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Uma senhora de 72 anos, acamada, sofrendo há muito de esclerose múltipla. Há quatro anos partiu o colo do fémur e os filhos contrataram um serviço de cuidadoras de um hospital. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, o ano inteiro. Uma dessas cuidadoras, Clara, está no banco dos réus. Calada desde o início. Não fala, não se defende. Acusada de ter furtado um grande colar de ouro, o mais valioso objecto da sua doente. Além das cuidadoras havia Margarida, empregada mais antiga da casa, que fora de fim-de-semana na sexta-feira. Conta a filha da doente:
- Segunda feira de manhã, quando entrou, a Margarida ligou-me a perguntar onde é que estava o fio da minha mãe. A minha mãe não o tinha ao pescoço e ela queria saber onde é que o tínhamos metido.
Roubaram o colar da Mãe
- Que tipo de colar era?
- Um fio de ouro, de malha grossa, a minha mãe nunca o tirava. Um entrançado de ouro branco e amarelo.
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E uma cruz, em baixo, com o nome da mãe. Já tinha perdido um colar igual: anos antes, sofreu ataques epiléticos e, no internamento, o fio perdeu-se.
- Passou muito tempo triste com isso e nós mandámos fazer outro... andámos a juntar dinheiro para um fio exactamente igual e a minha mãe, desde então, não o tirava do pescoço. Sentiu mesmo muito a sua falta, fazia parte dela.
Procuraram, nada. Telefonaram ao irmão e ele disse "não, não, eu tirei o fio à mãe na sexta-feira, fez-me impressão a mãe estar deitada com o fio e tive medo que se magoasse, perguntei se a mãe me autorizava a tirar e coloquei naquela caixinha de jóias ao lado, ele tem de estar lá!"
Vasculharam, levantaram o colchão, falaram com todas as cuidadoras que lá tinham estado no fim-de-semana, que eram quatro.
- A primeira a entrar na sexta-feira, a render a Margarida, disse sim, sim, eu vi o fio na mesa de cabeceira e lá estava quando eu saí.
Já Clara, agora arguida no banco dos réus, disse que não tinha visto o fio em lado nenhum. Continua a filha:
- Corremos tudo, abrimos o aspirador, vasculhámos tudo, tudo, tudo, até termos a certeza de que o fio tinha de ter sido retirado lá de casa.
Fizeram queixa contra desconhecidos na polícia. O fio custara 4750 euros. A filha levantou-se e foi ver a foto erguida pela procuradora. Eu olhei, a vários metros; uma senhora de grosso fio ao pescoço, uma rainha acamada.
- Era este, confirmou a filha.
- Tem a certeza de que não teve visitas, alguma amiga?
- A minha mãe não tem amigas. Infelizmente, quando as pessoas caem doentes, as pessoas afastam-se.
A frase deu duas voltas pela sala e entristeceu-me.
Depois, entrou o filho. A procuradora buscava pistas:
- A vossa mãe tem consciência, tem um raciocínio escorreito?, perguntou a procuradora.
- Sim, quer dizer, ultimamente tem estado menos. Mas na altura estava lúcida.
- Era uma peça querida da sua mãe, ou havia a hipótese de a doar ou entregar a alguém?
- Eu diria que não. Tivera há muitos anos um fio o mais possível igual a esse, perdeu-se e fez-se um novo. A minha mãe tinha o maior carinho por ele.
Clara nunca abriu a boca no julgamento. Foi avisada de que, confessando, podia ter uma condenação menos pesada. Mas ela, de olhos metidos num buraco negro, nada. Clara tinha ido logo vender o colar de ouro a uma ourivesaria, e o talão da venda ficara com o seu nome verdadeiro! Desconhecia, talvez, que os ourives são obrigados a comunicar as compras. A Polícia Judiciária quase não teve trabalho, foi às listas, às fotos e lá estava. Foi a própria Clara quem ofereceu a prova de que roubara o colar, condenando uma senhora inválida a ainda maior tristeza e inquietação. Saindo a sentença, claro que será despedida do serviço de cuidadoras. Não sei o que as pessoas esperam da vida, mas algumas - por cobiça, por necessidade? -, atiram-se da falésia do agora, estatelando-se no amanhã.