Levante-se o Réu

Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. São relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide. Às sextas, depois das 18h30.

A mãe e a filha

Na minha juventude, tive um casal de vizinhos que um dia, não se percebeu como, fez um filho. Fê-lo num intervalo das gritarias e das louças partidas, mas fê-lo como deve ser: no posto de enfermagem, no dia da primeira vacina, quando viu a agulha, repetiu três vezes a primeira palavra que aprendeu na vida: "meda, meda, meda!" Há-de ter aprendido mais palavras, como eu as ouvia, estridentes palavrões que atravessavam o prédio, o telhado, e subiam no céu azul do Alentejo, rumo ao vapor branco dos traços dos aviões transcontinentais.

Há um homem no banco das testemunhas. Estou, agora, num tribunal de Lisboa, 40 e tal anos depois, a lembrar-me do 1º esq. do nosso prédio. O homem fala com calma. O empreiteiro que fez obras na casa para onde ia viver com a mulher e a bebé, disse-lhe a meio das remodelações:

- O senhor teve azar com o sítio onde comprou a casa...

De que falava o empreiteiro? Não da qualidade de construção do prédio, não directamente, as escadas não iam ruir, nem o telhado metia água. Mas sofria, por assim dizer, de graves infiltrações de ruídos da casa da vizinha. No entanto, foi viver para lá.

- Tivemos de mudar a nossa filha de quarto, porque não conseguia dormir.

- Estas expressões seriam dirigidas da filha à mãe, ou seria a filha consigo própria, num estado mais alterado?, perguntaram-lhe.

- Eu diria que era assim de forma mais generalizada, suspirou o homem. As frases que mais retive foi: "Andam atrás de mim, querem-me tramar, assassinos!"

Depois, colocou um olhar filosófico. A certa altura começara a registar num caderno o que ouvia, os insultos, as ameaças. Não era difícil: todos os dias mais ou menos à mesma hora e durante mais ou menos uma hora. Por exemplo, esta noite a filha berrou à mãe: "Não prestas!" O homem tentava, imagino, ser o mais objectivo num mundo de sensações que são, apesar de tudo, resultado da realidade concreta, talvez a única que exista. A não ser que tudo isto, o Sol, a Lua, o Universo, as pessoas, o amor, sejam só engano e ilusão. Nesse caso, a atitude do homem seria apenas ironia e cansaço. Disse ele:

- Eu acho que a filha, quando gritava isso... assassinos, querem-me matar... se estava a reportar à Humanidade.

Ainda não vos falei da filha, silenciosa no banco dos réus. Parecia uma vara vergada à força, pronta a libertar-se como uma mola, os tacões nervosos no chão, o cabelo empastado e furioso por cima dos olhos. A filha escutava o vizinho, a testemunha de acusação, que contou a única conversa que tiveram nas escadas:

- "Anda-me a tramar, a fazer queixas de mim, a meter-se na minha vida!" Tanto, que lhe respondi: "Minha senhora, de mim só pode esperar mais uma coisa: a verdade."

Veio depois um polícia, que lembrou as muitas vezes em que foi chamado ao prédio sem nunca perceber os motivos da discussão.

- Não, até porque há uma grande constância. A minha impressão é que não era preciso motivo.

Veio ainda uma mulher polícia que, ao entrar, descobriu que a casa estava destruída, de pernas para o ar. A única divisão intacta era o quarto da mãe, mas como era velhota já com 90 anos, não conseguia fazer mais. Uma vez, em frente da filha, a senhora disse que queria desistir do procedimento criminal.

- Mas quando entrou no carro, desatou a chorar. Tinha medo da filha. Eu fiquei impressionada, disse a polícia.

A discussão começara, parece, por causa de um estore. Gritos rasgando paredes de papel e uma velha senhora na sua opaca e

feroz solidão. E penso agora em tudo o que aconteceu no confinamento, alguns casos vou vendo e conto-vos aqui.

Mas o que será feito do meu vizinho bebé, que palavras usará com os filhos dele?

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia

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