Em 27 anos, são 775 projetos de mais de 1600 investigadores em 29 países. Números da atividade da Fundação Bial, a que se entrega agora por completo Luís Portela, que acaba de transmitir ao filho a liderança da farmacêutica de dimensão mundial. A ciência, a espiritualidade, as lições políticas a tirar da pandemia e as questiúnculas Norte/Sul, na entrevista TSF/JN desta semana.
Já marcou a viagem para o Tibete?
Não marquei e não sei se irei marcá-la. O Tibete com que sonhei na juventude é um pouco diferente do que posso lá encontrar hoje. O que procuro é um espaço onde possa meditar um pouco, procurar encontrar-me comigo mesmo de uma forma mais profunda e o Tibete de hoje não terá as melhores condições para isso. Vou pensar um pouco melhor e talvez opte por ir ao Nepal ou ao Butão.
É um projeto que quer cumprir rapidamente?
Não. Quando tinha 15 anos imaginei que gostaria de ser um monge tibetano, afastar-me do Mundo e conhecer-me melhor. Só que, à medida que fui crescendo, apercebi-me de que essa viagem ao encontro de mim próprio que queria fazer, no sentido de um autoaperfeiçoamento e purificação, talvez fosse possível realizá-la no mundo ocidental e até de uma forma mais bonita, no dia a dia, com as pessoas, no mundo-escola em que estou a habitar de momento.
Nunca houve momentos em que as evidências científicas o fizessem sentir-se questionado nas suas posições espirituais?
Estamos na Terra para aprendermos a ser melhores e seguirmos um percurso evolutivo. Essa é a base de tudo. A ciência é um instrumento que podemos colocar ao nosso serviço. Infelizmente, durante muitos anos, a ciência divorciou-se um pouco disso ou, se preferirmos, a religião afastou a ciência. É um disparate querer afastar ambas. A ciência ao serviço do Homem deve procurar explicar os fenómenos, sejam eles quais forem. A meu ver, a Humanidade embriagou-se com a materialidade e fomos deixando para trás os grandes valores. A ciência pode ajudar-nos a perceber o que somos como seres espirituais e perceber se é mais conveniente focarmos os grandes valores ou embriagarmo-nos na exploração material.
No início da sua carreira, lecionou Psicofisiologia na Universidade do Porto. A exploração da relação entre o corpo e a mente tem sido útil ao longo da vida?
Sem dúvida. Comecei por gostar do tema e sentir-me como uma partícula da inteligência universal, da alma e do ser espiritual. Na minha juventude, achei que era um disparate o que estava a acontecer na sociedade. Por um lado, na fé as pessoas aceitavam muito mais do que, a meu ver, devia ser aceite - e quando não percebiam, chamavam-lhe um milagre -, no outro extremo estava a ciência pura e dura, que dizia que nada daquilo existia. Ora, para mim, nenhuma dessas posições era conveniente para a Humanidade. Faltava o caminho do meio. Parecia-me que cabia à ciência explicar essas situações e sob o rigor do método científico, tentar esclarecer o que era ou não verdade. Estava convencido, como estou hoje, que muitos dos fenómenos descritos são fantasias, mas que também muitos são profundamente reais e explicados por formas de energia ainda pouco conhecidas da humanidade.
Está a falar, por exemplo, de Fátima?
Acho que Fátima é uma mistura de muita coisa. É evidente que há um sexto sentido. É evidente que há possibilidade de qualquer pessoa ver imagens que outros não estão a ver ou sons que outros não estão a ouvir. A perceção extrassensorial é hoje aceite como uma realidade que não tem de ser exatamente patológica, pode ser normal. Que os pastorinhos tenham visto imagens, ouvido sons ou tido sensações, isso para mim é tranquilo. Que, em torno disso, se tenha criado uma enorme fantasia... Para mim, é uma fantasia. Penso que a mensagem de Cristo é uma mensagem sublime, fantástica na sua simplicidade, e não precisa desses adornos para vingar. Pelo contrário.
E para nos distrair, até?
Parece-me que os ditos seguidores de Jesus, ao quererem melhorar, influenciar e fortificar a mensagem do mestre, foram criando condições para afastar a verdadeira mensagem das pessoas em geral.
Essa centralidade no interior ajudou-o durante este ano difícil da pandemia?
Quando surgiu a pandemia, dei comigo a ponderar por que é que estava a acontecer uma coisa destas. Desejava que a humanidade pudesse refletir no seu tipo de comportamentos. Como é que eclodiu uma pandemia destas? É para mim inconcebível como é que, nos dias de hoje, na China ou noutros países do Oriente, há animais selvagens acumulados em mercados em que os dejetos caem em cima uns dos outros e que, às vezes, são vendidos e escalpelizados vivos, na frente do cliente, para depois serem utilizados a nível alimentar como grandes iguarias. Acho que vale a pena ponderar nisto. Não estou a fazer uma crítica ao Oriente. No Ocidente há muitas coisas criticáveis também.
Tem sido muito repetido que esta pandemia nos aproximou da ciência. Considera que houve, de facto, uma mudança ou é um sentimento apenas movido pela necessidade?
Acho que ainda é cedo para lhe dizer o que sobra de tudo isto. Tenho uma posição relativamente crítica da forma como a saúde tem sido governada na Europa nas últimas décadas. No último século, a evolução terapêutica medicamentosa foi absolutamente fantástica. As pessoas às vezes esquecem-se de que há um século a esperança média de vida era cerca de metade do que é hoje - andava à volta dos 40 anos, 40 e poucos anos, e agora são 80, 80 e poucos. Em termos de investigação científica aquilo que se faz na Europa e em Portugal é bom. Quando comparamos os indicadores portugueses com os indicadores dos melhores países da Europa, a saúde é uma área que compara bem. E quem governa a saúde foi assumindo uma postura cada vez mais orçamentalista.
De pouco investimento no setor?
Pouco investimento, pouca preocupação de atualização, de criar condições para a indústria se desenvolver. E por isso, em termos gerais, a indústria farmacêutica deslocou a sua produção para o oriente, onde era mais barato e tinham condições e incentivos a fazer isso. A Europa tem tido uma política orçamentalista de diminuir preços, cortar às margens. Portugal é um campeão nesse aspeto, em 2012 foram tomadas medidas extremamente severas: o preço médio dos medicamentos baixou 30%, as empresas foram ao vermelho em geral, nós fomos ao vermelho durante dois anos. Quando a saúde é assim tratada, de repente cai a pandemia em cima e a Europa percebe que está muito dependente do exterior. Percebe que os seus produtos estão, sobretudo, a ser produzidos no extremo oriente, e que a investigação se deslocou muito para os EUA, onde as condições de investimento, os incentivos, são muito bons, onde as margens com que as empresas trabalham permitem investir muito mais do que na Europa. E portanto a Europa, de repente, percebeu que tem uma situação difícil de dependência externa.
Espera que sejam retiradas lições políticas?
Exatamente. A partir de 2012 o Ministério da Economia saiu de cena e nós estamos só com o Ministério da Saúde, que é quem nos aprova os registos, quem nos aprova os preços, quem nos aprova as comparticipações, e quem é o nosso melhor cliente no final através dos hospitais públicos. E portanto, quer dizer, nós estamos hiperdependentes de um Ministério que tem a obsessão - perdoem-me a expressão - de controlar o seu orçamento. Esperamos que haja o bom senso do Ministério da Economia aparecer de novo para haver aqui algum equilíbrio: por um lado, controlar o orçamento, mas por outro lado criar condições para o desenvolvimento normal do setor.
Para uma visão mais empresarial também, associada à investigação?
Eu nem diria empresarial, eu diria desenvolvimentista. A saúde em geral, nos últimos 12 anos, triplicou as suas exportações. Quase triplicou as suas exportações. Em 2020, a saúde portuguesa exportou 1,7 mil milhões de euros, quando estamos a trabalhar asfixiados. O que eu direi é que será bom para o país trabalharmos com melhores margens, trabalharmos não tão asfixiados, com mais equilíbrio, para podermos melhor estar ao serviço da saúde das pessoas, mas também ao serviço da economia do país.
Como é que olha para os fenómenos negacionistas precisamente num momento em que percebemos a importância da ciência para nos dar respostas?
Há certas coisas que eu tenho dificuldade de perceber. Às vezes, há certos movimentos que parecem mais de uma certa imaturidade juvenil, do que propriamente sensatos. Contra factos não há argumentos e eu acho que a ciência se tem movido de uma forma factual. As coisas não são perfeitas, em todo o lado é assim: sempre há problemas.
A Bial fechou o ano passado com uma faturação de 340 milhões de euros, mais 11 por cento do que no ano anterior. Quando uma parte do país entrou numa profunda crise, com os estilhaços que ainda não estamos a perceber bem, que vamos conhecendo ao longo deste ano e do próximo, sente algum desconforto com o crescimento do negócio?
Não, não sinto desconforto nenhum. Há que dizer o seguinte: nós não ficamos tristes por termos crescido 11% mas também não ficamos contentes. Deixe-me explicar: nós investimos muito nos anos anteriores e o ano passado era um ano de lançamento do nosso novo produto para a doença de Parkinson, o Ongentys, em alguns grandes mercados mundiais. Aquilo que era a nossa expectativa era que as vendas crescessem vinte e tal por cento. Portanto, nós ficamos a metade do crescimento que estava previsto, de acordo com os investimentos que fizemos, de acordo com o que era o planeamento normal da empresa. E, portanto, a situação pandémica evitou que nós tivéssemos este crescimento e fez com que crescêssemos menos.
Falou há pouco dos EUA e da facilidade no investimento na ciência, esse deve ter sido um dos motivos por que a Bial abriu um centro de investigação justamente lá. Quais foram os objetivos dessa aposta?
Temos uma estratégia de grande aposta na investigação científica e na inovação terapêutica. Quando se trabalha a ombrear com os melhores do mundo, temos consciência de que das duas uma: ou se está nos EUA ou não se está nos EUA. E porquê? São o maior mercado mundial, que tem hoje em dia perto de 40 por cento do negócio global da indústria farmacêutica. Pelo meio, nós achamos que a biotecnologia é uma área em que nos interessa estar. E portanto detetámos uma pequena start-up, em Boston, que achamos que tem condições para nos ajudar a desenvolver projetos na área das neurociências, que é a nossa área de eleição em termos de investigação, e que, ao mesmo tempo, nos servirá de plataforma para podermos ir criando condições para, mais cedo ou mais tarde (e isso agora não vai ser uma questão minha, é uma questão da equipa de gestão liderada pelo meu filho António), procurar criar condições para mais ano menos ano podermos ter a nossa filial americana já com uma equipa comercial instalada no terreno e, a partir daí, tentar crescer no mercado americano.
Estivemos a falar de internacionalização, mas a empresa tem um milhar de trabalhadores e uma dinâmica essencial na região Norte. Sente mais essa valorização da Bial como empresa do Mundo ou a ligação a um concelho como a Trofa?
Em termos existenciais, gosto de olhar para mim mais como um cidadão do Mundo, um cidadão do universo. Um ser universal.
Portanto, discussões como a regionalização ou a discussão em torno da deslocalização do Infarmed não o atraem?
Não. Não são para mim atraentes. Eu gosto de conhecer o Mundo e, portanto, não tenho uma visão muito focada de ser um regionalista. Mas, dito isto, também gostarei de acrescentar que gosto muito do país em que nasci, onde tenho vivido e que aprecio muito as características da população deste país, nomeadamente a população do Norte. E acho que é pena as pessoas, por vezes, focarem-se no Norte/Sul, por exemplo, tipo Porto/Benfica. Como fenómeno desportivo, até acho graça, eu próprio sou azul e branco, mas na vida real não acho graça nenhuma. O Norte do país tem condições para uma postura desenvolvimentista para ombrear com cidades como Barcelona, Manchester, Lyon, Milão. E eu acho que essa é que devia ser a perspetiva de uma região que é forte, economicamente forte, e que conjuga os seus interesses com a capital do país, unindo-se para desenvolver um país mais forte, um país melhor. E, sobretudo, focar o país no crescimento económico, no desenvolvimento. O país discute muito os direitos, mas acho que era mais útil que se focasse na criação de riqueza, para que, depois, esses apoios possam surgir com naturalidade aos mais desfavorecidos. O que me pareceria desejável, mais do que andarmos com questiúnculas Norte/Sul, era unirmos esforços numa perspetiva desenvolvimentista, focar a necessidade do país todo se aliar e focar em crescer.