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As gaivotas insolentes do Douro já rondavam a janela do tribunal de São João Novo. Queriam escutar tudo, como eu. O caso era forte e o juiz-presidente tinha o perfeito espírito do Porto:
- Tenho aqui uma testemunha que diz que está para Lisboa e que não pode vir, uma explicação que, enfim, nunca tinha ouvido, só faltou dizer-nos: eu tive de ir ao café...
Belo caso, este. Às três da manhã da passagem de ano de 2021 para 22, na Rua da Alegria, cinco rapazes quase mataram o senhor Gabriel a pontapé, golpes de extintor na cabeça e oito facadas nas costas. Ele pensou que ia morrer à frente da filha pequena e da mulher, a filha pensou que o pai ia morrer. Estavam a fazer barulho na rua, mandavam insultos para as janelas, e Gabriel desceu com um taco de basebol para os mandar embora. Levou com um extintor na cabeça e na cara, foi pontapeado e esfaqueado no chão, de nariz e maxilar partidos. Gonçalo, que tinha então 17 anos, deu as facadas. Os outros manietavam Gabriel, ele saltou várias vezes e furou-o. Gonçalo, branco como leite, é o primeiro réu. No tornozelo, uma pulseira electrónica.
Facadas nas costas do Porto
- Queria começar por pedir desculpa ao senhor Gabriel pelo incidente... Acidente... Eu nunca quis isto, nunca quis isto para a minha vida, queria lutar por uma vida, ir estudar!...
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A advogada ajudou-o:
- Ele está muito nervoso. É confissão integral e sem reservas.
- Estava em casa, continuou Gonçalo, não estava bem psicologicamente, eu tinha problemas com a minha ex-namorada. Fui para outra festa, estava alcoolizado.
E continuou: Gabriel desceu com um taco, deu com o taco no carro do colega. Foi em direcção ao irmão e foi aí que ele...
- Foi aí que eu apaguei e, depois disso acontecer, parece que a minha vida acabou completamente, como é que isto aconteceu, como é que é possível?!
- Portanto, pediu-lhe logo desculpa, "meu amigo, deixe-me ver se está vivo, se está morto...? Oito facadas nas costas, é o que diz a acusação, oito facadas, oito! O senhor está livre sabe porquê? Porque nem facadas sabe dar!
Gonçalo passara a faca a um dos amigos para a fazer desaparecer. Eram três brancos, dois negros. Fugiram todos no carro. O juiz não escondia o sarcasmo pela inversão da ordem moral das coisas.
- Mas isto é de alguém que está arrependido?! Entregou-se à polícia? O que é que fez à navalha?
- Desapareceu.
- Não a deu a alguém para a fazer desaparecer?
- Fiquei muito mal.
- Ficou muito mal?! Eu, no seu lugar, ficava muito contente. Depois de dar oito facadas eu ficava contente: não morreu!
Parecia que os culpados não tinham realmente visto o que fizeram. Duas gaivotas chiaram de fora da janela e ficaram a ver a audiência, que era pública. Colectivo de três juízes.
Falou o gémeo de Gonçalo, o da faca:
- Eu gostava de dizer que passei por muito. Mudou a minha vida completamente e a do meu irmão. Sofremos muito e...
- Ou seja, o senhor Gabriel, quando entrar aqui, vai ter de lhe pedir desculpa, e ao seu irmão! Às vezes é melhor estar calado, mas prossiga! Os senhores só se centram no que estão a passar, não no que fizeram e no que outros sofreram!
- Uns mais do que os outros, mas toda a gente sofreu!, guinchou o rapaz.
Surpresa, o tribunal passou o vídeo da acção. Alguém filmara da janela. Extintor na cara, pontapé, taco na cabeça, pontapés, primeiras facadas, extintor, taco, segunda sessão de facadas. E a seguir, o mesmo vídeo, mas em versão ainda mais excruciante, porque fora musicado com gangsta rap, vejam como ele ficou, yô, não sabia com quem se metia, yô, qualquer coisa assim. O autor do vídeo artístico foi um dos rapazes. Nunca vi prova tão provada. Entrou finalmente a vítima, Gabriel Pedroto, mais velho.
- Saí com o taco. Para tentar intimidar para irem embora. Isto vai acabar aqui ou vão continuar? Bati com o bastão no cimo da roda. Um deu-me com o extintor, não me matou mas perdi os sentidos. Lembro-me de o Nuno me ir buscar. Foi só lá em cima que percebi que tinha sido esfaqueado.
- Nós temos a sua camisola ensanguentada, disse o juiz.
Sofre dores constantes, picadas fortes nas costas.
- Estou aqui a senti-las.
Três operações cirúrgicas. A filha ainda revive o episódio.
Gabriel quis falar com os rapazes e chegou-se ao varandim. "Preferia que não se aproximasse", pediu o juiz. Os gémeos pareciam um espelho, pedindo desculpa na mesma voz sofrida. E Gabriel:
- Eu tenho uns filhos gémeos, vocês, caso não saibam, eu tenho filhos gémeos. Vocês nasceram no dia 5 de Maio, não foi?
- A 4 de Maio, disseram os gémeos numa frase gémea.
- Os meus filhos nasceram a 5 de Maio.
Gabriel soprou e os olhos molharam-se, vermelhos, queria respirar mas chorava e até eu, que calhara vir ao Porto para esta improvável redenção, chorei. E as gaivotas insolentes do Douro chiaram de novo e todos os rapazes pediram desculpa a Gabriel. Ele apertou-lhes a mão, um a um.
- Pronto, muito bem, um ano depois o homem, afinal, já não foi o culpado!, suspirou o juiz.
No segundo momento nobre do dia, tão fora da miséria egocêntrica dos rapazes, foi o próprio advogado de Gabriel quem pediu, nas alegações, que os rapazes não fossem já enviados, com prisão efectiva, para a penitenciária de jovens de Leiria, destruindo-lhes a vida a sério. A sentença é em Abril. Será que os juízes acreditaram que era verdadeiro o arrependimento? Talvez não, talvez sim, talvez apenas na medida em que foram apanhados e, portanto, sofreram imenso, ui, mais ainda do que o homem que não chegaram a matar.