Luto, solidão, ansiedade e desemprego. Os primeiros socorros de psicólogos que salvam vidas

São consultas online ou por telefone, para quem não consegue ultrapassar o luto, a solidão e o isolamento. A ajuda de emergência é gratuita.

Isabel toma dois ansiolíticos ao almoço, "para aguentar a tarde", explica. As tardes são passadas na garagem, sentada com o marido e o cão, a ouvir música "muito baixinho, para estarmos pelo menos com um bocado de som". Por vezes, desce e sobe a rampa do quintal, apenas para respirar fundo sem incomodar o marido. À noite, toma mais um comprimido. Tem sido assim desde que o pai de Isabel morreu, a 2 de Fevereiro.

Isabel, nome fictício, só aceitou falar à TSF por telefone. Vive isolada com o marido, não quer ver ninguém, não consegue fazer nada. "Ando desmazelada. Estou velha, cheia de rugas, pele seca", descreve, "fiquei muito desanimada, muito triste com a vida".

O pai de Isabel morreu de Covid-19, depois de ter sido infectado no Hospital São Bernardo, em Setúbal. Tinha 94 anos, mas a filha não se conforma como ele e a família foram tratados. Apesar dos esforços, não conseguiu falar com nenhum médico desde o internamento. "Eu sei que o meu pai tinha de morrer, tinha 94 anos. Eu sei que os médicos não tinham mãos a medir, mas se tivesse sido diferente, hoje pensaria doutra forma. Tenho saudades, choro, mas assim, foi uma coisa horrível". O único telefonema que recebeu foi para anunciar a morte do pai. "A urna foi selada, nunca mais o vi (...) e é isso que me custa: ele ficou numa maca, abandonado, com oxigénio apenas. Para mim, o meu pai morreu abandonado. Senti-me muito abandonada e será que ele pensou que a minha filha veio pôr-me aqui e abandonou-me?".

Chorar alivia-lhe a dor, mas Isabel tem medo. Por isso, pede que usemos um nome fictício e que a voz seja distorcida. Tem medo de voltar ao hospital e tem "pavor da pandemia". No início de Março, começou a receber apoio psicológico da Iniciativa Solidária Covid-19, um projecto criado por Ana Valente, destinado inicialmente a profissionais de saúde, mas que foi alargado a todos os que precisam de apoio perante a solidão e o isolamento causados pela pandemia.

Com cinco psicólogas, a equipa começou por atender pedidos de enfermeiros, auxiliares, técnicos nos lares. Ana Valente sublinha que no início, teve cerca de dez pedidos de profissionais de saúde que lhe transmitiram: "neste momento, não consigo ter tempo para tratar de mim, mas por favor, guardem-me uma vaga, porque eu vou precisar. Eu estou a precisar, mas neste momento, não tenho tempo".

Os pedidos chegam também através de familiares. Por exemplo, os filhos de uma enfermeira, colocada no Norte, recorreram à Iniciativa Solidária, quando a mãe testou positivo à Covid-19. Por trabalharem em Lisboa e sem poderem deslocar-se aos fins-de-semana, devido às restrições à circulação, os filhos tentaram assim, minimizar a distância e o isolamento da mãe. Entre as dezenas de pedidos, Ana Valente destaca ainda os de duas enfermeiras portuguesas que trabalham no estrangeiro. Ao stress profissional e duplos turnos, junta-se a ausência de rede social e familiar. "Não se tem sequer essa oportunidade de chegar a casa e ter alguém para falar, porque quando chegamos, a casa está vazia ou com uma colega que conhecemos há três ou quatro meses", realça.

Na linha da frente no combate à Covid-19, os profissionais de saúde vivem situações limite. Têm de tomar decisões muitas vezes de vida ou de morte. Enfrentam o stress, a exaustão, a culpa e o medo. Por um lado, existe "o receio de levarem o vírus com eles e de o passarem para alguns familiares", explica Olga Simões, uma das psicólogas da Iniciativa Solidária Covid-19. "Depois, há outra culpa, a do afastamento da família. Sentem que os seus também estão a precisar de ajuda e eles não estão lá para ajudar". O projecto tenta ajudar os profissionais de saúde a "organizar as emoções, para que o agora seja vivido da melhor forma possível".

Para muitas pessoas, o agora é cada vez mais triste e solitário. O padre Constantino Alves, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Setúbal, nota que as pessoas "não conversam, não se aproximam. Estão metidas nas suas casas, com as suas máscaras, o que aumenta ou faz espoletar problemas de saúde mental". Em poucos dias, o padre Constantino encaminhou várias pessoas para o apoio psicológico da Iniciativa Solidária. É o caso de Angelica. Chegou grávida do Brasil, há três anos. Vendia sandes, para se sustentar a si e ao filho de dois anos, até a pandemia a deixar sem clientes e sem aquele que era o seu maior apoio emocional. "Acabei de perder a minha mãe. Consegui fazer uma última chamada de vídeo, para me despedir, mas estou sem perspectivas. Não sei como construir um sentido de viver sem ela. Tenho medo e estou muito deprimida, pensando que talvez não consigamos sair desta situação. Ando muito aflita, com um sentimento de solidão tão absurdo", relata com a voz embargada.

Ao luto e solidão, Angelica junta o desemprego, que a obrigou a pedir ajuda ao restaurante social da paróquia de Nossa Senhora da Conceição, que distribui jantares pelas famílias mais carenciadas. O padre Constantino Alves adianta que recebe cada vez mais novos pedidos de auxílio. Com a pandemia, calcula que tenha triplicado o número de pessoas a precisar de uma refeição. No caso de Angelica, conseguia dividir a refeição entre o almoço e o jantar. Agora, com o filho de regresso à creche, onde beneficia de apoio alimentar, a jovem espera conseguir dispensar a ajuda da Igreja, para dar lugar a alguém que mais precise. E agradece o ombro amigo da Iniciativa Solidária Covid-19: "Devo a noção de futuro ao apoio psicológico. Fez toda a diferença", salienta. Hoje, Angelica acredita que vai ter futuro, "porque tenho pessoas com quem contar".

Os primeiros socorros psicológicos são uma "técnica da psicologia de emergência que pode minimizar o risco de uma psicopatologia no futuro e a aparecer, essa psicopatologia pode ter menos intensidade", explica Ana Valente, enquanto Olga Simões resume: "primeiros socorros é isto: não nos afastarmos da pessoa até ela estar organizada". As psicólogas destacam este acompanhamento como a marca diferenciadora da Iniciativa Solidária - um caso é acompanhado sempre pelo mesmo psicólogo, seja por "três, dez ou mais sessões, todas as que forem necessárias".

Após duas consultas, Anabela já sente a diferença. Com um historial de ansiedade, a antiga contabilista era seguida por um psiquiatra, mas a Covid-19 agravou-lhe a saúde mental. "Morreu tanta gente conhecida e uma pessoa não se pode despedir. Isso mexeu muito comigo. Senti-me perdida". Voltou a fumar, tinha crises de choro, problemas de sono e irritabilidade. Até as notícias a perturbavam: "tive de deixar de ver televisão, notícias. Passei muito mal. Cortei tudo". Mas depois de duas conversas com a psicóloga, Anabela acredita que "o chip mudou. Saio da cama com uma vitalidade que não tinha há muito tempo (...) O pior já passou, estou a entrar numa fase zen. Sinto-me mais optimista", descreve, enquanto acende mais uma cigarrilha.

Mais cautelosa, Ana Valente alerta que "os problemas da saúde mental intensificaram-se e mesmo quando a nossa vida puder ser vivida sem este peso da Covid-19, temos um longo caminho a percorrer antes de sentirmos que atingimos uma estabilização emocional". Para ajudar no percurso, a Iniciativa solidária presta apoio gratuito, online ou por telefone. O primeiro contacto deve ser feito pelo Facebook ou para o endereço www.anavalentepsicologia.pt. A resposta chega no próprio dia, garante Ana Valente, que tem mais profissionais disponíveis para ajudar. "Os psicólogos são muito solidários", conclui.

A autora não segue as regras o novo acordo ortográfico

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