Levante-se o Réu

Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. São relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide. Às sextas, depois das 18h30.

Um homem desprogramado

Era um homem incrivelmente barbudo, mas parecia uma máquina de falar. Já existem, numa vertigem impossível de prever mas que vai mudar a Terra, inteligências artificiais capazes de compôr argumentos sobre qualquer tema, parecendo resposta humana. Pois bem, a boca, o cérebro, a própria barba, pareciam programados para a pergunta: se nos tentarem responsabilizar por coisas erradas que fizemos, qual a melhor forma de escapar?

Eu perceberia daí a pouco, numa sonora conversa no átrio, que a advogada andava há semanas a escrever-lhe, a tentar telefonar-lhe, alertando-o para a difícil situação em que o próprio se colocara. Não aparecera numa sentença, apesar de ter recebido a carta de notificação e, depois, tinha desobedecido à pena: apresentação periódica, tratamento psiquiátrico de alcoologia, etc. Agora, os três anos de prisão suspensos, mediante as condições obrigatórias do tribunal, podiam transformar-se em três anos de prisão a sério. Coisa que, aliás, o barbudo conhecia:

- Mas como é que eu podia receber a carta em minha casa, se estava na prisão? Eu não podia!

Um bom argumento, não fosse a advogada corrigir:

- O senhor foi notificado antes de ser preso!

Antes, na audiência, o barbudo tinha explicado à juíza.

- Vivo de empréstimos e da caridade de amigos.

A sua obsessão era a mãe.

- Há um ano que não vejo a minha mãe! Eu nem sequer sei onde está a minha mãe.

Teve outro processo por injúrias a um agente da autoridade, mas o caso grave era o da mãe.

- Condenado... ainda por cima por violência doméstica! Eu nunca toquei na senhora com uma unha! Mas, enfim, altos valores se alevantam! Não consigo ver a minha mãe. Chego à Santa Casa e pergunto: a minha mãe? "Aí não está." Ai, não está?!

- O senhor não cumpriu a notificação que recebeu por carta.

- Eles podem enviar as cartas, mas a caixa de correio está aberta! Alguém me abriu a caixa de correio e a estragou e às tantas andam a tirar-me as cartas que chegam! Olhe, esta recebi, hoje estou aqui!

- Mas o senhor recebeu os papéis que...

- Eu, papéis!, interrompeu o homem, eu ando cheio de papéis! Eu não me entendo com papéis!

Tirou do bolso uma folha enrodilhada, velha como Portugal.

- Com este papel eu ando sempre. É o papel da minha libertação! Disseram-me: "Ande sempre com este papel, se lho pedirem na rua, mostra que foi libertado e quando". Como vê, os bolsos são poucos e os papéis são muitos!

A advogada começou a ler o "papel da libertação".

- Não se lembra ao menos do seu número de recluso?

- Não sei se não será este aqui... 913, pode ser recluso 913... mas, como eu não trouxe nenhuma recordação lá da prisão!

Não fez o tratamento do álcool porque:

- A psicóloga, ou psiquiatra, disse-me: "Como é que eu posso dar-lhe alta se o senhor não tem sequer médico atribuído? O seu processo nem sequer existe!"

A advogada, com gelatina na voz, tremia:

- Não é o senhor quem determina que vai ter alta! O senhor deixou de aparecer na associação.

- Mas eu expliquei que deixei de ir à associação porque estava detido! Pronto, eu vou marcar consulta.

A advogada respirava, respirava, tem calma doutora, tem calma, foi esta a vida que escolheste...

- E o senhor não tem telemóvel... Era o da sua amiga, que não atende!

- Porque ela está com o mesmo problema que eu! O telemóvel não tem dinheiro.

- E a sua caixa do correio?

- Mas caixa do correio, como, se não tem fechadura e eu não tenho dinheiro para a mandar arranjar!

- O senhor... o senhor foi notificado de tudo...

- Não me lembro absolutamente de nada.

- O senhor tem de resolver imediatamente esta questão!

- Mas qual questão?!, berrou, agora era um homem de barbas, não uma máquina de respostas prontas, qual questão?, eu na minha cabeça tenho tantas que não percebo nada!

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia

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