Em tempos, os portugueses foram por "mares nunca dantes navegados" e deram "novos mundos a um mundo". Nessa época, o mar era ainda desconhecido e por descobrir. Mas, depois, o mar ficou ali, apenas para fazer parte da paisagem, atrair turistas e pescar. Somos, afinal, um país de marinheiros? E este mar que banha o século XXI está, outra vez, por explorar?
Administrador executivo da Fundação Oceano Azul, foi o vencedor do Prémio Pessoa no ano passado. Teve missões nacionais e internacionais, nas nações unidas e na Comissão Europeia. Foi consultor do Presidente da República. É Administrador Executivo do Conselho de Administração da Fundação Oceano Azul, desde a sua criação em 2017.
Tiago Pitta e Cunha, 55 anos, recebe a partir de segunda-feira, em Lisboa, os participantes na Cimeira dos Oceanos. Com o mar como fundo.
O ministro da Economia e do Mar disse ao DN que quer tornar Lisboa uma praça financeira do mar. Está igualmente otimista?
De facto, esta conferência que vai ter lugar em Lisboa é quase única, uma vez que só existiu outra antes, em 2017. Aumentou quase dez vezes o número de organizações da sociedade civil. Sejam ONG de conservação da natureza, sejam fundações, sejam entidades do setor económico ou financeiro. Há um sinal muito claro de que há uma sociedade civil cada vez mais a interessar-se pelo tema dos oceanos, o que não era o caso ainda em 2017, e isso é extremamente positivo. Temos razões para estarmos otimistas. Julgo que o ministro da Economia e do Mar entende que poderemos vir a tirar partido disso em muitas áreas ligadas à economia do mar. É um tema que tem vindo a ser recorrentemente discutido em Portugal e temos aqui um papel nesta área dos serviços financeiros dos oceanos, onde países como a Noruega são muito importantes.
É um interesse estratégico?
Em Portugal, temos um interesse estratégico bastante claro nesta área do mar, ou seja, somos um país da biodiversidade marinha na Europa. Não há mais nenhum país com tanta riqueza de variedade biológica, aquática, subaquática e marítima. Em função disso, devemos perceber que aí está uma das nossas riquezas. A natureza tornou-se tão escassa e trouxe-nos até estes desequilíbrios tão grandes como a crise climática, as crises da biodiversidade e a crise dos oceanos, que a natureza em si está a tornar-se um valor. É preciso começarmos a perceber isto, neste século XXI a natureza vai tornar-se o capital natural de cada nação. Temos de investir, desde logo, em restaurar e proteger aquilo que temos, em salvar aquilo que resta, isto se quisermos ter este capital natural quando ele for uma marca distintiva da economia das nações.
Temos esta diversidade biológica e queremos preservá-la a todo o custo. É neste sentido que é importante criar áreas marinhas protegidas, criar novos métodos de governação e gestão das pescas e é isso que a Fundação Oceano Azul tem vindo a fazer. Mas há que saber tirar partido disso e aqui Portugal também tem uma aposta muito grande, quer em soluções que nos são dadas pela natureza, quer em soluções que nos são dadas pela economia.
Para a Fundação Oceano Azul o que seria uma vitória nesta conferência em Lisboa?
A Fundação Oceano Azul tem uma aspiração imediata e uma aspiração secundária. A imediata tem a ver com o facto de a crise dos oceanos ser muito mais profunda do que temos perceção. Não vivemos nos oceanos, o aumento da temperatura dos oceanos a nós não nos diz nada, a alteração do pH dos oceanos e da sua fórmula química também não nos diz nada, não vemos isso, não vemos desaparecer estas coisas. O que é fundamental para mim é que nesta conferência sejam tomadas algumas ações, porque esta crise que estamos a viver nos oceanos resulta em grande medida do facto de não terem sido tomadas decisões em tempo oportuno por parte da comunidade internacional. Há algumas decisões que têm estado recorrentemente em negociação, mas que nunca mais chegam à meta final.
O que é que seria mais urgente?
Tratar da conservação do alto-mar é fundamental, é 50% da superfície terrestre, não existe legislação que permita proteger esse alto-mar. A adoção de um compromisso universal de chegar a 2030 com 30% de áreas marinhas protegidas e, neste momento, há uma coligação de mais de 100 países - onde se inclui Portugal -, que assume este compromisso. É claro que uma coisa é assumir um compromisso e outra coisa é implementá-lo e, a verdade, é que a maior parte dos países que assumiu este compromisso, não deram ainda os passos necessários para chegar a esse objetivo.
Por outro lado, a ligação dos oceanos às alterações climáticas, porque os oceanos têm estado sempre fora das negociações climáticas. No Tratado de Paris a palavra "oceano" só aparece no preâmbulo, o que significa que é necessário que os oceanos entrem nas negociações climáticas e é necessário que o carbono azul - toda aquela capacidade de armazenagem de carbono gerado pelos gases de efeito de estufa e que o oceano produz -, possa entrar nas chamadas National Determined Contributions. São quase uma moeda que foi criada e que respeita os compromissos assumidos pelos Estados no âmbito do Tratado de Paris. Estas são as três áreas fundamentais.
E o que é que seria um falhanço?
Acho que será difícil perspetivarmos um grande falhanço porque uma conferência como esta, que tem 196 Estados-membros das Nações Unidas, que tem milhares de organizações da sociedade civil, vai ser capaz de colocar este tema na agenda muito mais do que tem estado nos últimos anos. Não tenho quaisquer dúvidas disso porque, em 2017, a conferência foi um décimo do tamanho desta e, nessa altura, toda a questão da poluição dos plásticos veio ao de cima, foi a partir daí que as pessoas se voltaram verdadeiramente para os oceanos.
Apesar desse despertar, não é estranho que a reunião do G7 tenha sido marcada nas mesmas datas da Conferência dos Oceanos?
Se as pessoas conhecerem como funciona o sistema multilateral internacional de decisões, não ficariam surpreendidas. De facto, não existe verdadeiramente uma coordenação entre organismos diferentes, o G7 não faz parte das Nações Unidas, é um grupo de países mais desenvolvidos. Como tal, tomam as suas decisões à margem das decisões das Nações Unidas, mas claro que, idealmente, a governação internacional seria muito mais articulada e mais eficiente do que é, mas não é o caso, infelizmente.
Estarão os grandes líderes internacionais, além de pouco coordenados, mais comprometidos com eles mesmos, os desafios nacionais e com a guerra?
É exatamente isso. Esta guerra contra a Ucrânia altera claramente a ordem mundial estabelecida e, a partir daí, põe-na completamente em causa e compreendo perfeitamente que seja uma prioridade. Infelizmente, durante a Conferência dos Oceanos não é apenas a cimeira do G7 que vai ter lugar, mas a cimeira da NATO em Madrid também. E depois, há aquela tendência de pensar que os oceanos não estão assim tão maus, que os problemas dos oceanos são problemas para as baleias e para os peixes e não para os humanos. Não compreendemos que dependemos dos oceanos para o oxigénio, para água potável, para a biomassa que nos dá muitas das proteínas que usamos para consumo humano. Estas coisas passam sempre para segundo plano, mas foi precisamente isso que nos trouxe aqui, uma situação do planeta de profunda crise que ameaça a nossa sobrevivência nos próximos séculos. Ao mesmo tempo, foram dados alguns passos importantes, como o Pacto Ecológico na Europa e, por isso, tenho confiança absoluta que, independentemente destas desarticulações e sobreposições, este século vai ser o século da descarbonização das nossas sociedades. Quando, por exemplo, o Painel Intergovernamental de Cientistas para as Alterações Climáticas diz que uma medida fundamental será a nossa transição para dietas verdes, ou seja, mudarmos os nossos hábitos de vida e passarmos a alimentar-nos de forma diferente que carbonize menos o planeta. Acho que tudo isso vai ser uma realidade e não acho que a vá ser a cimeira da NATO ou do G7 que vai impedir esse caminho de ser feito.
Diz que o mar pode mudar o país e acabar com o complexo de inferioridade de Portugal. Como?
Acho que é muito disruptor se pensarmos que somos uma das grandes nações oceânicas e que temos um território submerso que com a Plataforma Continental, é até 40 vezes superior ao nosso território terrestre. Poderemos pensar que se o oceano vai ser uma cartada determinante para este século da descarbonização, porque o oceano através das energias renováveis, do transporte marítimo, da alimentação de base marinha, vai ser uma cartada fundamental para a nossa transição para uma economia verde e para a descarbonização. Nesse sentido, o oceano vai ser muito mais importante para a humanidade no século XXI do que foi no século XX e isso, para Portugal, são ótimas notícias.
Se esse capital natural se tornar cada vez mais da economia intrínseca das nações, Portugal tem aqui uma vantagem muito interessante, uma vez que somos os mais ricos no capital natural azul na Europa. É nesse sentido que digo que vamos poder beneficiar do oceano e, quiçá, traçar a ambição de sermos uma potência marítima daqui a dez anos - tal como hoje é a Noruega -, ao abrigo deste novo paradigma do capital natural, de conservação do oceano e da utilização da energia dos transportes e da alimentação como pedras fundamentais no desenvolvimento da economia portuguesa.
Desta vez não há desculpas para não olharmos o mar, face aos 252 milhões de euros do PRR?
De facto, se o PRR não contemplar o oceano então é uma oportunidade histórica perdida que vamos lamentar por muitas décadas. Existe uma componente com esses 252 milhões de euros, mas também existe esta componente muito interessante do PRR que é a componente das agendas mobilizadoras. Nesta têm concorrido muitos consórcios de ponta a nacionais, onde há o consórcio chamado o Pacto da Bioeconomia Azul, que junta os grandes grupos económicos portugueses com muitas start-ups. Principalmente, start-ups que a Fundação Oceano Azul, em conjunto com a Fundação Calouste Gulbenkian, tem vindo a desenvolver e a acelerar em Lisboa. É muito talento que está no radar destas duas fundações, são start-ups de biotecnologia azul e que, juntamente com o melhor que se faz em Portugal em investigação e desenvolvimento, na academia portuguesa e nos centros de investigação do mar, se apresentam várias fileiras industriais onde a biotecnologia poderá ser altamente qualificadora. Também poderá ser uma das grandes apostas do país, que é sermos os principais países do mundo em biotecnologia marinha.
O que espera destes milhões?
O meu grande desígnio estratégico é que Portugal compreenda que os seus próprios objetivos estratégicos têm de ser coerentes com o país que somos, mas que até agora não temos conseguido interiorizar que somos. Ou seja, temos aqueles objetivos estratégicos que definimos a cada sete anos quando estamos a combinar os quadros comunitários de apoio com que a União Europeia nos beneficia. Mas os nossos objetivos são sempre muito gerais e abstratos como, por exemplo, desenvolver o emprego qualificado, desenvolver uma economia de alta produtividade e alto valor acrescentado.
É uma falha dos nossos políticos?
É uma falha estrutural desta nossa república democrática contemporânea. É fundamental termos objetivos estratégicos que são situados no tempo e no espaço e aí a geografia é determinante. Temos uma geografia avassaladoramente marítima que é onde está o nosso livre-arbítrio perante uma Europa que já passou a primavera da sua estabilidade política e social, diria. Somos o único país médio da Europa que só tem um vizinho terrestre que é Espanha e tudo isto deveria ser determinante nos nossos objetivos estratégicos, mesmo naqueles que dizem respeito ao desenvolvimento económico e social do país. E em função desses objetivos, depois saberíamos que o mar seria uma aposta verdadeiramente consagrada e tutelada pelo poder político. É nesse sentido que acho que estamos agora a caminhar e não apenas porque falamos do PRR, mas também porque estas serão as nossas principais opções políticas e económicas da próxima década.
O ministro que tem a pasta, António Costa Silva, já afirmou que a política do mar é central e tem de começar pela proteção do oceano. Nesta legislatura já viu ação nesse sentido?
Não posso deixar de dizer que com o ministro da Economia e do Mar, mas também com outros ministros, temos visto que há uma preocupação grande em dar resposta a estas questões em que Portugal se pode posicionar como um país muito mais pertinente para o século XXI nesta questão da sustentabilidade e do desenvolvimento económico a partir do mar. O ministro da Economia, julgo que é sabido, tem um pensamento sobre isto e já o expôs de forma muito clara no plano que fez e que antecedeu o PRR e que colocava o mar no centro das decisões nacionais.
Chega ou é preciso ir mais rápido?
É necessário agora passar do discurso para criarmos as estruturas de governação e organizativas necessárias a dar esses passos, mas acho que tudo isso está em aberto. Portugal, com esta Conferência dos Oceanos tem uma forma de ter todos os olhos postos cá e vai ganhar uma credibilidade internacional para liderar esta agenda que, por sua vez, vai ser muito útil para toda essa aposta no desenvolvimento económico e social.
O governo criou a task force do mar com oito grupos de trabalho e, este mês, ficou de apresentar um documento. O que espera daí?
Não quero antecipar-me, mas dizer que considerámos isso um ato muito importante, porque o governo tomou posse e o ministro tomou essa decisão de criar a task force. Sei que existem muitos parceiros ligados à economia do mar em Portugal que estão a trabalhar nos vários segmentos de uma economia do mar. Também na Fundação Oceano Azul contribuímos para esse passo porque somos membros da task force, principalmente na área onde temos desenvolvido trabalho e investido com a Fundação Calouste Gulbenkian, que é a área da bioeconomia azul assente na biotecnologia. Portugal tem uma vantagem competitiva comparativa muito importante, uma vez que esta área da biotecnologia azul tem como matéria-prima a biodiversidade marinha de que somos o número um na Europa. Tendo essa matéria-prima, tendo um investimento público muito grande nos últimos 25 anos nos centros de investigação do mar em Portugal, houve um grande desenvolvimento na ciência, dos doutoramentos e dos mestrados, é importantíssimo que se consiga mobilizar esse conhecimento para o mercado e que toda essa qualificação possa traduzir-se num setor de valor acrescentado que aumente a produtividade da economia portuguesa.
Está preocupado no que toca à execução do PRR até 2026?
Não, devo dizer que temos estado muito em cima dessa questão, não só a Fundação Oceano Azul, mas também apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo próprio grupo fundador da Fundação Oceano Azul. Todos em conjunto estamos a responder para que se possa, em termos das agendas mobilizadoras, haver aqui a possibilidade desta opção por uma área de desenvolvimento de ponta. Por exemplo, os clusters de biotecnologia que existem noutros países, como nos Estados Unidos, tudo isso nos mostra que, se seguirmos esse caminho, Portugal pode encontrar aqui um novo setor altamente estruturante para a economia portuguesa. E por causa do imenso mar que nos rodeia, temos uma vantagem competitiva comparativa muito grande. Na economia azul de que fala, outra área importante é a do talento.
Que impacto pode ter esta aposta no mar ao nível da criação de emprego em Portugal e até de novas profissões?
Não tenho dúvidas nenhumas de que as novas profissões vão chegar. Se pensarmos que as algas vão ser uma das principais commodities do século XXI, vão ter um grande impacto, porque ajudam a descarbonizar o oceano.
E as algas podem entrar na transição para as dietas verdes de que falava há pouco?
Determinantemente. As algas serão uma componente muito importante dessas dietas verdes e as proteínas de origem marinha, altamente positivas para a nossa saúde, e poderemos aí encontrar uma proteína muito importante. Para as algas, ao contrário de para a agricultura, não vamos gastar água doce, conseguimos tirar carbono do oceano e reduzimos o impacto da acidificação e, por outro lado, conseguimos alimentar as pessoas e contribuir para esta segurança alimentar. Este é outro dos grandes desafios, uma vez que daqui até 2050 vamos precisar de alimentar mais dois mil milhões de pessoas. E se quisermos alimentar essas pessoas com a agricultura tradicional que é extremamente carbonizante, não vamos conseguir cumprir com o Tratado de Paris. Desta inovação toda virão, então, novas profissões e nova criação de emprego em Portugal.
Tem alguma estimativa?
Ninguém tem essa estimativa, o que tenho é algumas estimativas da área da bioeconomia azul. Esse setor que é de elevadíssimo teor científico e tecnológico porque assenta, no fundo, em passar a biotecnologia azul que já existe em Portugal à escala laboratorial, para uma escala industrial. Isto poderá corresponder em Portugal, se forem feitos os investimentos necessários e seguindo o exemplo de outros clusters. Dou o exemplo da Nova Zelândia que tem uma população semelhante à portuguesa, mas muito mais periférico do que Portugal, mas este mercado da bioeconomia azul é um mercado global. Este mercado da bio economia azul é um mercado global, que nunca seria o mercado português porque estamos a falar de biotecnologia, e nesse mercado a Nova Zelândia tem uma quota de mercado, por exemplo, no agri-tech, o setor da tecnologia agrícola, de 9 a 11% da quota mundial. Se Portugal conseguir chegar a uma quota até 5%, tendo nós a matéria-prima e o investimento público nos cientistas, julgo que poderíamos estar aqui a falar em criar aqui um valor entre 10 a 14 mil milhões de euros, que será um valor acrescentado direto para a economia portuguesa de até 4 mil milhões, o que significa 3% do PIB nacional. Só no setor da economia azul podemos estar aqui a perspetivar uma transformação muito sedutora.
Muito se tem falado dos parques eólicos flutuantes e o rosto dessa aposta em Portugal tem sido o WindFloat. O que é preciso fazer mais para termos mais projetos como este?
Essa é uma pergunta muito importante porque essa é uma das áreas que acho que podem ser determinantes para mudar Portugal como país. Somos um país que temos, desde a Revolução Industrial, um crónico défice da nossa balança de pagamentos energética porque não temos carvão e, com a Revolução Industrial e com o carvão para a máquina a vapor, deixámos de arriscar em termos energéticos. Depois veio o motor a explosão e o petróleo, e continuámos a não arriscar. Ou seja, Portugal ficou à margem da revolução energética dos últimos 200 anos, e isso traduziu-se muito neste enorme atraso relativamente a outros países.
Temos procurado passar estes últimos 200 anos, dez gerações de portugueses, a acompanhar o passo dos países mais desenvolvidos da economia ocidental, sem verdadeiramente nunca o termos conseguido. E isso é algo que nos deve verdadeiramente mobilizar para pensar que no século XXI não vai ser dessa maneira. O que é fundamental é conseguirmos encontrar um novo modelo de desenvolvimento económico, que vá ao encontro dos desafios económicos do século XXI, incluindo este da transição para a economia verde e da descarbonização, onde sejamos um player e possamos tirar partido dos nossos fatores competitivos comparativos, onde a geografia, o mar, a biodiversidade, e tudo aquilo que eu disse são, seguramente, alguns deles. Em função disso, diria que seria fundamental, na área da energia, compreender que aí temos uma cartada fundamental, até pelo que disse que foi o WindFloat. Portugal foi pioneiro em termos de tecnologia mundial, a conseguir criar uma turbina a produzir 2 megawatts de energia - uma enorme turbina - em cima de uma plataforma flutuante, que não está, ela própria, alicerçada no leito marinho, mas que está apenas amarrada por cabos ao leito marinho. Isso é extraordinário do ponto de vista do avanço da tecnologia eólica offshore foi um passo fundamental. Infelizmente, isso já aconteceu há bastantes anos e nós não conseguimos ainda, até agora, tirar partido comercial dessa tecnologia.
Portugal, que provou ao mundo que consegue extrair, na costa portuguesa, cinco mil horas de vento, e não as três mil que teríamos em terra, onde há uma enorme economia de escala porque estamos a falar de 5 mil horas de vento, ou seja, o vento azul é melhor que o vento verde. Se pudermos explorar isto, e julgo que o governo está a pensar nisso em termos de leilões para a área do offshore, da eólica offshore flutuante, Portugal poderá deixar de ter essa crónica balança de pagamentos no setor da energia, podemos tornar-nos um país exportador de energia, e isso teria grandes impactos.
Deixe-me dizer-lhe duas ou três coisas que me parecem fundamentais para além das cinco mil horas de vento. Está provado, do ponto de vista tecnológico, que podemos construir turbinas no mar até 10 megawatts. Essas turbinas são impossíveis em terra devido ao impacto do ruído e de tudo aquilo que é visual. Ou seja, temos outra economia de escala, não apenas na quantidade de vento, mas na tecnologia da turbina que permite produzir mais energia. Depois, Portugal tem quase 70% da sua população, da sua indústria, do seu comércio, da sua economia e dos seus consumidores nas zonas costeiras. Ora, se explorarmos o vento offshore poderemos estar mais próximos desse mercado. Mesmo do que alguns parques onshore que temos no país, em zonas mais periféricas do território. Há aqui uma proximidade que me parece muito importante. Isto seria uma oportunidade muito importante para muitas indústrias portuguesas, como a metalomecânica, que é uma das principais indústrias exportadoras e que poderia beneficiar da instalação de um grande cluster de energia eólica offshore flutuante no nosso país.
Na sua opinião, porque é que o processo tem sido tão lento? O que tem falhado para estarmos há anos a falar do mesmo Windfloat e não se avance mais?
Acho que nestes anos todos que passaram não houve ainda a vontade de criar as condições competitivas comparativas, através das tarifas, mas também através de outras condições que têm que ser impostas para atrair o investimento estrangeiro. Diria que, com situações como a que estamos a viver, com necessidade de aumentar a segurança energética da Europa por causa da guerra na Ucrânia, vai aumentar a apetência. Não sei se há alguns anos atrás haveria investidores estrangeiros que quisessem investir milhares de milhões de euros em grandes parques eólicos fotovoltaicos flutuantes. Eles já investem nas bacias menos profundas do Mar do Norte e do Mar Báltico, mas não tenho dúvidas nenhumas de que neste momento há interessados noutros países com maiores recursos financeiros para investir também aqui. Mas o que é fundamental é que agora aproveitemos esta oportunidade.
Pode vir não só do vento mas também da energia das ondas parte da independência energética de Portugal e da Europa?
Quando falamos em energias renováveis offshore - ondas, marés, correntes -, isto vem sempre à baila. Mas temos, nós portugueses, que ser muito pragmáticos. Recordo-me quando estava a coordenar a Comissão Portuguesa dos Oceanos, entre 2003 e 2004, que na altura havia um grande projeto que esteve a ser montado em Portugal, na costa portuguesa, que era o Projeto Pelamis. Uma espécie de uma serpente oscilante que captava energia das ondas e que era um projeto de ponta desenvolvido por uma organização escocesa, e o que é certo é que 20 anos depois, o projeto Pelamis não está em lado nenhum. Ou seja, a tecnologia para as outras energias não é a energia eólica, offshore. Neste caso, para Portugal, e dado que temos uma bacia muito profunda flutuante, não está madura. E, portanto, não devíamos estar a investir nessas energias que não estão maduras. Neste momento, acho que era fundamental para o país compreender que o importante era criar as condições para atrair investimento estrangeiro que criasse grandes parques eólicos offshore neste imenso mar português, e que permitissem até associar aquacultura, nomeadamente de algas e de bivalves, a essas estruturas. O mar português é um mar com uma hidrodinâmica muito acentuada, ou seja, é um mar muito agitado, é um oceano profundo e, como tal, se pudéssemos construir estruturas que nos ajudem a ocupar esse espaço, isso seria extremamente válido para toda a economia do mar. Através das algas e dos bivalves poderíamos criar essas estruturas e contribuir para a segurança alimentar de mais de dois mil milhões de pessoas. Poderíamos quase pensar em projetar um cluster submarino para a Europa, no mar português, associado à energia eólica flutuante e, portanto, as estruturas seriam dois-em-um, e permitiriam enormes ganhos de economia.
E no que toca à extensão da Plataforma Continental, cuja proposta foi entregue nas Nações Unidas, que importância real tem? Como é que pode ajudar?
Foi apresentada e inscrito o dossiê em 2009, imagine. E foi defendida em 2010. Ou seja, o que existe, e nesse dossiê teve um papel muito importante o Comandante Pinto de Abreu, que depois também teve funções governativas mais tarde, e com esse trabalho Portugal colocou-se na linha da frente dos países que procuram delimitar a sua plataforma continental de acordo com as regras jurídicas da Convenção de Direito do Mar das Nações Unidas. O que acontece é que, até hoje, não foi tomada nenhuma decisão sobre o caso português, como não foi sobre o caso de outros países, porque existem muitos países nessa linha e, como tal, não temos ainda uma resposta.
Temos conseguido ter sucessivas eleições de candidatos portugueses para essa comissão de limitação da plataforma continental das Nações Unidas. Ainda há pouco mais de um mês foi reeleito o Comandante Aldino Campos, que é o único português nessa comissão, e congratulamo-nos por isso.
Somos um dos maiores países do mundo em área marinha e que juntamente com a Noruega somos seguramente um dos dois gigantes da Europa, que nos interessa ser responsáveis pelo leito marinho, pelos fundos marinhos, de uma área que vai muito para além da área da Zona Económica Exclusiva Portuguesa. Até por uma razão, que será fundamental também. Falámos há pouco sobre os oceanos e as alterações climáticas e falámos no capital natural. O capital natural irá ter seguramente alguns serviços ecossistémicos que a natureza nos dá e sem os quais as nossas economias não podem funcionar, como a água potável, mas hoje em dia, também cada vez mais o carbono.
Que é absorvido pelos oceanos.
Sabemos que o armazenamento de carbono é essencial para vencermos esta luta contra as alterações climáticas, para mantermos a temperatura até ao final do século num grau e meio. Isso significa que o carbono, e o carbono azul, que é uma forte componente do carbono, há mais carbono azul no mar do que carbono verde nas florestas, e esse carbono azul irá ser uma das moedas do futuro.
Hoje há muitas entidades financeiras internacionais que dizem que a água potável vai ser uma das moedas do futuro. Toda a gente consegue perspetivar isso, do ponto de vista da escassez em muitas áreas, da desertificação. O carbono também o será seguramente e Portugal é riquíssimo a armazenar carbono. Grande parte do carbono azul está, não só, nos ecossistemas costeiros, nos sapais, nas zonas húmidas aqui nos estuários dos rios, como também está nas zonas tropicais, nos chamados mangais, mas está nos sedimentos do fundo do mar. É lá que se encontra uma grande parte. Ou seja, seria extraordinariamente importante para Portugal que, com a delimitação da plataforma continental, tivéssemos uma área que pertence judicialmente a Portugal e à economia portuguesa, onde essa nova moeda do futuro, que é o carbono azul, ficasse salvaguardada.
Última pergunta, e num minuto final, fazendo aqui uma viagem na história, até à Expo 98 da qual se diz que foi um marco na viragem para o Oceano, mas quase 25 anos depois, e olhando para trás, pergunto se foi mesmo ou se precisaríamos de uma outra Expo virada para os oceanos?
(Risos...) Espero que esta Conferência dos Oceanos, não sendo uma Expo, contribua um bocadinho para irmos na direção certa. A Expo 98 teve um papel fundamental para desbloquear um pouco a questão dos oceanos na sociedade portuguesa, que via os oceanos como um sinónimo do império português, que foi de alguma forma metido na gaveta pelos anti-imperialistas que fizeram o 25 de Abril de 1974, com toda a justeza nessa altura. Ou seja, como o Estado Novo usava os oceanos muito na sua propaganda do "Orgulhosamente sós", e da contiguidade continental aos territórios ultramarinos, de alguma maneira, toda essa propaganda das caravelas, dos heróis do mar, dos navegadores, foi para dentro dessa gaveta e, por isso, durante décadas, a nossa república democrática contemporânea ignorou a geografia portuguesa. E lamentámo-nos da nossa periferia relativamente a Bruxelas, de sermos juntamente com Helsínquia e Atenas, a capital mais distante do centro do coração da União Europeia. Julgo que a Expo 98 veio quebrar um bocadinho com essa estética do Estado Novo porque apresentou os oceanos ligados à ciência, ao futuro, ao bem-estar e ao desenvolvimento. E isso foi fantástico. Essa Expo e essa estética desbloqueou um bocadinho os oceanos na sociedade portuguesa. Acho que sem a Expo 98 se calhar não teria havido uma comissão estratégica dos oceanos, que colocou verdadeiramente os oceanos no plano político, e depois não teria havido as estratégias do mar, já houve três, e não teria havido um presidente como Aníbal Cavaco Silva que fez dos oceanos uma das principais bandeiras do seu segundo mandato, das suas visitas de Estado, falando, inclusivamente, deste tema num discurso do 25 de abril, porque estes temas não entravam nessa ordem de prioridades. Gosto de dizer que a Expo 98 que gerou o Oceanário de Lisboa, que hoje é uma concessão da Fundação Oceano Azul, com toda a sua biodiversidade é, para o século XXI, o que a Torre de Belém foi para Portugal no século XVII e seguintes.