Levante-se o Réu

Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. São relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide. Às sextas, depois das 18h30.

A cara da máscara

Imagino que todos tenham imaginado - eu, pelo menos, pensei - nas virtualidades criminais do confinamento Covid. Isto é, também, do distanciamento mínimo de segurança nas ruas e transportes, do medo do contágio e do uso obrigatório da máscara higiénica para, enfim, uma salutar prática do crime. É possível medir o papel das máscaras anti-covid em actividades contra a lei?, eis o que gostava de saber.

Foram semanas, meses, anos com a cara coberta de papel azul cueca, ou das mais excêntricas invenções de pano, padrão escocês, preto-discoteca, amarelo dourado, texturas sedosas, tecidos grosseiros, máscaras desenhadas com bocas que escondiam a boca verdadeira, só os olhinhos de fora, só o medo espiando o ar carregado de vírus de morte. Adultos e crianças, solteiros e casados, polícias e ladrões, honestos e criminosos, todos de cara

escondida. Ainda há dias fui à despensa procurar o martelo e caiu-me em cima da cabeça um conjunto de máscaras de tecido que foram, durante a negra noite das tosses mundiais, o ganha-pão de uma amiga com talento para a costura.

Foi por isso clarificadora a resposta daquele rapaz no tribunal. O réu nem sequer aparecera. Rúben veio como testemunha e perguntaram-lhe:

- O senhor sabe porque é que está aqui hoje?

- Não. Eu até agradecia que me dissessem...

Houve uma altura em que, no tribunal, eu tinha que adivinhar que narinas, que boca, que queixo se escondiam numa voz. Mas agora que - pelo menos por enquanto -, quase ninguém é obrigado a usar máscara, a cara do rapaz mostrava-se de acordo com a apresentação: simples, directo, batatudo como o nariz.

- Eu trabalho na entrega de pizzas e de comida, disse ele.

A procuradora entrou na matéria: recordava-se Rúben de uma situação em que um outro rapaz foi detido por "alegada prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade", isto é, de uma situação em que, em plena rua do Lumiar, tinha sido interpelado ao comprar droga?

- Eu lembro que a polícia me levou uma vez para a esquadra porque eu tinha comigo uma tira de haxixe. Foi em 2020 ou

2021, não sei. Eu "tava numa pista de skate em frente ao Continente no Lumiar e comprei uma tira para fumar.

- Era o quê?

- Era ganza que eu tinha comprado.

- Ganza... não sabe dizer que tipo?

- Era haxixe.

- Foi a casa de alguém comprar?

- Foi na rua, mesmo.

O tribunal surpreendia-se com a candura. Era inegável que tinham chamado Rúben para ir ali, com a solenidade de uma carta cheia de avisos - se não vier, está sujeito a isto e a aquilo - mas o que se via é que Rúben não via qualquer mal na sua história.

- Eu estava na rua, sozinho, um senhor ofereceu o produto, comprei e fui embora.

- Quanto pagou?

- Cinco euros. Porque eu estava à procura.

- O senhor foi lá precisamente para comprar?

- Eu fui lá procurar, um senhor chamou-me, eu desci e comprei. Eu só dei cinco euros e ele me deu-me a tira.

- Não estava mais ninguém?

- Não...

Foi então que Rúben se vingou daquela manhã no tribunal, totalmente perdida para a entrega de pizzas. Quem seria esse vendedor de droga, era capaz de dizer?

- Eu não disse quem era e ele não disse quem era. Até porque estava com touca e máscara, havia Covid e na época todos estavam de máscara.

Satisfeitos? E lá saiu sem máscaras, este Rúben.

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia

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