João, nome fictício, reparou nas primeiras "borbulhinhas" num braço a uma quarta-feira. No dia seguinte, surgiram mais. Não lhe causaram qualquer alarme. "Parecia acne". O sinal de "alerta", conta à TSF, veio logo na manhã seguinte: quando acordou, tinha uma borbulha "num sítio que não era comum".
Nessa mesma sexta-feira marcou uma consulta no check-point LX, do serviço do GAT (Grupo de Ativistas em Tratamentos). "Consegui uma consulta para o próprio dia. Consegui ter essa sorte", diz, reconhecendo sentir-se "privilegiado". Não por ser médico ou enfermeiro mas por trabalhar na área da saúde. Não teve febre e admite que desvalorizou a dor de cabeça que sentira no início daquela semana, mas manteve-se atento à evolução das borbulhas e foi rápido a agir.
Mesmo antes do diagnóstico, a perspetiva do médico era de que João estava com infeção por monkeypox (VMPX). Resultado confirmado dias depois pela saúde pública, a quem João indicou os parceiros sexuais. Correu tudo como o esperado e não tem quaisquer razões de queixa na forma como foi tratado. "Fui sempre muito bem atendido, tanto no GAT, como na ligação com a saúde pública", sublinha, elogiando todo o processo. Sabe, no entanto, que residir na zona de Lisboa é uma vantagem. "É muito mais fácil ter acesso a esta engrenagem do que quem more noutra parte do país", explica.
Mais uma doença estigmatizante
Em isolamento mas sempre a trabalhar em casa, o pior, no caso de João, veio depois do diagnóstico. Não teve "buracos na pele ou feridas de grande extensão" como aconteceu com outros casos. Teve muitas feridas quase no corpo todo - no rosto, nas costas, no peito, nos braços, nas axilas, nas pernas, nos órgãos genitais e até na sola dos pés - mas "nunca muito extensas".
João não se cansa, por isso, de relativizar o seu caso comparando-o com exemplos de infeções muito mais severas: "Comparativamente a alguns sintomas que já vi, os meus não chegaram perto. Um dos parceiros com quem estive, e que também teve monkeypox, teve uma ferida muito concentrada que se estendeu por metade da perna. A infeção foi em julho mas ainda está a tratar a cicatrização", conta.
Há também quem tenha tido feridas no rosto ao ponto de ficar com uma paralisia nos músculos. "Olhar para a nossa cara e ver uma ferida é quase como ver alguém diferente. A pessoa tem a tendência a não se reconhecer", diz. Felizmente, não chegou a acontecer-lhe.
Ter consciência de que há casos piores do que o seu não significa que João não tenha sentido dor. Chegou a acordar com "dores localizadas nas próprias feridas". Com dores físicas mas também com o stress de estar "com uma infeção que é estigmatizante para a maior parte das pessoas". Sendo uma doença "com um nível de desconhecimento tão grande no mundo ocidental", afirma, "não se consegue medir bem a dor e o que se espera dos sintomas".
A dor física, que lhe roubara a concentração no trabalho, foi sendo aliviada com as sugestões dadas pelo médico, com quem foi sempre trocando informação. Também por isso se sente privilegiado. "Tive essa facilidade", frisa.
Autoestigma e a "saída de um terceiro armário"
João garante não ter sentido medo durante o período em que lidou com a infeção. Mesmo a viver um turbilhão de emoções, pôs em prática o seu pragmatismo. A informação que lhe foi sendo passada, admite, "foi muito importante" para o tranquilizar.
Tinha como certo que, apesar de tudo, o processo seria linear: "Os sintomas surgem, são galopantes, podem surgir borbulhas de repente, causam dor e desconforto. A partir da segunda semana, começam a sarar. Tendo uma boa cicatrização, ao final da terceira, quarta semana, já não há crostas." E assim foi.
A informação foi, como sempre é, a melhor arma para manter o medo a milhas e os anos de pandemia também foram um "bom ensinamento". "Não senti medo nenhum. Não senti medo de transmitir a infeção a outra pessoa. Também porque segui as recomendações. Fiz autoisolamento. Trabalhei a partir de casa, mantive um contacto minimizado com outras pessoas", resume.
O que João sentiu foi um "autoestigma", que se prende com "outras questões". Aos 43 anos, foi "quase como sair de um terceiro armário". "O primeiro armário o de ser homossexual, o segundo o de ser uma pessoa com VIH e o terceiro é dizer a alguém que tenho ou que tive monkeypox", desabafa.
Quando suspeitou que podia estar infetado, João contactou os parceiros sexuais do último mês. Tinham sido dois. "Um foi muito prático, foi quem também teve a infeção. O outro ficou mais assustado, mas não senti nenhum estigma da parte deles", afirma.
Sentiu, sim, da parte de alguns amigos a quem contou para "sentir apoio". Uma das primeiras perguntas que lhe fizeram foi "como é que aconteceu?". João sentiu-se magoado com estas reações. "Não pode ser essa a primeira pergunta. tem que ser: Como é que tu estás? E como é que está a ser o processo".
João ainda não sentiu na pele a rejeição de alguém por ter tido monkeypox, mas admite que isso possa acontecer, tal como acontece em relação ao VIH. Não é essa a sua experiência porque só revela o seu estatuto serológico com quem tenha "um nível de confiança bastante sedimentado", mas "é muito comum as pessoas serem rejeitadas porque vivem com HIV". "É quase como serem rejeitadas por terem os olhos azuis e o outro só querer pessoas com olhos castanhos. É dos sentimentos mais duros de experienciar".
Desconforto e relações em suspenso
João não sofreu rejeições, mas admite que monkeypox já colocou relações sexuais e amorosas em suspenso, mesmo depois de curado. Mas sabe que essa é, em primeiro lugar, uma barreira sua.
"Ainda não me sinto completamente à vontade para voltar a ter relações sexuais com quem quer que seja. Não quer dizer que não tenha já tido, mas é ainda desconfortável", assume, revelando que, aquando do diagnóstico da infeção fora-lhe também diagnosticado herpes labial nos genitais.
"Essa combinação faz com que me sinta desconfortável em ter relações sexuais com outra pessoa. Apesar de estar já curado para a monkeypox e de não ter herpes ativo, isso cria-me desconforto. É quase como se tivesse a reaprender a ter contacto amoroso ou sexual com outras pessoas", afirma.
A factura emocional é por isso muito maior e prolongada no tempo do que a dor física que ficou circunscrita àquelas primeiras duas semanas. "Há um impacto emocional muito grande que afeta as relações interpessoais e o trabalho (...) Nós, humanos, para atingirmos algum nível de felicidade no mundo, temos que estar bem connosco próprios a vários níveis. E basta algumas destas coisas não estarem bem para afetar tudo o resto", atira.
"Um bom plano de ação" mas vacinação a conta gotas
Apesar das marcas que a infeção lhe deixou, João faz um balanço positivo da forma como o país está a lidar com a doença - "sem alarmismos" - e elogia o papel de quem assumiu essa pasta na DGS, a médica Margarida Tavares, entretanto designada secretária de Estado da Saúde. "Fez um bom plano de ação. Foi falar com a comunidade, com as várias associações, bares e discotecas para delinear uma estratégia concertada de informação. Acho que fez a diferença", afirma.
A vacinação é, no entanto, o calcanhar de aquiles em Portugal. Até setembro, apenas quem tinha tido contacto com alguém diagnosticado, é que tinha critérios para fazer a vacina. Sabendo-se que a transmissão acontece, muitas vezes, através de contactos anónimos e entre pessoas que não se conhecem e das quais não têm números de telefone, impunha-se que a vacinação preventiva tivesse avançado desde o início, como aconteceu noutros países.
Avançou depois com a atualização da norma por parte da autoridade de saúde, mas os critérios restritos ainda são uma barreira, diz à TSF o diretor-executivo do GAT, associação que tem uma linha monkeypox e onde é possível agendar vacinação.
Nos três centros do GAT, dois em Lisboa e um em Setúbal, as doses que forem necessárias para vacinar as pessoas consideradas mais expostas ao risco "vão ser disponibilizadas até acabarem". Até agora, "não nos tem sido recusado o envio de doses", "mas também não temos filas à porta para vacinar". "Nem me parece que com estes critérios isso vá acontecer. Os critérios foram definidos de forma a termos uma vacinação sustentável", refere, definindo como primordial aprimorar a comunicação.
Ricardo Fernandes defende que os critérios para vacinar devem ser alargados e aponta que a "única razão" para ainda serem tão restritos é a "indisponibilidade" da vacina, "um problema que não é português e que tem de ser resolvido a nível internacional".
Para o responsável, é preciso "acelerar o processo" de fabrico e disponibilização das vacinas. Um trabalho a ser feito do ponto de vista diplomático e que tem de começar pelo Ministério da Saúde. "Façam esforços para que haja um consenso a nível europeu para a aquisição destas vacinas, como houve para a da Covid-19", pede, sustentando que o assunto deve ser analisado junto dos laboratórios que têm as patentes.
Porque, tratando-se de uma questão de saúde pública, "não podemos deixar isto só nas mãos dos laboratórios que produzem as vacinas porque eles têm a sua própria agenda". E "não havendo nenhum pedido ou pressão por parte dos governos, provavelmente vai demorar um bocadinho mais", perspetiva.
Em Portugal, diz, "está a fazer-se aquilo que se pode, com o que está disponível", apesar da demora na atualização da norma.
Se surto for desvalorizado, pode tornar-se "noutra coisa"
Ricardo Fernandes alerta, contudo, que, se este surto não for tratado como deve ser (e a vacinação é essencial nisso) há o risco de o vírus se transformar "noutra coisa" pior. "A grande urgência das questões de saúde pública é que, independentemente de onde começa e em quem começa, tem que ser tratada, porque os vírus e as doenças não discriminam pessoas", lembra.
O facto de esta ser uma doença, ainda que "chata", com um "bom prognóstico" e com uma fatalidade reduzida, pode estar a a "atrasar a urgência de se arranjar soluções", mas a verdade é que, "havendo ainda casos em circulação, a vacinação é essencial, independentemente de quais são as populações mais afetadas", insiste.
Ricardo nota que a maior parte dos países, e Portugal não é exceção, têm dificuldade em agir com rapidez em relação aos surtos. Em parte, essa demora compreende-se, tendo em conta que "há uma série de coisas que não sabemos sobre uma doença quando ela surge". E a monkeypox não foi exceção.
"Isto só nos vem dizer que o mundo tem de estar mais atento àquilo que são as doenças infecciosas emergentes que, normalmente, aparecem no continente africano ou no continente asiático e que algumas já estão descritas mas para as quais não existe financiamento suficiente para estudar e perceber. Temos que começar a aprender lições, como seres humanos, como sociedade, sobre as doenças infecciosas e perceber que, quando surgem nestes continentes, existe um perigo de transbordarem para o nosso". "Se os vírus não forem estudados, não conseguimos perceber qual a evolução e não conseguimos defender-nos" , reforça.
Estigmas versus comunicação
Reconhecendo que existe um "estigma na comunidade" em relação a esta doença, o responsável do GAT realça que a comunicação é fundamental para que isso não se agrave. "Se não soubermos comunicar bem, pode ser complicado".
"Vimos isso em relação à Covid-19 com a população chinesa (...) e foi preciso comunicar melhor sobre quem era afetado. E vimos também, no início da pandemia do VIH que houve a atribuição desta doença a determinados grupos que eram mais afetados, de facto, o que teve um impacto na própria epidemia que transbordou para outros grupos de uma maneira tão violenta que acabou por ser uma epidemia geral".
No caso concreto da monkeypox, "houve um primeiro momento em que talvez todos se tenham sentido um pouco perdidos em relação à comunicação - como comunicar e o que comunicar -, precisamente por não se conhecer bem a doença". Por esse motivo, "a comunicação inicial pode ter pecado pela demora e não pela sua tipologia".
O principal problema começa e acaba na falta de investimento não só na monkeypox, mas em todas as doenças infecciosas.
Para isso, além de investimento, é crucial que as autoridades de saúde estejam alinhadas com a comunidade. E nisso, elogia Ricardo, Portugal esteve bem.
Vacinação. O que fazer e onde ir?
Quem integrar os critérios para ser vacinado, residindo nos distritos de Lisboa ou Setúbal, basta contactar os serviços do GAT e agendar a vacinação. Fora destes distritos, é preciso procurar os serviços das administrações regionais de saúde (ARS).
Em Portugal, os primeiros cinco casos de infeção humana por VMPX foram confirmados a 3 de maio. Desde então até 19 de outubro de 2022, foram identificados 944 casos confirmados laboratorialmente. Oito dizem respeito a mulheres.
Segundo dados da DGS, de 16 de julho a 16 de outubro, foram vacinados no contexto de vacinação pós-exposição, 554 contactos. Já a vacinação preventiva para grupos com risco acrescido de infeção, que se iniciou a 26 de setembro com a atualização da norma, chegou a 261 pessoas.
O surto de varíola dos macacos foi declarado como uma emergência de saúde pública internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a 23 de julho deste ano.