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"Queres mais pão?", pergunta Jorge Nunes, um dos voluntários do CASA - Centro de Apoio aos Sem Abrigo, numa das paragens da rota do Saldanha.
Todas as noites, a equipa do CASA distribui comida em três pontos da cidade de Lisboa. Em duas carrinhas, seguem três caixas de refeições quentes, uma caixa de pão, outra de fruta, outra ainda de bolos e também Bollycaos, descreve Fátima Oliveira, a coordenadora deste percurso. "Há muitas pessoas nesta rota", refere Fátima, que nota um aumento do número de pedidos de apoio. Só na rota do Saldanha, são distribuídas cerca de 140 refeições diárias, mas se contabilizarmos os outros pontos abrangidos pelo Casa, na cidade de Lisboa, "no total, devemos estar a falar em 350 refeições", adianta o presidente da associação.
Paulo Bicudo confirma que há cada vez mais pedidos de ajuda. São pessoas sem-abrigo, mas também aqueles que "até têm casa, mas o frigorífico não tem nada, a despensa não tem nada. São estrangeiros de variadíssimas nacionalidades que não se percebe como apareceram. Não querem muita conversa, querem receber a comida e seguir". Em contraste com este perfil, há uma imigrante paquistanesa que se destaca no jardim Constantino, na freguesia de Arroios. É a única que vem com crianças: os três filhos de 9, 7 anos e o mais novo com 14 meses, irrequieto no carrinho. Letujah não tem pressa. Num Inglês fluente, conta que chegou a Portugal em Abril, com o marido e os três filhos mais pequenos; os outros três ficaram no Paquistão. Dava aulas de Inglês, mas veio em busca de segurança para os meninos. Procura trabalho há cerca de seis meses, enquanto a família é apoiada pela segurança social, mas só a renda e as contas da casa consomem quase a totalidade do subsídio. "Preciso desta ajuda", explica, porque "a renda é muito cara". Além de comida, Letujah agradece às pessoas do CASA que a têm ajudado na roupa de Inverno para as crianças. Recorda como uma assistente social foi comprar cola para consertar o sapato de um dos filhos. "É uma grande ajuda" e a comida para o jantar estica até ao pequeno-almoço do dia seguinte.
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No jardim Constantino, "tem subido muito" o número de pessoas a precisarem de apoio, realça Paulo Bicudo. E as pessoas na fila confirmam o perfil traçado.
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O colombiano Ivan, 20 anos, vem com amigos do seu país e também dois jovens brasileiros. Chegou recentemente, atrás do sonho de jogar futebol e dá "graças a Deus por esta ajuda muito grande". Admite que se não fossem as refeições gratuitas, teria de pedir aos pais que enviassem dinheiro para comer.
Há mais tempo em Portugal, uma cubana, que se apresenta como Mimi, descreve a ajuda como "genial. Se não fosse por eles, passava fome".
Entre caras já bem conhecidas dos voluntários, estão ainda duas mulheres, mãe e filha. Joana, 51 anos, revela que moram nos Anjos, bem perto do jardim Constantino. Começaram a pedir comida há cerca de quatro anos, noutro ponto de distribuição. Agora, vêm ao jardim, em dias alternados. "Ela não tem trabalho e a minha reforma não é muito grande", justifica a mãe Maria Deolinda, 76 anos. As duas, mãe e filha, também notam que "há mais gente. Isto está complicado para toda a gente".
Noutra paragem, encontramos João. De longas barbas brancas, já deixou de "fazer (a conta) aos anos" de vida na rua. Dorme num parque de estacionamento, num "colchão de esponja e com uma manta". Nos primeiros anos como sem abrigo, "era difícil, mas depois habituei-me. Não há azar", conclui, enquanto recolhe a refeição que lhe servirá de jantar.
Na Praça da Alegria, última paragem desta rota, o voluntário Jorge Nunes anima o ambiente, "sassaricando", ao encontrar quem pede ajuda há bastante tempo, como a transexual Índia Nunes. Esteve sete anos na rua, viveu da prostituição. Agora, está numa casa do projecto Housing First, que apoia os sem-abrigo. Bem-disposta, Índia pede um "pão molezinho", porque aos 40 anos, "já usa próteses e aplicativos no corpo", mas garante que a ajuda é suficiente, porque "para contentar o coração, amor e carinho chega sempre". Enquanto abraça e elogia Fátima Oliveira, "a minha (voluntária) preferida", Índia assegura que "depende deste pratinho de comida quentinho". Sem este apoio, "passávamos fome", confessa, embalada por uma canção antiga na voz de Jorge. O clima é "alegre", pois "para muitos deles, um sorriso vale mais do que muita ou pouca comida", salienta a voluntária Carla Cruz. Ou como remata Jorge, "vale mais um belo sorriso do que uma posta de bacalhau".