A espantosa realidade das coisas

“A espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias”
No magazine semanal de Fernando Alves, o sociólogo Paulo Pedroso observa a superfície e o fundo dos grandes temas da sociedade global. A investigadora Rita Figueiras promove a literacia da comunicação política. E a repórter Teresa Dias Mendes regista sinais fortes dos dias que passam.
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O faroleiro Candeias e o filósofo que acredita que o isolamento pode ser um ato de liberdade

Quem passa os dias fechado no farol das Berlengas saberá melhor que os demais o que significa o isolamento? E conseguirá a filosofia explicar-nos este conceito de que já tínhamos ouvido falar, mas que agora experienciamos como nunca havíamos experimentado?

Um filósofo e um faroleiro conhecem bem, por razões distintas, o significado da palavra isolamento. E de liberdade. Serão as duas palavras siamesas? O diretor do departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa discorre sobre a importância da consciência do tempo e os impactos que uma pandemia pode ter no quotidiano.

Já Ernesto Candeias, faroleiro de primeira classe, transporta-nos até às Berlengas, onde em, plena pneumónica, o escritor Raul Brandão encontrou um faroleiro que, queixando-se do isolamento, resumia: "Sou um náufrago." Cem anos depois, fomos saber o que mudou na ilha e perguntámos ao faroleiro Ernesto Candeias se nestes dias de pandemia está mais seguro na Ilha.

O especialista em filosofia antiga António Pedro Mesquita mostra-se prudente quanto aos impactos que a crise pode ter no funcionamento da sociedade, mas felicita o regresso do conhecimento científico e da lentidão como chave da reflexão.

Uma conversa entre o jornalista Fernando Alves e António Pedro Mesquita, diretor do departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com uma afirmação de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, em jeito de pergunta.

"A liberdade é a possibilidade do isolamento." Podem a liberdade e o isolamento ser siameses?

A pergunta é pertinente. Normalmente estamos inclinados a pensar o contrário. Ou seja, que o isolamento é o resultado de uma privação da liberdade. No sentido em que a frase está concebida, julgo que a perspetiva de que o isolamento e a liberdade podem ser siameses.

Quando o isolamento é uma escolha livre?

Exatamente. Mas também quando é resultado da libertação da pressão que os outros podem exercer sobre nós.

Muitos acreditam que esta crise pode abrir novas janelas de criatividade, ajudando até a repensar, porventura, modelos caducos de funcionamento da sociedade em que vivemos. Partilha esta convicção?

Eu gostava de poder partilhar. Mas, neste momento, não estou seguro de pensar dessa maneira. Como esta situação implica um grau de sofrimento variável para todos nós, julgo que todos gostávamos de pensar que daqui vai resultar qualquer coisa nova e desejavelmente melhor.

Não tenho a certeza se uma experiência que tem uma duração relativamente reduzida como é a nossa terá como consequência alterações com alguma relevância na nossa maneira de ser e de nos comportarmos.

A evolução é um processo muito lento e julgo que, por drástica que a situação que estamos a viver seja, ela possa acabar por ter como consequência alterações relevantes na nossa maneira de viver e de nos comportamos uns em relação aos outros.

Provavelmente, passado algum tempo tudo voltará a ser muito semelhante ao que era antes desta crise.

Nessa altura, teremos perdido uma excelente oportunidade de virar tudo do avesso?

Pode ser que sim. O que não quer dizer que não existam riscos envolvidos. Julgo que riscos, de variada ordem, poderá haver. Mas alterações espontâneas no comportamento temo que não.

Numa entrevista muito recente, Edgar Morin observou que o vírus ajudou a redescobrir a importância da lentidão como chave de reflexão e de compreensão do mundo. Também acredita como o filósofo francês, que já vai nos 98 anos, que estamos a apropriarmo-nos do tempo com uma consciência da sua importância?

Sim. Julgo que sim. Parece-me uma ótima observação e subscrevo inteiramente. Isto não significa, do meu ponto de vista, que quando paulatinamente recuperarmos aquilo a que chamávamos a vida normal, essa re-consciencialização do tempo não se perca novamente e não sejamos outra vez submergidos na voracidade das nossas vidas quotidianas.

Quando começou a pandemia, o escritor espanhol Antonio Muñoz Molina escreveu no El País um texto notável a que chama o regresso do conhecimento. "Pela primeira vez desde que temos memória. Prevalecem as vozes das pessoas que sabem e dos profissionais qualificados e com coragem." Também reconheceu, no meio de tanto sofrimento e angústia, esta requalificação, esta celebração do conhecimento?

Infelizmente não a podemos generalizar à escala mundial. Há algumas exceções, que seriam caricatas se não fossem tão tristes e tão perigosas, como é o caso do Brasil, um país com o qual temos tantas relações simbólicas e reais.

No Brasil, o exercício máximo do poder é desempenhado por alguém que nega expressamente esse lugar, que não tem que ser absolutamente cimeiro numa hierarquia, mas que é o lugar do conhecimento, nomeadamente do conhecimento científico.

O que nos chega do Brasil é uma espécie de Teatro do Absurdo em episódios diários?

É mais ou menos isso.

No texto que referi há pouco, Antonio Muñoz Molina sublinha também o facto de nos programas de televisão, onde até agora reinava o que ele chama charlatão especializado em opinar sobre o que quer que fosse, aparecerem agora cientistas ou profissionais qualificados que enfrentam continuamente a doença. Acredita que a aposta na solidez do conhecimento vai vingar passada esta crise?

É difícil. Isso é pura futurologia. Julgo que ainda não há elementos para saber isso. Em todo o caso, julgo também que é tranquilizador pensar que as pessoas, na generalidade dos países, estão dispostas a escutar com toda a atenção e a acatar aquelas que são as orientações das pessoas que têm conhecimentos. Pessoas que não têm apenas opiniões. Naturalmente que é importante ter opiniões, mas estas devem ser fundadas na melhor informação possível.

Uma vez que não podemos ter todos todo o conhecimento sobre todas as coisas é importante que saibamos respeitar o conhecimento especializado que certas pessoas têm. Parece-me que espontaneamente as pessoas têm aceitado isso. Isto é válido para a população em geral e para os governantes. Na generalidade dos países, os Governos têm sabido escutar aquilo que os especialistas têm a dizer, acatando as orientações.

Também temos visto que nos casos em que isso não acontece o resultado pode ser catastrófico. Como por exemplo nos Estados Unidos.

Posso presumir que a pandemia condicionou as suas reflexões e leituras, podendo até motivar um próximo ensaio filosófico ou alguma iniciativa do Departamento de Filosofia que dirige na Faculdade de Letras?

Ainda não sei. Veremos. Seguramente esse é um assunto que os meus colegas que trabalham em filosofia política, em ética, aquilo a que chamamos filosofia prática, o que não é exatamente o meu caso, terão seguramente muita matéria para reflexão.

"Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma abóbora... Os coelhos devoram tudo. É uma praga!" Dizia o faroleiro das Berlengas a Raul Brandão, em agosto de 1919.

A Covid-19 ainda não chegou às Berlengas, mas as comunicações já são melhores e permitiram a Fernando Alves conversar com o faroleiro de primeira Ernesto Candeias, para saber se, durante a pandemia, ele se sente mais seguro na ilha.

Habituado a viver em isolamento, Ernesto Candeias não vê a família há mais de um mês e conta com a Rádio para ajudar a preencher os dias na ilha em que "não há nada", já nem coelhos por lá se encontram.

Nestes dias de Covid-19, sente-se mais seguro na ilha?

Temos o suficiente para nos sentirmos seguros. Mantemos as distâncias e fazemos tudo como estivéssemos em terra.

Quando diz que mantêm as distâncias, está a dizer-me que são vários na ilha?

Há uma altura do ano em que estamos apenas os dois faroleiros. A Autoridade Marítima está presente durante todo o ano, há sempre dois faroleiros. A rendição é feita, quando o mar permite, à terça-feira. Por causa da pandemia, as pessoas correram aos supermercados. Nós fazemos isso durante todo o ano, uma vez que na ilha não há supermercado, nem cafés. Não há nada.

Para lá dos faroleiros, quantas pessoas, por exemplo pescadores, se mantêm episodicamente na ilha?

Durante o inverno, há quatro ou cinco que esporadicamente pernoitam na ilha.

Como é que o senhor e o outro faroleiro que está consigo mantêm o distanciamento social?

Mantemos sempre a distância, mesmo nas refeições. Temos de cozinhar todo o ano. É assim também nas datas festivas como o ano novo, no Natal, no Carnaval, na Páscoa. Já estamos habituados a cumprir o isolamento mais do que as pessoas comuns.

Qual é a rotina de um faroleiro numa ilha sem gente? O dia é tão longo. O que é que fazem ao longo do dia?

Quando fazemos a travessia a partir de Peniche tem de haver um pouco de destreza física, porque o mar por vezes está um pouco agitado e temos de pôr as nossas coisas no cais, tirar as coisas dos nossos camaradas para cima da embarcação. Quando o barco parte para Peniche ficamos a olhar um para o outro e dizemos: "Cá estamos nós mais uma vez sozinhos."

Depois, temos uma rotina, mais ou menos programada, e vai funcionando tudo dentro da normalidade. Por exemplo, a manutenção das instalações. Temos baterias e painéis solares que nos fornecem eletricidade, a nós e ao farol, também temos as cisternas com água, porque nas Berlengas não há água canalizada e nós temos de tratar dos reservatórios de água.

Ainda assim sobra muito tempo, seguramente. Como é que ocupa o seu tempo quando o farol não requer a sua atenção?

Há camaradas que quando chegam nem sabem estrelar um ovo e quando acaba a comissão já são bons cozinheiros. Saber cozinhar é fundamental. Há a tradição dos faroleiros das Berlengas irem à pesca. Por vezes, pescamos um peixinho ou outro para o almoço. Depois, uns leem um livro, outros pintam. Há sempre uma forma de passarmos o tempo.

A parte mais dolorosa de estarmos na ilha é a família. Estamos a sete milhas de terra, olhamos para lá e dizemos: "Estamos aqui presos." Já estamos preparados para o isolamento. Desde o dia 3 de março que não vejo a minha família.

Hoje em dia, já temos internet na ilha, mas quando vim para cá, em 2007, tínhamos um telefone fixo, anotávamos os períodos e tínhamos de ter cuidado para não pagarmos muito dinheiro no final do mês. Hoje as comunicações estão muito mais avançadas e podemos falar mais tempo ao telefone com os amigos e família.

Também utilizo muito a Rádio. A Rádio ajuda-me a passar o tempo, é uma das formas que tenho para ultrapassar muitos obstáculos.

Ainda é possível apanhar coelhos à mão como aconteceu a um faroleiro há cem anos, quando aí foi visitado pelo escritor Raul Brandão?

Durante a minha primeira comissão ainda dava para fazermos um coelho frito de vez em quando. Porque até o cão apanhava, de vez em quando, e trazia-nos o coelho à porta.

Mas já não há coelhos?

Os serviços sanitários exterminaram os coelhos e os ratos. Hoje, já não há coelhos nem ratos na ilha.

Então que bichos restam? As gaivotas?

As gaivotas, as lagartixas, as cagarras. Há uma grande variedade de aves.

Para apanhar peixe, ainda basta uma linha lançada à água ou é preciso fazerem-se ao mar?

Estes faroleiros mais novos já não gostam muito de pescar. Já não são os ditos faroleiros/pescadores. Os mais antigos sim eram bons pescadores. Mas basta uma pequena cana para apanhar um sargo ou dois.

A ilha da Berlenga ainda é uma descoberta diária para si? Ainda se surpreende ou já não tem novidade?

Para mim, já não tem muita novidade. Estive aqui a contar as semanas e no total já tenho mais de dois anos de isolamento na ilha. Portanto, penso que já conheço todos os recantos da ilha.

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