- Comentar
Era um homem incrivelmente barbudo, mas parecia uma máquina de falar. Já existem, numa vertigem impossível de prever mas que vai mudar a Terra, inteligências artificiais capazes de compôr argumentos sobre qualquer tema, parecendo resposta humana. Pois bem, a boca, o cérebro, a própria barba, pareciam programados para a pergunta: se nos tentarem responsabilizar por coisas erradas que fizemos, qual a melhor forma de escapar?
Um homem desprogramado
Eu perceberia daí a pouco, numa sonora conversa no átrio, que a advogada andava há semanas a escrever-lhe, a tentar telefonar-lhe, alertando-o para a difícil situação em que o próprio se colocara. Não aparecera numa sentença, apesar de ter recebido a carta de notificação e, depois, tinha desobedecido à pena: apresentação periódica, tratamento psiquiátrico de alcoologia, etc. Agora, os três anos de prisão suspensos, mediante as condições obrigatórias do tribunal, podiam transformar-se em três anos de prisão a sério. Coisa que, aliás, o barbudo conhecia:
- Mas como é que eu podia receber a carta em minha casa, se estava na prisão? Eu não podia!
Um bom argumento, não fosse a advogada corrigir:
Subscrever newsletter
Subscreva a nossa newsletter e tenha as notícias no seu e-mail todos os dias
- O senhor foi notificado antes de ser preso!
Antes, na audiência, o barbudo tinha explicado à juíza.
- Vivo de empréstimos e da caridade de amigos.
A sua obsessão era a mãe.
- Há um ano que não vejo a minha mãe! Eu nem sequer sei onde está a minha mãe.
Teve outro processo por injúrias a um agente da autoridade, mas o caso grave era o da mãe.
- Condenado... ainda por cima por violência doméstica! Eu nunca toquei na senhora com uma unha! Mas, enfim, altos valores se alevantam! Não consigo ver a minha mãe. Chego à Santa Casa e pergunto: a minha mãe? "Aí não está." Ai, não está?!
- O senhor não cumpriu a notificação que recebeu por carta.
- Eles podem enviar as cartas, mas a caixa de correio está aberta! Alguém me abriu a caixa de correio e a estragou e às tantas andam a tirar-me as cartas que chegam! Olhe, esta recebi, hoje estou aqui!
- Mas o senhor recebeu os papéis que...
- Eu, papéis!, interrompeu o homem, eu ando cheio de papéis! Eu não me entendo com papéis!
Tirou do bolso uma folha enrodilhada, velha como Portugal.
- Com este papel eu ando sempre. É o papel da minha libertação! Disseram-me: "Ande sempre com este papel, se lho pedirem na rua, mostra que foi libertado e quando". Como vê, os bolsos são poucos e os papéis são muitos!
A advogada começou a ler o "papel da libertação".
- Não se lembra ao menos do seu número de recluso?
- Não sei se não será este aqui... 913, pode ser recluso 913... mas, como eu não trouxe nenhuma recordação lá da prisão!
Não fez o tratamento do álcool porque:
- A psicóloga, ou psiquiatra, disse-me: "Como é que eu posso dar-lhe alta se o senhor não tem sequer médico atribuído? O seu processo nem sequer existe!"
A advogada, com gelatina na voz, tremia:
- Não é o senhor quem determina que vai ter alta! O senhor deixou de aparecer na associação.
- Mas eu expliquei que deixei de ir à associação porque estava detido! Pronto, eu vou marcar consulta.
A advogada respirava, respirava, tem calma doutora, tem calma, foi esta a vida que escolheste...
- E o senhor não tem telemóvel... Era o da sua amiga, que não atende!
- Porque ela está com o mesmo problema que eu! O telemóvel não tem dinheiro.
- E a sua caixa do correio?
- Mas caixa do correio, como, se não tem fechadura e eu não tenho dinheiro para a mandar arranjar!
- O senhor... o senhor foi notificado de tudo...
- Não me lembro absolutamente de nada.
- O senhor tem de resolver imediatamente esta questão!
- Mas qual questão?!, berrou, agora era um homem de barbas, não uma máquina de respostas prontas, qual questão?, eu na minha cabeça tenho tantas que não percebo nada!
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia