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Começava por uma questão que afetou a saúde: no mês passado, várias classes profissionais da saúde tinham greves marcadas como forma de protesto contra as remunerações, salários, condições de trabalho e falta de recursos. Foi a pandemia que veio agravar este descontentamento neste setor ou esta situação era, mais tarde ou mais cedo, inevitável?
Houve num passado recente uma explosão de protestos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e ela, de facto, constitui o acumular de um processo que já vem de muito tempo. Esse acumular foi agravado, naturalmente, pela intensidade com que a pandemia atingiu os serviços de saúde. As pessoas cansaram-se, tiveram grande pressão e isso não foi compensado por uma melhoria de serviços. A pandemia, de facto, destacou muito as nossas insuficiências. Foi como tirar o véu daquilo que se tinha acumulado e que não era patente à vista de todos. Esse destapar é um fenómeno curioso, penoso para as pessoas, e a nossa preocupação tem sido de não tornar a tapar, de aprender com isso.
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Porque nesses fenómenos, destapamos diante da crise, ficamos todos intensamente perturbados por aquilo que acontece, mas quando as coisas melhoram, não aprendemos. Uma das características do nosso sistema - e é uma das razões pelas quais necessita de um modelo de governação diferente - é que aprende pouco. E aprender pouco é a marca de um sistema envelhecido sob o ponto de vista da governação.
E aprendemos pouco com esta pandemia? Ou seja, além dos problemas que acaba de diagnosticar, que já existiam antes, mais os problemas que aconteceram durante a pandemia, continuamos a não aprender?
Resistimos a aprender, de uma forma geral, e isso tem uma razão. É que no mundo político habitual reconhecer erros e aprender não tem prémio. Por outro lado, governar é difícil e a pessoa para governar tem de ter convicções fortes, intensas e constantes. Essa convicção é inimiga da dúvida, e sem dúvida não aprendemos. Mas há aspetos culturais mais profundos.
Como é que se resolve esse dilema entre ter convicções fortes para poder fazer reformas e manter a dúvida para poder melhorar?
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É um processo de evolução cultural. O que acontece é que se olhar para os países do Norte, eles estão a avaliar o desempenho da pandemia. Dou-lhe três exemplos rápidos: o primeiro país foi a Suécia, onde não correu muito bem durante 2020. Eles tinham planeado ter uma comissão técnica e científica independente no fim de pandemia para fazer a avaliação, mas como não correu bem, anteciparam e o primeiro relatório foi apresentado ainda em 2020, o segundo mais recentemente. E nesse relatório dizem várias coisas sérias, entre as quais que a Suécia não foi capaz de antecipar, e preparar, a tempo uma resposta eficaz dos lares e estabelecimentos residenciais para idosos, de forma a evitar o que aconteceu. Foi a crítica mais forte desse relatório.Esse relatório foi feito por uma comissão independente promovida pelo próprio governo.
A Dinamarca, a seguir, fez uma comissão independente também, mas não foi o governo, foi o parlamento. Essa comissão independente foi feita dentro de uma filosofia de melhor governança, ou seja, de preparar melhor o parlamento para seguir o que o governo faz. E a sua avaliação tem um ponto muito curioso, porque incidiu muito nas relações entre a ciência e a política e mostrou várias disfunções. Estas são naturais numa relação que tem sido difícil e é uma ponte de aprendizagem.
Estará a faltar essa maturidade política de serem avaliados os políticos por comissões independentes?
Exatamente. O Reino Unido, o terceiro e mais recente exemplo, fez também uma comissão. Mas ao contrário das anteriores, independentes e extrapolíticas - eram cientistas digamos assim-, no Reino Unido optaram por fazer a Comissão Parlamentar da Saúde e a Comissão Parlamentar da Tecnologia e Inovação e as duas juntas fizeram a avaliação. Curiosamente, também fizeram grande ênfase nas disfunções entre o aconselhamento científico e as decisões políticas, e é muito interessante seguir isso.
Na sua opinião, Portugal estaria a precisar dessa avaliação?
Todos nós precisamos disso, porque é a condição indispensável para aprendermos. E tem de ser feito de forma que não tenha suspeições, não por alguém que quer magoar alguém, não por alguém que quer destruir, não que quer aproveitar politicamente para dizer mal. O importante é aprendermos com a experiência e aprendermos rapidamente. Também não pode ser arqueologia, não podemos aprender daqui a dez anos nem daqui a dois anos, e é por isso que esses países têm feito isso em cima do acontecimento. Nós temos sempre a impressão aqui, quando tentamos fazer isso, que é muito cedo, agora não é muito conveniente, é mais logo. Mas mais logo deixamos de aprender porque, depois, aquilo que destapámos passamos a tapar de novo.
Enquanto diretor-geral da Saúde, sentiu alguma vez ingerência do poder político em áreas científicas?
A minha experiência como diretor-geral da Saúde foi muito boa. Tive como ministra da Saúde a Doutora Maria de Belém Roseira, que não conhecia quando entrei, e quando saí, saí amigo dela. Tivemos uma relação muito boa. E tivemos porque acho que sempre existiu este respeito pelas funções de cada um. Eu era o topo de uma hierarquia técnico-científica do Ministério da Saúde, era esse o meu papel - não tinha um papel político, às vezes confundem-se as coisas, era um papel técnico-científico -, e a ministra é que tem responsabilidade política. Portanto, o que é do ministro, é do ministro, tomam as decisões que têm de tomar, o que é da Direção-Geral da Saúde é da Direção-Geral da Saúde.
Nunca sentiu interferência do poder político nas decisões científicas?
Não. Por vezes, houve decisões políticas que não passaram pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e que deviam ter passado, mas nestas coisas não podemos ser maximalistas. Há algumas coisas que não correm tão bem como deviam correr, mas não podemos criar o grito de revolta à primeira disfunção dessa natureza. Desde que a relação seja sólida e que haja confiança de que cada um faz o seu papel e não interferimos no papel do outro.
Há hoje uma nova lei de bases da saúde, o Governo aprovou há pouco tempo o novo estatuto para o SNS. Esse novo estatuto vem resolver os problemas do SNS e fixar os recursos humanos, travando outro drama que é a fuga de talentos?
Para responder a essa pergunta, deixe-me fazer uma pequena divagação. Lembro-me de uma conversa que tivemos há cerca de dez anos, no DN, cujo título quando foi publicada era "É necessário parar a sangria dos profissionais do Serviço Nacional de Saúde". Isso foi há quase dez anos e a sangria não parou, aumentou. O que acontece de facto se um profissional de saúde manifesta no seu serviço desconforto com as condições de trabalho é que ninguém o ouve. Seis meses depois, diz que quer passar a tempo parcial, passa a part-time, e seis meses depois vai-se embora. O que é que aconteceu, entretanto? Há um mecanismo que capta essa insatisfação, que procure explorar as razões para que isso aconteça, que tome medidas para que ele não passe a part-time? Não existe. Outro exemplo: uma entidade privada resolve construir um hospital, e um hospital é uma coisa muito visível, toda a gente sabe onde vai ser e com antecedência. Demora dois ou três anos a construir, não é feito de uma forma encapotada e invisível. Sabemos quando esse hospital aqui na cidade estiver pronto, daqui a três anos, vai aspirar muitos recursos especializados do SNS, é previsível. No entanto, não é. Toda a gente sabe que o hospital vai surgir, toda a gente sabe que vai aspirar os recursos à volta, menos o Ministério de Saúde e o SNS que não sabem, não têm os mecanismos necessários.
Portanto, não há ninguém no ministério a gerir os recursos humanos da saúde?
É mais que os recursos humanos, é a inteligência de testar o que acontece à volta em tempo real. No mundo de hoje, nenhuma empresa pode ser indiferente, especialmente uma que vive do capital humano intensivo como é a saúde, nenhuma empresa pode distrair-se em relação ao que acontece às pessoas que lá trabalham.
É uma questão de mentalidade, de falta de organização ou de um sistema obsoleto que foi concebido há 35 anos e que precisa atualizado?
Temos o modelo de governação igual ao que tínhamos há 40 anos e, portanto, que não tem duas características fundamentais hoje: primeiro, temos ainda uma governação com uma conceção de inteligência hierárquica - muita inteligência em cima, alguma no meio e nada em baixo. Não corresponde ao mundo de hoje de todo. Hoje temos uma inteligência distribuída - há múltiplas fontes de iniciativa que interagem umas com as outras, que têm de ser enquadradas e direcionadas através de um conjunto de instrumentos que atuam com alguma segurança de que vão aparecer resultados. Isto é objetivo. Para isso são necessários instrumentos, e os instrumentos são análise e direção estratégica. Não é uma coisa ilusória, ou existe e se vê, ou não existe e não se vê. E não existe.
Esses instrumentos estão no novo estatuto nacional de saúde?
Não existem. Em 2009, há 12 anos, presidi a um grupo consultivo sobre as reformas dos cuidados de saúde primários, a pedido da ministra Ana Jorge. Nesse momento, a reforma tinha arrancado, mas começavam a sentir-se as primeiras dificuldades de avançar de uma forma mais extensa. E o relatório que fizemos tinha várias recomendações, lembro-me de duas que são essenciais. A primeira dizia o seguinte: é preciso transferir para o resto do sistema a noção de autonomia com responsabilidade - porque a reforma dos cuidados de saúde primários foi baseada nesse princípio -, nós autonomizamos, mas encontramos um mecanismo de contratualização para responsabilizar. Ora, se isso acontece em parte do sistema e não acontece no resto, o resto vai acabar por comprimir e desfazer o que aqui foi feito de inovação. Era o que estava a acontecer e é o que, em parte, está a acontecer. Isso foi há 12 anos. Há dois anos, a Comissão Coordenadora dos Cuidados de Saúde Primários do Ministério de Saúde, quando saiu, fez um relatório que diz exatamente a mesma coisa que dissemos em 2009, ou seja, não há direção nem análise estratégica. E dizia uma coisa invulgar no relatório oficial. Sabe como acabam as conclusões? Diz assim: loucura é fazer da mesma forma e esperar resultados diferentes. Desculpe esta divagação, mas indo à sua pergunta agora, é evidente que era necessário mudar a Lei de Bases. A Lei de Bases de 1990 tinha prescrições programáticas que não deviam fazer parte dela e isso foi, felizmente, expurgado na revisão da Lei de Bases. O arranque da reforma da alteração da lei de bases, aconteceu em 2017 com uma proposta de António Arnaut e João Semedo. 2017. Estamos em fim de 2021, portanto, são quatro anos em que não aconteceu nada. Estamos aparentemente à espera de que a nova Lei de Bases e o novo estatuto façam um milagre à transformação. Ora, a transformação não acontece assim. Não é de esperar que um diploma, que tem 100 artigos, seja um mecanismo transformador de excelência. Precisamos de um diploma, mas precisamos de um novo modelo de governação, porque qualquer diploma legal é prescritivo, e sendo prescritivo não altera o modelo de governação. Ou seja, diz coisas que é preciso fazer, mas não somos capazes de as fazer.
E porque é que não somos capazes de as fazer?
Exatamente porque não conseguimos o modelo de governação que podia transformar. Um exemplo que acho muito curioso deste modelo antiquado de governação centralizada e hierárquica é a sua incapacidade de aprender. Em 2014, a Fundação Gulbenkian mobilizou recursos extensos e de grande qualidade e fez um trabalho importantíssimo no sentido de indicar os caminhos de uma reforma da saúde. 2014. Esse trabalho apagou-se, o sistema não tem forma de o captar, de o metabolizar, de o transformar em ação. Deslizou, desapareceu, apagou, não existe, isto acontece constantemente. Portanto, temos uma máquina que não aprende, é centralizada, é hierárquica, e os instrumentos que tem são orientar, normalizar e nomear, não tem nenhuns elementos de análise e de planeamento estratégico necessários para gerir uma sociedade complexa com estas dificuldades e, portanto, não consegue transformar.
Portanto, não houve melhoria nestes 25 anos desde que se iniciou a reforma do sistema de saúde, precisamente por essa dificuldade de aprendizagem?
Não só. Agora falta a outra parte que é importante: os desafios evoluíram, não são os mesmos, são muito mais problemáticos hoje. Quando o SNS apareceu, há 40 e tal anos, tínhamos uma sociedade ainda jovem, o principal problema que tínhamos era uma mortalidade infantil grande, uma insuficiência nos cuidados das crianças e das mães, era a necessidade de planeamento familiar, a necessidade de cuidados básicos de saúde para todo o país.
Qual é o grande desafio hoje? O grande desafio tem a ver com o envelhecimento, pois dá origem àquilo que hoje se chama morbilidade múltipla, ou seja, são pessoas que não têm uma situação preocupante, têm duas, três, quatro. São situações de evolução prolongada que obrigam à utilização extensa dos cuidados de saúde, com grande frequência. Esse desafio exige a integração de cuidados, não fragmentação. E integração de cuidados significa que o que interessa não são as organizações, não são os hospitais, os cuidados de saúde primários, os continuados, a saúde pública, o que interessa é o percurso das pessoas.
O que interessa é que eu, para ter resposta às várias condições que tenho, tenho que passar por vários sítios e de o fazer de forma continuada e guiada para ter bons resultados. E, portanto, a essa gestão do meu percurso, através dos serviços que preciso, chamamos integração em continuidade de cuidados. Sem isso não há resposta às questões do envelhecimento e não temos isso. Não temos porque precisamos de instrumentos que percorrem esse trajeto e o principal é o plano individual de cuidados. Este é uma coisa que todos nós que temos várias patologias temos de ter, porque é um instrumento que nos permite gerir o percurso. Aliás, o presidente da Sociedade de Medicina Interna publicou, recentemente, um livro muito interessante sobre isso e chama a atenção para um aspeto nas urgências. Há dois tipos de urgências: aquelas que são uma surpresa - caí de uma escada e parti a perna, ou conduzi e bati e tenho uma fratura no crânio, ou febre aguda e tem uma convulsão. Essas são questões que precisam de uma resposta de emergência. Mas a maior parte das situações são agudização dos problemas crónicos, de pessoas que têm morbilidade múltipla. Esses não podem ir à urgência da mesma maneira, porque são previsíveis.
Era preciso repensar todo esse sistema de urgências e a forma como está planeado.
Exatamente. E, portanto, tenho o plano individual de cuidados que prevê que se agudizar, em termos de ter um problema pulmonar agudo, sei onde vou, sei o que é que se espera acontecer. Não vou para a fila da urgência, não faz sentido, tenho de ter outra porta de entrada. E essa inteligência de responder de uma forma às surpresas - que não têm uma história e não são influenciadas por outra informação que eu não tenho -, comparado com pessoas que têm uma história conhecida, que está registada nos cuidados de saúde primários, está nos hospitais e, portanto, têm de ter um seguimento continuado, inteligente e previsível. Por enquanto não somos capazes de fazer isso.
Publicou no DN um artigo sobre a mudança na saúde, aspetos críticos e como deveria ser reformulado o sistema de saúde, vários colegas seus publicaram também. Este seria um dos pilares cruciais de mudança urgente na área da saúde?
Os artigos que refere procuram exatamente rastrear os grandes desafios. O primeiro é, de facto, o desafio do envelhecimento, da morbilidade múltipla, da dependência e da fragilidade. A morbilidade múltipla tem três aspetos muito importantes: o primeiro, é que é muito frequente e no Norte da Europa estima-se que uma em cada quatro pessoas tem morbilidade múltipla - nós temos um pouco mais porque somos um pouco mais pobres -; o segundo aspeto é que a morbilidade múltipla aparece 10 a 15 anos antes nas pessoas que vivem mal; e o terceiro é que também é um componente de saúde mental. Portanto, estes desafios são fundamentais em termos de saúde. Envelhecemos, mas envelhecemos mal, a nossa esperança de vida com saúde, aos 65 anos, é muito pior do que na maior parte dos países da Europa. Envelhecer é bom, estar cá mais tempo, mas temos de fazê-lo com qualidade. Segundo aspeto, a integração de cuidados - é a resposta integrada a problemas que são múltiplos, centrada no indivíduo, nas organizações. O terceiro tem a ver com o problema da informação e conhecimento. Se não gerirmos a informação e o conhecimento, com todos os instrumentos à nossa disposição, não podemos ter uma saúde inteligente. Finalmente, os recursos tecnológicos biomédicos são cada vez mais entusiasmantes, cada vez mais prevalentes e temos de ser capazes de os gerir no sentido de diagnosticar e tratar melhor. Finalmente, temos a questão de como articulamos o setor público, o privado e o social.
Essa falta de inteligência do sistema, a resistência à mudança, a incapacidade para ouvir os especialistas e transformar os relatórios em ações, o prolongar no tempo de um sistema que está caduco e envelhecido, prejudica efetivamente a saúde dos portugueses?
Claro que limita a capacidade de dar respostas inteligentes e é bom configurar, em termos práticos, o que isto significa. Temos um novo ministro, entra no Ministério cheio de boas intenções com a sua equipa, com grande confiança na possibilidade de fazer melhor e, no dia seguinte a entrar, cai-lhe o mundo em cima. Há um mundo enorme de problemas acumulados - há cinco, 10, 15 anos - que lhe caem em cima. E o ministro não só sente o peso de todos estes problemas acumulados, como não tem instrumentos para os gerir. Os instrumentos que tem, que são nomear pessoas, distribuir alguns recursos e criar normas e leis, não permitem gerir a situação atual.
E essa fatura é paga, em primeira instância, pelos cidadãos doentes, por nós todos?
Claro que os mais frágeis pagam sempre mais, mas é por nós todos. O titular do cargo político, com toda a sua boa vontade - e tenho grande respeito pelas pessoas que se atrevem a ser ministros da saúde, porque é, de facto, um desafio tremendo - no fim de algum tempo não tem espaço, nem físico, nem mental, para parar a avalanche que lhe caiu em cima e mudar o sistema. Tem de ser pensado antes. Se os partidos não pensarem antes num modelo de governação alternativo, se não pensarem num choque terapêutico, agora é a altura para o fazer. É importante ressaltar que este é o momento para fazer um choque terapêutico e mudar o modelo de governação, e ter consciência de que ele nos prejudica a todos, incluindo os titulares dos cargos políticos que são as primeiras vítimas da sua dificuldade de alterar aquilo que sentem que têm de alterar.
Há quase dois anos que vivemos numa situação de pandemia. Como é que olha para a gestão que foi feita, do ponto de vista político e técnico, da pandemia em Portugal?
É uma pergunta vasta. A questão da pandemia, em termos do que o vírus nos faz e como é que nos protegemos dele, é uma questão técnica. O que é uma questão política é as decisões que a sociedade quer assumir em relação a isso. Portanto, quanto mais formos capazes de articular as duas dimensões, melhor.
E isso foi feito, na sua opinião? Houve boa articulação entre as decisões científicas e as decisões políticas nestes quase dois anos?
Essa articulação é difícil. Se olhar para a forma como os vários países respondem a essa articulação, temos quatro categorias: os países que não têm mecanismos formais para fazerem esta articulação entre ciência e política - não é o nosso caso, nós temos -, países como nós que têm instituições formais para fazer isso, mas não constituem, em si, um sistema. É o grau dois. O grau três são os países como o Reino Unido, que têm, de facto, um sistema que funciona com os defeitos e as virtudes que são analisáveis. E temos o grau quatro com os países nórdicos, a Dinamarca fundamentalmente, que fazem disto uma questão de qualidade da governança. É um estádio mais avançado.
Se nos classificarmos dessa forma, no grau dois, é evidente que temos de aprender com o grau três e o grau quatro. Temos dispositivos de relação entre o poder político e a ciência, mas esses estão eivados de várias deficiências e, portanto, não conseguem desempenhar o seu papel em toda a sua extensão.
Estamos a viver a quinta vaga da pandemia e os números dos novos casos continuam elevados e a incidência a subir. As medidas que entraram em vigor a 1 de dezembro ainda não surtiram efeito de abrandamento dos contágios. Até ao Natal podemos precisar de medidas mais apertadas?
É preciso aqui considerar vários fatores. O primeiro - e esta é uma questão europeia, norte-americana, dos países ocidentais - é que as sociedades estão muito relutantes a aceitar medidas mais gravosas. Isso é óbvio. E, naturalmente, a política lê isso, lê que a sociedade está pouco disponível para assumir medidas de contenção mais gravosas, mais limitativas daquilo que são os nossos comportamentos habituais.
É preciso mais coragem política para impor outras medidas?
Essa é a situação. A ideia é que com estes níveis de vacinação também não seria preciso adotar medidas mais gravosas, que a sociedade não quer. Portanto, junta-se a vontade de não as querer com um argumento fortíssimo de que com níveis de vacinação altos não seriam necessárias. Mas ao lado disso, existe um fenómeno que é uma grande transmissão. Temos uma carga viral muito grande, não só no nosso país, como noutros países europeus, e essa carga viral tem alguns inconvenientes sérios porque atinge os pontos fracos. E quais os inconvenientes? Em primeiro lugar, os cuidados de saúde primários inundam-se, são muitos casos que alguém tem de seguir. E os cuidados de saúde primário já têm um grande peso, um grande lastro de problemas acumulados que não conseguem gerir.
Portanto, não é indiferente para a saúde das pessoas e para o SNS uma incidência baixa, uma incidência média ou uma incidência muito elevada. Mas tendemos a não olhar para esse aspeto mais silencioso dos cuidados de saúde primários onde, de facto, a grande incidência tem problemas sérios.
Então qual é a solução?
Deixe-me referir o segundo aspeto, que tem a ver com a rede de saúde pública que, com uma grande incidência, não consegue dar respostas. E depois, as escolas, onde um grande número de surtos tem acontecido, sofrem com esta disfunção, uma vez que uns estão em casa, outros estão lá e torna-se uma situação difícil de gerir. Portanto, a questão é se estamos disponíveis ou não para nos adequar, no sentido de diminuir a transmissão.
E estamos disponíveis? Enquanto sociedade disse que as pessoas não estão recetivas a isso. É preciso coragem política ou vamos monitorizando ao dia e depois logo se vê?
É preciso um discurso que inclua os benefícios da vacinação, mas também os inconvenientes de uma alta incidência. E devido à predisposição, face ao grande nível de vacinação, de não atuar de uma forma mais intensiva, mais agressiva, esse discurso não tem sido paralelamente feito. Ou seja, temos um discurso grande e justo sobre as vantagens e a garantia vacinal, mas os discursos sobre os inconvenientes do mal da incidência, sobre as escolas, sobre os cuidados de saúde primários, sobre as pessoas que estão doentes, sobre o facto de termos covid-19, também tem de ser acautelado. Esses aspetos têm sido minimizados entre nós e em todos os países norte-americanos e europeus. Devíamos ter um discurso mais equilibrado e que dê mais importância aos inconvenientes de uma alta incidência. E esse discurso está a emergir agora, não só em Portugal, mas no Reino Unido, na Alemanha e noutros países. Mas não tem sido um aspeto predominante de discurso, quer técnico, quer político, nos últimos meses.
O que falhou na questão da vacinação das crianças? É um tema que gera desconfiança, desconforto, houve má comunicação por parte da DGS? Devia ter assumido logo que divulgaria os pareceres finais quando eles existissem?
A forma ótima de aconselhamento científico - e a Comissão Técnica de Vacinação é um órgão que faz recomendações científicas, no fundo -, é a que tem sido adotada. Ou seja, vários técnicos com currículo competente, mas saberes complementares, reúnem-se e, à base da informação que cada um tem e da forma como ela evolui no tempo - e evolui muito rapidamente nas circunstâncias atuais - e dada a sua interação e a forma como discutem uns com os outros, vão evoluindo na sua opinião até chegar a uma síntese final.
Essa síntese final, então, deve ser comunicada claramente: as recomendações são estas e a sua fundamentação é esta.
Deve ser comunicada ao público em geral?
Comunicada ao Governo e ao público em geral.
A DGS fez mal numa primeira fase, na sua opinião, em ter guardado estes relatórios na gaveta?
Não, mas deixe-me só pôr desta forma: quando estava na DGS recebia muitos relatórios técnicos e como diretor-geral da Saúde não mandava logo ao Governo. Olhava para eles e se as recomendações não eram claras e se a fundamentação não parecia adequada, pedia correções e que isso fosse esclarecido. Esse processo leva tempo. Primeiro reunimos, temos a informação, depois a informação evolui.
O que aconteceu aqui foi que a DGS disse "não divulgaremos as conclusões dos relatórios nem os pareceres" e, passados uns dias, por pressão do Governo e do Presidente da República, acabou por divulgar. Volto a perguntar: deveria logo ter sido libertada essa informação, tendo em conta o sobressalto social e desconfiança na sociedade?
Que o relatório deve ser divulgado não tenho, nem ninguém tem, dúvidas. O que levantou a confusão foram os apêndices, ou seja, a informação fragmentária sobre os pareceres. Não é a questão de divulgar o relatório, esse relatório deve ser divulgado. Agora, deve ser divulgado e todos os pareceres deste processo devem fazer parte desse relatório, não devem ser tirados de contexto. E a hesitação aí foi que o relatório seria sim apresentado, mas a informação parcelar sobre pareceres faz parte e deve ser divulgada como parte desse processo. Isso levou a uma confusão desnecessária - em parte politicamente despoletada - e a uma desconfiança desnecessária sobre uma vacina que é necessária.
Muitas crianças perguntam aos pais "vou estar em risco?", "vou morrer?", "devo vacinar-me?", e alguns querem vacinar-se, às vezes contra a vontade dos pais. Como é que se lida com isto? Como é que se explica às crianças, sem que isso mexa com a sua saúde mental?
Do meu ponto de vista é simples. A comunicação é que há um corpo tecnicamente idóneo na Europa, há um corpo tecnicamente idóneo em Portugal e chegaram às mesmas conclusões: a vacina é segura e é eficaz na proteção das crianças. Tudo o resto é ruído escusado. Tudo o resto depende de interações não pensadas que criaram um sentimento de insegurança que nada justifica e, portanto, explicar o processo de decisão, explicar como deve ser conduzido e ter confiança nesse processo é a melhor forma de evitar estas contradições, que emergiram desnecessariamente e não fazem sentido, quer face ao relatório europeu, quer face ao relatório da Comissão Técnica de Vacinação.
Acha que houve por parte do Governo, e da ministra em particular, um preconceito ideológico em relação à saúde privada em Portugal?
Não, não me parece que haja um preconceito ideológico. Conheço a senhora ministra pessoalmente, não é uma pessoa preconceituosa, é até bastante aberta, simplesmente acontece uma coisa que é a incapacidade de engajamento com o setor privado e social de uma forma prospetiva. O sistema de saúde tem um componente público, um componente social e um componente privado. E o dever da governação e do SNS é, prospetivamente, chegarem a acordos a médio e longo prazo com o setor privado sobre a forma da sua convivência. Sem esse aspeto proativo, sem esta procura constante de chegar a acordos que beneficiem as pessoas, caímos numa situação defensiva.
Em vez de sermos proativos e termos uma estratégia de articulação dos vários setores, defendemo-nos das circunstâncias diárias que nos preocupam e, portanto, dá-se a impressão de que a única resposta é desconfiar, é não abrir as portas, é não criar uma cooperação aberta. E isso conduz novamente àquela questão de que precisamos de uma estratégia que inclua a forma como cooperamos a curto, médio e longo prazo, com o setor social e privado.