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O homem estava tranquilo, não tremia, nem se lhe embargava a voz, ao relatar o acontecido. "Há tanto tempo", dizia ele, que consumia haxixe com regularidade, que nada tinha a temer. Naquele dia, por volta da hora do almoço, foi apanhado pela GNR da localidade com a droga no bolso. Continuou tranquilo, na simplicidade e na candura de quem sabe que não fez nada de mal. Ele tinha sido jovem na década de 1980, aquilo de ter "aquilo" no bolso era normal. Na verdade, ele parecia ainda não ter saído daqueles anos. Apresentava-se impecável, com o colete por cima da t-shirt, cabelo comprido, e falava do caso com um sorriso que não era nem malandro, nem trocista, nem irónico. Era mesmo assim, genuíno. Estava ele a contar a estória do que lhe tinha acontecido, ou melhor, do que a GNR queria que lhe acontecesse, tal qual como foi, sem adjetivos, sem tentativas de enganar ninguém ou de enfeitar a narrativa. Foi assim, e pronto. A GNR, quando deu com a droga, perguntou-lhe se era para consumo próprio. Ele disse que sim, sem pestanejar nem fazer qualquer trejeito nervoso. A pergunta nem fazia sentido: haveria de ser para quem? Se ele fumava daquilo desde a década de 1980, fazia parte da existência, ali na freguesia não havia tráfico, nem consumidores daquilo, pelo menos que ele soubesse. O haxixe era mesmo dele e claro que era para consumo próprio.
O homem que não podia ir preso
Até parece que estou a ouvir o militar da GNR.
"- O senhor vai ter de nos acompanhar ao posto."
E ele encolheu os ombros, sem levantar a voz, sem mudar o tom, sem retirar o sorriso inocente e tranquilo, e respondeu:
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"- Mas eu agora não posso ir preso, tem de ligar ao presidente da junta, porque há um funeral às duas e meia e eu tenho de enterrar o morto."
O guarda ficou em silêncio, ficou a pensar naquilo tudo. Na verdade, não há funeral sem coveiro. O morto e os familiares não se ralam se o coveiro fuma haxixe ou não, e o homem tinha mais do que fazer, dali a nada eram duas e meia da tarde, o morto por sepultar, o presidente da junta até podia nem atender o telefone à guarda...
Ele, por ele, não se importava nada de "acompanhar" as autoridades até ao posto, mas a obrigação, o trabalho, o compromisso com os mortos, ele tinha esse sentido de missão. E não havia mais ninguém na freguesia habilitado a fazer o serviço. Ainda se fosse noutro dia, em que não houvesse funeral, ainda vá, ele ia ao posto sem problema nenhum, só para dar o nome e dizer outra vez que era "para consumo próprio". Mas assim? E, francamente, se era para consumo próprio e se aquilo era uma rotina desde os anos 1980, onde é que estava o caso?