ProPública denuncia "violação dos direitos, liberdades e garantias" no acesso direto aos serviços públicos

Agendamento automático, inscrições online, senhas poucas, quase nada presencial. A dificuldade no acesso direto dos cidadãos à Administração Pública viola a Constituição, denuncia a queixa - já com PR e PM - da associação ProPública.

A queixa já seguiu para o Presidente da República, para o primeiro-ministro e para a provedora de justiça. A Constituição "está a ser violada" pela exigência "quase universal de agendamento prévio, telefónico ou por meios eletrónicos, para que um cidadão seja recebido em qualquer serviço da Administração Pública".

Aquilo que era exceção e previsto em tempo de pandemia parece ter vindo para ficar, o que motivou a queixa da Associação ProPública, liderada por Agostinho Pereira de Miranda: "Certamente era exceção, mas com base numa lei que regulava o estado de emergência. E essa lei esgotou-se há praticamente um ano e meio; e consequentemente, estas medidas que nós agora vemos, limitando a possibilidade de atendimento sem marcação, são ilegais, são contrárias aos princípios da justiça, até da boa-fé, e até da moralidade que devem presidir ao funcionamento da administração pública e são, em última análise, inconstitucionais."

Pereira de Miranda vai mais longe: "Quaisquer instruções ou diretivas que ratifiquem ou aceitem o agendamento como via necessária para o atendimento presencial, são não só ilegais e, obviamente, iníquas e injustas, mas também inconstitucionais."

A queixa denuncia que o acesso sem agendamento prévio, livre e direto, constitucionalmente consagrado, se tornou impossível ou meramente residual. Agostinho Pereira de Miranda reconhece que estamos perante "um ataque à cidadania e até uma violação dos direitos, liberdades e garantias", já que, observa, "o direito a ser atendido prontamente sempre que a necessidade surge é a única forma, frequentemente, de obter uma decisão justa, uma decisão legal para o administrado".

No entender da associação, a atuação dos serviços da Administração Pública, "representa uma flagrante restrição ao livre acesso aos serviços por parte dos cidadãos", surgindo como violadora "das imposições constitucionais respeitantes à relação entre Administração e cidadãos, criando entraves e distinções que são inconstitucionais, lesivos e injustificados, colocando em causa, dessa forma, o Estado democrático constitucionalmente consagrado".

A queixa que o chefe de Governo, a Provedoria e o Palácio de Belém já receberam, vai beber doutrina a Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando lembram que a "estrutura da administração" não é um esquema organizacional "cego ou neutro" no plano dos princípios materiais constitutivos, devendo por conseguinte, deixar "de ser um esquema de opacidade e de intransparência para passar a desempenhar uma importante função democrática, ou seja, uma estrutura que, entre outras coisas, serve para a realização do princípio democrático".

Entende a ProPública que a exceção seja transformada na "nova regra da Estruturação da Administração e da sua interação com os cidadãos". Para os autores da queixa, elaborada pelo jurista João Gaspar Simões, "trata-se, sem dúvida, da subversão do regime constitucional e, assim, do Estado democrático que a constituição quis instituir e proteger, em prol dos cidadãos".

Os cidadãos têm sentido, um pouco por todo o país, dificuldades no acesso direto a Lojas do Cidadão, Espaço Cidadão. Agostinho Pereira de Miranda diz que as situações "foram denunciadas à ProPública, assumindo várias formas: serviços da administração central, também da administração local, embora menos frequentes. A situação neste momento é cada um faz o que lhe apetece. O que é totalmente contrário ao princípio da legalidade. Nalgumas das situações denunciadas à associação, "chegam a ser apenas cinco senhas que permitem o atendimento sem prévio agendamento. É de notar - porque é muito relevante -, que o agendamento é preferencialmente feito por via digital. Ora bem, nós sabemos que mais de metade dos portugueses não tem acesso à internet. Pode dizer-se que pode ser feito por telefone. Simplesmente, ao que me dizem, é difícil e é um serviço que não funciona bem", acrescenta o presidente da ProPública.

O jurista não condescende que o atual cenário possa ser uma questão de dificuldade da administração pública em ter gente suficiente para dar resposta às solicitações e que esta a digitalização e a distribuição de senhas possa estar relacionada com essa dificuldade de falta de recursos humanos: "aquilo que a ProPública sabe é que esse não é o problema. Mais do que isso, há estatísticas que mostram que uma boa parte da capacidade instalada, não está a ser utilizada. Isto é, há uma parte muito significativa dos funcionários que não estão a ser utilizados no atendimento ao público. E qual é a razão? Pura e simplesmente porque não fizeram agendamento prévio". Miranda não tem dúvidas sobre aquilo que está na lei; ou seja, a regra "é o atendimento presencial, sem qualquer pré-agendamento. Essa é a regra, é o que está previsto na lei, é o que está, em última análise, contemplado na Constituição".

Na opinião da ProPública, há um "perigo de "banalização burocrática acrítica" que se pode eternizar: "há esse risco. E a ProPública vê com particular preocupação o facto de se ter entrado numa espécie de normalização da ilegalidade. Isso é preocupante. Como preocupante é o facto das pessoas não se indignarem profundamente com esta situação", afirma Pereira de Miranda.

O Presidente da República ainda há poucos dias se manifestou preocupado com as desigualdades no acesso à informação. Ora, será precisamente isso que está em causa?Pereira de Miranda responde afirmativamente, relembrando a obra do próprio Chefe de Estado: "se há alguém que diz preto no branco, escreveu no seu manual de administrativo, que a administração pública só serve - passe a redundância, para servir o interesse público, é para isso que ela existe, é o professor Marcelo Rebelo de Sousa; de forma que nós também dirigimos a queixa ao senhor Presidente da República, na esperança de que ele denuncie uma situação, que estou absolutamente seguro, como professor de Direito, em caso algum ele aceitaria e aprovaria". Criticando abertamente a opção do governo, a queixa afirma que o que existe atualmente no quotidiano das pessoas demonstra que "o atendimento constitucionalmente consagrado foi aniquilado pela via administrativa".

No fundo, alega a queixa cidadã, foi feita ou está a ser feita na prática, uma espécie de reorganização administrativa do Estado à margem da Constituição, "para servir o Estado burocrata é que é feita em violação dos princípios constitucionais, sem lei que sustente. Note que nada pode ser feito na administração pública se não houver uma lei precedente", afirma Pereira de Miranda. "E depois, dando argumentos fáceis e até demagógicos, por exemplo, aos populistas que querem fazer vingar a ideia de que nada funciona, de que o Estado não existe quando os cidadãos têm necessidade de recorrer a ele."

Porque o acesso livre e direto dos cidadãos à Administração Pública está nos manuais de direito e na Constituição, a queixa da ProPública já foi entregue aos três titulares de cargos públicos: Provedora de Justiça ("tem como responsabilidade recomendar ao Governo as medidas que sejam necessárias para sanar qualquer irregularidade que detete. E neste caso, não é só uma irregularidade, é uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade", diz Pereira de Miranda), Presidente da República ("responsável pelo bom funcionamento das instituições e o que é também relevante pela defesa do Estado Democrático de Direito", segundo o jurista) e Primeiro-Ministro ("é o presidente do Governo e, portanto, é a autoridade máxima da Administração Pública", afirma Pereira de Miranda).

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