profundamente, embora não tanto como a morte da criança. Fiquei indignada com o aparato e aquela revolta, que não foi expressa na altura própria.
Chocou-a a reação dos familiares?
Chocou-me o aparato circense de baterem no carro funerário, de impedirem a mãe de acompanhar a filha à sua última morada, dos nomes que chamavam a alguém que é e será uma infeliz... Chocou-me o aparato exagerado dessa situação, em contraste com o que aconteceu quando a mãe esteve a viver num carro com a filha. Aí ninguém reportou nada. Essa informação não chegou ao processo. Recordo que havia um processo pendente de proteção judicial e nessa altura quem passava não terá achado estranha a situação. A sinalização é isso - informar, por vezes com pequenos sinais, que há algo que não está a correr bem.
Houve falhas da comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ) neste processo? A própria ministra da Presidência chegou a falar genericamente em falhas do sistema.
Não me parece. O sistema é algo complexo. Há situações complemente imprevisíveis, que não conseguimos dominar. Este é um caso muito atípico, em que não era possível prever uma morte destas, com esta violência extrema, que foi praticada por alguém exterior à família.
Esteve do outro lado do sistema, nos tribunais. Concorda com as críticas de que os magistrados muitas vezes privilegiam demasiado a família biológica?
Demora-se muito tempo, por exemplo, quando há já um diagnóstico de abandono e maus-tratos graves e continua-se a querer recuperar pais que são irrecuperáveis. Tenho batalhado contra isso, procurando chamar a atenção e dizer que o tempo da criança não é o tempo dos tribunais e que lhes compete adaptarem-se à necessidade. Neste caso, parecia que estava a correr bem. Pediu-se àquela avó que vigiasse e acompanhasse, reportando se visse alguma coisa de grave. Parecia que esta mulher tinha finalmente encontrado um companheiro bom, que gostava da menina. Há elementos que obviamente não conheço. Estou a falar de acordo com os elementos disponíveis na Comunicação Social, mas o que quero dizer é que não tenciono criticar sem mais elementos.
Saindo deste caso em concreto e fazendo uma abordagem mais genérica, o critério biológico continua a sobrepor-se ao interesse da criança?
Sem dúvida. É algo que não só me preocupa como muitas vezes me incomoda. Estamos demasiado tempo à espera de uma recuperação que, pelo conhecimento da vida, sabemos que não vai suceder. É esperar por uma vida feliz para a criança que vai ser muito mais tardia. A nossa lei diz que a criança deve ser entregue preferencialmente à família. Claro que tudo isto tem tempos. Agora, quando não há uma família alargada que queira a criança, ela está num centro de acolhimento e a mãe não se decide a encontrar trabalho e continua com o alcoolismo ou a toxicodependência, nesses casos, em que vemos o tempo a passar, sou da opinião que somos demasiado complacentes. Às vezes, parece que estamos à espera de uma mãe que não está à espera da criança.
Foi presidente da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco e há pouco admitiu que o sistema é complexo. Admite-se que ele assente, na sua generalidade, em estruturas não profissionalizadas e com grande rotatividade dos elementos?
Houve realmente já tentativas no sentido de minorar essa desvantagem. Às vezes quando um técnico está mais preparado, mais experiente, é quando é chamado pela instituição de origem e isso devia ser motivo de revisão. Aliás, de 20 em 20 anos devia haver uma revisão das leis. A questão da rotatividade preocupa, mas a mais preocupante é a da formação. Parece-me muito baseada no processual e nós temos de caminhar para uma formação mais baseada em casos, porque os casos é que nos impressionam e aprendemos mais. Quando presidi à comissão nacional procurei incentivar nesse sentido.
Que mudanças defende, que haja maior estabilidade nas comissões?
Maior estabilidade, sim. Que a comissão restrita fosse principalmente ancorada nos profissionais mais experientes e que houvesse de facto reforço de meios, muitas vezes anunciado, mas que depois raramente vemos concretizado. Mesmo que nós queiramos que haja muitos profissionais, se não houver essa formação, nada está resolvido.
A formação e o facto de algumas comissões funcionarem melhor explica o facto de algumas concentrarem um grande volume da atividade total?
Isso também tem a ver com a população. Quando eu estava presidente da comissão nacional, havia a necessidade de criar duas comissões em Sintra, porque era um concelho que tinha um número de casos elevados. Haverá sempre situações que não conseguimos controlar, como o abuso sexual. Dentro da família é algo muito oculto e que continua a ser um sofrimento para as crianças. Ainda há muito preconceito de que a família é o melhor para a criança. Nem sempre.
O relatório da atividade das CPCJ em 2021 reporta um acréscimo de 8,6% nas situações de perigo. A pandemia e a crise económica poderão ajudar a explicar essa subida?
Nós tínhamos essa sensação e começámos a ver que havia mais queixas particulares de pessoas que estavam no supermercado, ou na rua, e viam outras a bater em crianças de dois ou três anos. Fala-se muito na questão da saúde mental, que se agravou. As pessoas estão mais agressivas, outras deprimidas e algumas mais impacientes. Decidimos fazer uma campanha sobre os castigos corporais porque a criança fica com a ideia de que os conflitos se resolvem pela violência e isso agrava a postura dela. Agrava ainda a autoestima, o sofrimento físico que tem, mas no futuro ela pode ser um bully e isso até pode chegar à violência doméstica.
A perspetiva de agravamento da crise económica pode justificar um plano de emergência?
Esse é um dos nossos temas: deveria haver em Portugal um plano nacional de prevenção e combate à violência sobre as crianças, com múltiplos aspetos. Quer a violência familiar, quer a violência numa escola, porque há cada vez mais crianças vítimas de bullying. O último relatório da UNICEF estima que haja 150 milhões de vítimas de violência por parte dos pares.
A Estratégia Nacional para os Direitos da Criança 2021-2024, que prevê por exemplo o combate à pobreza infantil, não é um passo nesse sentido?
Foi muito importante e uma medida interessante. Mas eu estava à espera de mais, que já estivesse mais exuberante. Tenho a certeza que um plano funcionaria, porque já temos exemplos. O plano nacional contra a violência doméstica tem funcionado bem, tem feito com que as mortes tenham baixado. Conseguiu-se reduzir o número de mortes para metade. Temos a comissão de análise retrospetiva para estudar o homicídio conjugal e isso devia ser reproduzido relativamente à criança. Ainda por cima num país com tão poucas crianças e onde estamos sempre a dizer que precisamos de mais crianças, não as cuidamos.
Temos estado a discutir o papel das instituições. E as redes informais, os vizinhos, amigos, as pessoas que vivem nas imediações, têm noção que podem denunciar?
Provavelmente ainda não têm essa noção. Em 2011 houve uma diretiva europeia, com uma perspetiva interessante, que diz que o estado sozinho não consegue combater estes fenómenos tão estruturais. E que era importante que as ONG participassem. As pessoas não sentem isso como uma obrigação. E era bom que este caso deixasse de uma vez essa ideia de que as pessoas podem colaborar e podem ajudar a proteger se denunciarem casos graves.
Mas diria que este alheamento da comunidade é de agora?
Melhorámos um bocadinho, não é de agora. É um alheamento que já vem de trás. Havia a ideia do entre marido e mulher não metas a colher, ditos que não têm qualquer razão de ser. Quando sabemos de violação de direitos humanos devemos intervir. Temos esse dever de reportar para proteger. Em Portugal temos essa ideia de não denunciar, que ainda se associa muito à PIDE. Há um preconceito de nos metermos na vida dos outros. O próprio processo penal está imbuído dessa visão de que quem denuncia é bufo. Temos de largar isso. Já temos mais democracia do que fascismo.
Em todas as idades, há sempre mais rapazes do que raparigas detetados em situação de perigo. Há alguma razão para esta diferença?
Há mais rapazes porque estes se expõem mais. Faltam mais às aulas. Abandonam a escola. As meninas são muito vítimas de abuso sexual, um fenómeno muito mais oculto, que está escondido. Há um muro de silêncio, devido ao medo. As pessoas costumavam dizer que era devido à vergonha mas essa só vem em terceiro lugar num grande relatório que foi feito agora, em que participaram 42 mil mulheres, um inquérito de vitimação na União Europeia. Chegou-se à conclusão que só 10% se queixaram, 90% é o icebergue submerso, que disseram que não se queixaram por medo. E isso é muito grave. É porque não confiam no sistema, essa é a segunda resposta. E só depois vem a vergonha. Portanto, é preciso uma grande discussão sobre estas matérias. Não podemos ficar com a noção de que elas são menos batidas. Não. É porque elas reportam menos.
A delinquência juvenil também tem estado a aumentar, segundo os dados das forças de segurança. E recentemente a procuradora-geral Lucília Gago chamava a atenção para o facto de estarmos a ser socialmente complacentes para com estes comportamentos. É assim tão frágil a linha que separa os jovens negligenciados dos comportamentos de risco?
Creio que sim, que é muito frágil. Porque geralmente os miúdos que estiveram sujeitos a situações de risco, muitos deles acabam por fugir de casa, fazer pequenos furtos. Não nasceram marginais, foi o sistema que não os protegeu devidamente. Nesta questão da delinquência juvenil não tenho dados que me digam que está a aumentar. Mas temos de olhar para estas matérias com olhos de investimento. Da minha experiência, foram esses miúdos mal-amados, a viverem em condições deploráveis, a quem não era dada atenção, que geralmente seguiram esse caminho da marginalidade. Também há respostas alternativas a eles irem para a cadeia. A educação é sempre o segredo. Temos uma escola de segunda oportunidade em Lisboa, para a qual o Ministério da Educação nos deu luz verde e que também tem a participação da câmara. Com o PRR vamos conseguir estar em três escolas de segunda oportunidade, com seis turmas. E essa é que é a via. Dar-lhes gosto pelo conhecimento. Mostrar-lhes que é possível um futuro dentro do direito.